Este livro é uma cadeia de diálogos
entre linguagens artísticas, de forma a fazer emergir um objecto tão
heterogéneo nos elementos que o compõem como na coesão que os
unem. O ponto de partida é uma peça teatral para três personagens
escrita por Dorin, cujo título completo é Dans ma maison de
papier, j'ai de poèmes sur le feu. E de facto, há um incêndio
no seu interior. (mais)
Uma mulher idosa, repousando na sua casa, aguarda a morte. Na verdade, não a aguarda, mas é como se a pressentisse, e fala com uma menina pequena, que brinca com uma boneca e vai explorando o interior da casa, não apenas espacialmente, mas também no que diz respeito ao seu tempo, e memória. É possível que sejam avó e neta, ou mesmo mãe e filha, mas é também possível que sejam apenas a mesma pessoa, ou outra configuração. Quando a morte chega, entabula-se um longo diálogo, à la Bergman, Kafka, ou Ligeti, em que o inevitável é adiado apenas um instante (“de um pensamento”, diz a velha), mas um instante que se abre metafisicamente ao infinito ou a toda uma vida, uma experiência longa e sofrida que se revisita e apenas permite um fôlego mais. O cerne da narrativa é ocupada pelo diálogo entre a velha e a menina, que vão construindo um diálogo feito de trocadilhos, jogos de palavras e de acções simétricas e opostas, apagando e acendendo uma luz, e que reflecte os seus nomes: Aimée e Emma. Mas o intervalo de tempo entre as conjugações desse verbo não é suficiente para nos apercebemos jamais qual o objecto concreto desse amor projectado, e ele não servirá de refúgio absoluto da morte que tem de ocorrer.
Uma mulher idosa, repousando na sua casa, aguarda a morte. Na verdade, não a aguarda, mas é como se a pressentisse, e fala com uma menina pequena, que brinca com uma boneca e vai explorando o interior da casa, não apenas espacialmente, mas também no que diz respeito ao seu tempo, e memória. É possível que sejam avó e neta, ou mesmo mãe e filha, mas é também possível que sejam apenas a mesma pessoa, ou outra configuração. Quando a morte chega, entabula-se um longo diálogo, à la Bergman, Kafka, ou Ligeti, em que o inevitável é adiado apenas um instante (“de um pensamento”, diz a velha), mas um instante que se abre metafisicamente ao infinito ou a toda uma vida, uma experiência longa e sofrida que se revisita e apenas permite um fôlego mais. O cerne da narrativa é ocupada pelo diálogo entre a velha e a menina, que vão construindo um diálogo feito de trocadilhos, jogos de palavras e de acções simétricas e opostas, apagando e acendendo uma luz, e que reflecte os seus nomes: Aimée e Emma. Mas o intervalo de tempo entre as conjugações desse verbo não é suficiente para nos apercebemos jamais qual o objecto concreto desse amor projectado, e ele não servirá de refúgio absoluto da morte que tem de ocorrer.
As escolhas visuais de Pierre Duba,
porém, colocam estas hipotéticas personagens em outros corpos,
também ele resgatados de uma histórica cultural cheia de
referências ricas. A mais óbvia, e poética e intertextual, é “dar
o papel” de Morte a uma silhueta reconhecível, a do “Caçador”
do famoso filme de Charles Laughton, interpretado por Robert Mitchum.
O perfil de pregador-lobo, o assobio assustador, a inerente paciência
que esconde uma violência profundíssima e bíblica mantém-se nesta
sombra de linhas (numa nota final, o autor revela os nomes dos
“actores”, confirmando esta informação, e indicando os nomes
das pessoas que terão dado imagem e corpo à menina e à velha).
Este é, portanto, um caso em que o
“corpo” que o artista de banda desenhada dá ao texto original
vai bem mais além do que uma compreensão básica da adaptação,
e que num desvio ou contributo alargado da visualidade acaba por
desviar o texto de início para um território bem mais alargado,
fantasmático, paradoxal, até mesmo perigoso. Sem necessidade de
investir a atenção na biografia do(s) autor(es), é quase seguro
que estes usos imagéticos se relacionem com uma memória de Duba, na
qual ele encontrou um veículo apropriado para a transmissão da
intriga e palavras de Dorin. Duba integra essas memórias pessoais,
estéticas, naquelas da velha personagem, que investiga as suas
próprias memórias na história, no diálogo entabulado com a menina
e com a morte. Não apenas por estarem em dois níveis diferentes –
diegese e superfície textual – essas memórias são
irreconciliáveis, mas não deixam de estarem integradas uma na
outra, numa co-existência que é precisamente o texto total que
lemos. Isto é, não estamos a ler “as palavras de Dorin” com ou
através “das imagens de Duba”, mas antes a atravessar a “casa
de papel”, seus intervenientes e acções, de Dorin e Duba, uma
casa com a sua própria dimensionalidade, a sua própria
materialidade, a sua própria textura, o seu próprio relevo.
E não é por acaso que agregamos estas
palavras, já que Duba é um cultor de uma superfície não-lisa,
texturada, acidentada, táctil. Nesse sentido, há grandes afinidades
com um autor como Diniz Conefrey, por exemplo, que vive no mesmo tipo
de relação em que se periga o texto através de imagens incomuns e
pessoalizadas em extremo. Não há qualquer busca por uma “poética
lírica”, de lugares-comuns, imagens naturalizadas e domadas, mas
antes por relações de grande ambiguidade, ou de fracturas e fugas
de sentido. Duba já havia operado a mesma abordagem em torno de
poemas de Vesaas no seu Racines.
