Parte 1.
Nos próximos dias, deixaremos alguns apontamentos sobre toda uma série
de livros produzidos pelos estúdios da Maurício de Sousa Produções, nos últimos
anos, no quadro das comemorações sucessivas dos aniversários das várias
personagens criadas por Maurício de Sousa, e as publicações - tiras, revistas,
etc. - que lhes estão associadas. Começando por Bidu, rapidamente se chegaria a
Cebolinha, Chico Bento e depois a Mônica, que acabaria por se tornar a
personagem principal, ou eixo representativo, desse universo de referências. Os
50 anos da Mônica levaram a toda uma série de publicações comemorativas, num
ritmo de produção pujante, desde a reedição das tiras “clássicas”, ao relançamento
dos números de todas as revistas principais em caixas coordenadas, já para não
falar de edições especiais, como aquela “de luxo” produzida pela Levoir e
distribuída por dois diários portugueses. (Mais)Mas além disso, levaram também à criação de dois grupos de publicações, precisamente aquele a que faremos menção, por um lado as antologias de histórias curtas e ilustrações “MSP” e, por outro, as narrativas mais alongadas e autorais, “MSP Graphic”. De acordo com a sua existência económica e empresarial, estes projectos trazem uma dimensão relativamente inédita, mas ao mesmo tempo permitem levantar questões curiosas sobre as próprias práticas - não apenas empresariais como estéticas e mesmo políticas - da MSP (quando falarmos da empresa, referir-nos-emos à sigla, quanto ao autor individual falaremos de “Maurício”, como é sempre chamado). A razão é que estes títulos têm um ponto em comum que as torna passíveis de uma consideração particular: é que são obras “assinadas” que não pelo próprio Maurício ou o selo editorial, trazendo uma inflexão autoral sobre um universo há muito marcado pelo seu inerente processo industrial.
A fama da Turma da Mônica, quer no Brasil quer em Portugal
(ainda que a diferença de vendas seja assombrosa, dada a população massiva do
Brasil contra os parcos habitantes-leitores de “gibi de quadrinhos” desta nossa
lande), é incontestável. No nosso país, a distribuição das revistas da Abril desde
a década de 1970 [a imagem mostra a tira de 1963 em que a "dentuça" surge pela primeira vez], pelo menos, assegurou a sua fama, presença e influência, e é
quase seguro dizer que a esmagadora maioria dos leitores de banda desenhada que
com ela tenham contactado na infância terão passado por um ou outro título
dessa família. A abertura de um parque temático na Amadora, no ano passado,
independentemente de estar ou não coordenado pelos esforços em prol da banda
desenhada do CNBDI/FIBDA, ou terem tido um apoio especial da companhia
detentora dos direitos, etc., não deixa de ser um sintoma da fama daquelas
personagens. Todavia, a influência deste universo de referências não pode ser
nem por um lado menosprezado, mesmo no circuito dito independente ou
alternativo, mas tampouco reificado de modo absoluto. Isto é, acreditamos que
sendo algo lido quase universalmente (no interior do espaço Portugal-Brasil, e
sobretudo no Brasil), e quase seguramente num qualquer momento pelos autores de
HQ (i.e., no Brasil), ele tenha servido de modelo numa decisão de caminho a
tomar. Ou seja, qualquer que possa ser a atitude em relação à criação de
quadrinhos, as gerações consequentes terão a Turma como referência.
Modelo a imitar, modelo a compreender e adaptar a pulsões pessoais, ou mesmo a
recusar e resistir.
Não poderemos esperar que todos os autores tenham a obra de
Maurício de Sousa como “modelo ideal”, “grande exemplo”, “obra inesquecível”, “memória
nostálgica”, etc., havendo seguramente quem não os tenha lido ou quem não
aprecie a sua matéria gráfica e narrativa de modo algum. Mas existem exemplos
esparsos, parece-nos, no circuito independente, que remetem a esse universo de
forma explícita, como o livro O louco, a caixa e o homem, de Daniel
Esteves e Will [ver imagem], por exemplo, que abertamente demonstra como o desenvolvimento
das personagens e sua relação bebe de modo óbvio daquele entre o Louco e o
Cebolinha. E mesmo ao ler Nanquim descartável, também de Daniel Esteves,
com uma bateria de artistas visuais, apesar de se tratar de uma obra construída
à base de vívidos e realistas diálogos entre jovens adultos sobre as suas relações
de amor, amizade e tensões de separação, em contextos quotidianos e triviais,
num trabalho raro de complexidade emotiva, de ressonância com o real, mas também
de tessituras de experiências, memórias, sonhos, enfim, uma maturidade que nada
parece ter a ver com a matéria da MSP, a verdade é que se consegue imaginar,
precisamente pela mescla de imaginários, que essas personagens – Ju, Sandra,
Tuba, Pedro – são reflexos potenciais da turminha de crianças mais famosas.
Como sucede com muitos trabalhos que acabam por ganhar um peso
cultural incontornável, ou mesmo poder institucional - o uso das personagens
para campanhas publicitárias, propaganda governativa, missões diplomáticas,
etc. reforçam esse papel -, muitos dos seus elementos tornam-se nítidos para
uma desconstrução do ponto de vista das várias disciplinas dos estudos
culturais. Além disso, a sua inscrição no tecido histórico leva a que uma sua
leitura deslocada leve a transformações internas ou a desmantelamentos algo
deslocados. O mesmo ocorre em relação a Disney ou Hergé, modelos comparáveis
com os de Maurício nas suas escalas respectivas. Como em muitos outros
aspectos, e como escreve Hugo Frey em relação a Hergé, mas cujas palavras podem
ser aplicadas neste contexto, é preciso evitar cair nos extremos da “disputa
excessivamente polémica” ou da “actividade comemorativa”.
Se dizemos isto é por compreendermos que algumas das críticas perenes
à Turma não deixam de ter razão, mas devem ser contextualizadas e
compreendidas em que medida é que são “corrigidas”, “transformadas” ao longo da
sua presença histórica, ou que “usos” é que têm nas narrativas. Por exemplo, o
facto da própria Mônica ser uma personagem que recorre repetidamente à violência
para resolver os seus conflitos poder ser visto, de uma determinada
perspectiva, como criando um mau modelo para os seus leitores mais novos, que
se encontram em processos vivíssimos de sociabilização. Não se trata aqui de
uma defesa de uma ideia algo redutora de causalidade e influência directa, mas
sim de uma compreensão de que todo e qualquer elemento que faça parte da “dieta”
cultural dos leitores, sobretudo dos mais jovens, contribuirá decerto para a
construção da sua subjectividade. E se evitar o delicodoce é, a nosso ver, uma
obrigação parental, também o é procurar modelos mais salutares na construção de
novas comunidades. No entanto, o tipo de violência também pode ser entendido
como uma espécie de cifra estilizada, que não se reveste de forma algum a de
contornos realistas, passíveis de “imitação directa”. Porém, a quantidade de “correcções”
que muitas das histórias sofreram com as suas reedições - em que as personagens
deixam de pichar paredes, ou se substituem armas de brincar por outros
brinquedos, ou se corrige uma qualquer
linguagem mas afoita, etc. - fazem entender que existe uma sensibilidade, da
parte da força editorial, para as mudanças de atitude para com a educação dos
mais novos. E, por mais vocalizadas que sejam as reacções dos mais
conservadores que se alertam dessas mudanças, elas fazem parte das transformações
sociais, tal como o desaparecimento de aconselhar as grávidas a beber cerveja
ou o acesso às bombinhas de Carnaval ou a cigarros de chocolate.
A nosso ver, contudo, acima das críticas à dieta infinita de Magali
(ponto que até um crítico da envergadura de um Moacy Cirne admoestou), ou ao
lambdacismo do Cebolinha, aquilo que mais nos surpreende é a relativa “invisibilidade”
dos traços culturais brasileiros nas história da Turma.
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