Noutro aspecto, parece que a relação
imediata, física, quase biológica, entre os corpos das mulheres e a
casa – o ritual iniciático da menina a apontar à boneca as partes
da casa, a nova construção que a morte conduz no final – recorda
aquelas construções-desenhos de Louise Bourgeois que também
auscultavam todos esses temas embrulhados em torno do corpo feminino,
a maternidade, a interioridade de uma casa: as “Femme Maisons”.
Aliás, a atenção de Duba para com tecidos, texturas,
materialidades do desenho, contrastes cromáticos e de composição,
flutuação de estilos figurativos, alterações de escalas e
travessia de locais imaginados, etc., levam-nos a pensar na
possibilidade de, se não um diálogo, pelo menos um conjunto de
afinidades inter-visuais entre as obras daquela artista plástica e
desde autor particularmente visual, pictórico (em contraste com
“gráfico”, “de legibilidade simples”) na banda desenhada.
Claro está que haverá outras referências (a Alice de
Carroll será sempre uma espécie de núcleo nestas ocasiões, e
contos tradicionais), mas ocorre-se-nos a ideia de que aquela obra em
particular, matrilineal, e aberta às questões de uma certa
violência sempre presente nas relações familiares, sexuais e da
cultura, encontra aqui, neste livro, um eco considerável.
A flutuação de figuração
expressa-se através de várias frentes. Não é apenas na alteração
de imagens a preto-e-branco, carregadas de sombras de grafite, e
aquelas delineadas a suaves cores pintadas. É também visível na
alteração e permutabilidade de escalas entre as personagens
femininas, ora uma ora a outra assumindo uma escala gigantesca, ora
diminuindo para ser acalentada ao colo, ora tendo uma cabeça
desmesurada para recordar certos tipos de caricatura e ciclos
narrativos de imagem antigos, ora ainda nas várias “substituições”
dos rostos: por uma raposa, uma porta e um limão, um desenho
sobreposto, um trecho rasgado, um jogo de sombras chinesas... Nessas
escolhas, Duba quer provocar uma fractura dos sentidos – que jamais
são simples e lineares mesmo no texto, mas que ganham nas imagens
uma dimensão exacerbada. Como escreve Mieke Bal em “Figuration”,
estes – mas são tantos! - são aqueles elementos que “iludem a
coerência destes artefactos. A minha atenção concentra-se
sistematicamente naqueles pormenores que parecem estar fora do sítio
certo, as contradições que rasgam a obra, os elementos monstruosos
que revelam as falhas e as disparidades, as quais, por provocarem
admiração, oferecem possibilidades infindas para a compreensão
destas obras”.
A verdade é que prestar atenção para
com cada elemento individual – o cão amarelo ao colo da criança,
o ritmo da luz que acende a apaga, as sombras projectadas nos fundos,
que ora ganham contornos figurativos ora abstractos, a importância
do posicionamento das personagens num “dentro” ou num “fora”,
o seu enquadramento ou não por molduras, janelas e portas, a forma
como a luz irrompe pelo quarto escuro nas cenas onde a Morte-Caçador
está presente, ou o branco da página irrompe luminoso nas cenas a
que poderíamos, mas erradamente, chamar de “oníricas” -, para
tudo isso, não faz surgir uma cartografia organizada de
“simbolismos”, supostamente interpretáveis através de uma
qualquer chave, mas um espaço contínuo e carregado de forças que
nos obrigam a leituras múltiplas, simultâneas e todas consequentes.
Voltando a Bal, as “narrativas
pictóricas, então, tornam-se um código secreto, uma linguagem
subcultural que facilita a produção de narrativas subversivas”.
Com a excepção da ideia de existir um “código secreto”, que
implicaria existência de um significado último e unívoco, que
seria preciso derrubar (e não é, decerto, a ideia central de Bal),
há aqui uma concatenação de subversões em relação às
expectativas face à morte à vida vivida transformadas em matéria
legível. É nesse sentido que a obra de Duba pode ser chamada
“poética”, no que “poético” pode ser a banda desenhada –
e não somente uma sua associação a ideias superficiais do que a
poesia constitui.
O ritmo dessa subversão é pautado por
fugas e retornos. Uma visão de conjunto revela desde logo um balanço
entre páginas em grelhas regulares e outras composições mais
livres, algumas destas ocupadas por uma imagem imensa que ocupa toda
a área visual, outras atravessadas por um percurso das personagens,
ou pelo menos uma distribuição espacial que pode não corresponder
totalmente a um dinamismo físico, mas interno, “onírico”, uma
fuga. Também a permutabilidade entre as personagens não quer dar
conta de uma confusão entre elas, nem uma identificação mútua
(entre a velha e a criança, sobretudo), mas antes uma outra forma de
entender o diálogo, como encontro num ponto longínquo, no infinito,
uma promessa de osmose. Tal como as linhas paralelas parecem tocar-se
no ponto de fuga, mesmo jamais se alcançando esse ponto, ele serve
de modelo à potencial união e compreensão mútua entre as
dialogantes.
A chegada da Morte-Caçador abre um
processo de recuperação da vida. É como se a ameaça provocada
pelo Caçador fosse a única forma da mulher se poder reinscrever na
sua própria existência vivida, na infância, no regresso a esse
estado, aceitando portanto na sua destruição, no seu consumo pelo
Caçador, uma possibilidade também de recuperação e reinstauração.
Não sendo “nossa”, não sendo de
cada um dos seus leitores, a passagem por esta “casa de papel”
seguramente que iluminará, senão mesmo inflamará, se não os olhos
ou as mãos, uma qualquer parte dos nossos interiores.
Nota final: Agradecimentos a Anabelle
Araújo e à editora, pela oferta do livro.
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