Tal
como havíamos discutido em relação a Laços, não podemos
tintar, a partir da perspectiva criada pela obra hodierna, a produção
anterior. Por isso discordamos profundamente com a ideia de que as
histórias do Astronauta seriam aquelas mais “adultas” da
produção MSP, mesmo no seio dos gibis. Isto não significa que não
aceitemos existirem, entre as histórias, diferenças que insuflem
vários graus de maturidade, complexidade, continuidade entre as
histórias, camadas de intertextualidade que enriqueçam a
experiência da leitura, etc. E o facto de os adultos poderem tirar
prazer de uma obra infanto-juvenil não é um argumento em si mesmo,
pois tudo depende do tipo de prazer que se retira. Haverá
seguramente uma diferença fundamental entre compreender as camadas
intertextuais “adultas” presentes em Astérix, perceber a
subversão dos propósitos superficiais em The Magic Roundabout
(versão inglesa) ou Ren & Stimpy, ou aproveitar o embalo
de entretenimento e humor simples de uma BD/HQ infantil. Pensamos ser
este último o caso da MSP, e não outra configuração.(mais)
Com a excepção das personagens centrais da Mônica, há aparentemente uma grande incidência de atenção para com o Astronauta, se bem que a esmagadora maioria dos autores transforme a sua odisseia numa qualquer metáfora para o próprio universo criativo de Maurício, ou para uma qualquer vertente emocional-ecológica.
Com a excepção das personagens centrais da Mônica, há aparentemente uma grande incidência de atenção para com o Astronauta, se bem que a esmagadora maioria dos autores transforme a sua odisseia numa qualquer metáfora para o próprio universo criativo de Maurício, ou para uma qualquer vertente emocional-ecológica.
Todavia,
é possível identificar estratégias diferenciadas nas histórias.
Tomemos como exemplo uma história em particular, repetindo o que
dissemos num dos textos anteriores: uma história sem título,
passada na Amazónia, publicada na revista Mônica no. 23, de
1972. Apesar de termos acesso à edição original, é mais
substancial ainda a nossa argumentação se nos reportarmos à edição
comemorativa de 2011. Cada volume desta colecção relançou os
números correspondentes de um conjunto de revistas, as quais haviam
sido publicadas originalmente em datas diferenciadas: a Mônica
23 em 1972, a Cebolinha 23 em 1974, a Chico Bento 23 e
a Cascão 23 em 1983, e a Magali 23 em 1990. Ou seja, e
melhor ainda, cada volume dá-nos acesso a momentos diferentes dos
trabalhos produzidos no seio daquela companhia e “estrutura de
imaginário”. Ora a história a que nos referimos do Astronauta
mostra, em contraste com todas as outras histórias das revistas
citadas, diferenças substanciais a nível da camada visual.
Quase
todas as histórias com as outras personagens (Mônica, Cascão,
Chico Bento, Zum & Bum, Tina, Panidinho, Horácio, Magali,
Humberto, Mingau) seguem as formas de estruturação, perspectiva e
preenchimento interno das vinhetas idêntico: um plano paralelo à
linha de horizonte; linhas diagonais dos passeios ou edifícios
somente quando as personagens se movimentam de um lugar para outro;
uma distância das personagens “teatral”, permitindo planos que
lhes apanham o corpo inteiro, com apenas pontuais aproximações a
planos médios, e grandes planos muito esparsos; cenários
extremamente reduzidos a uma cifra (“muro”, “muro de tábuas”,
“casa”, “pedra no solo”, “relva”, etc.); cores planas,
não-naturalistas e cambiantes de vinheta para vinheta, mas sem
significado próprio.
Mas
esta em particular tem estratégias muito diferentes: picados e
contra-picados quase radicais, maior pormenorização no desenho
anatómico; escolhas de composição e “quebras” dos limites das
vinhetas salientes; alto trabalho de pormenorização do cenário
natural; construção de planos estratificados numa linha de
horizonte mais profunda; uso de escorço… Tratando-se de uma
história criada pela equipa de jovens que trabalhava nas tiras desta
personagem para a Folha de S. Paulo, haveria aqui a vontade de
experimentar um sopro novo. Na verdade, essa história em particular
é até algo básica, tola e mal estruturada, mas visualmente aponta
para uma tentativa de abrir o leque das opções, que apenas agora
parece cumprir-se não apenas na vontade editorial como no seu
cumprimento efectivo.
De
resto, seria necessário fazer um estudo aturado de cada personagem,
revista, época, formato, associado necessariamente ao nome real dos
artistas (como havíamos aventado a propósito de Laços) para
conseguir chegar a conclusões mais consolidadas dessa análise.
Todavia, existem de facto estratégias várias a serem empregues em
qualquer momento. Por exemplo, numa história simples mas
quase-absurda do Bidu, em que ele contracena com um gravador, o cão
é desenhado no seu estilo regular, ao passo que o gravador parece
viver num registo bem diferenciado, de ilustração de manual,
pormenorizado, de contornos mais finos, mais sombras, e mais
realista.
Aproximemo-nos,
porém, do centro gravítico do livro presente. Os “magnetars”
são novos modos de descrição das estrelas de neutrões, ou melhor,
novas manifestações que dão conta desses objectos, cuja magnitude
dos campos magnéticos são de tal modo extremos que parecem
reescrever alguma da compreensão do cosmos. Não temos a veleidade
de compreender sequer uma ínfima parte das suas implicações, mas
se neste momento estas estrelas pequenas de ultra-densas ainda se
revestem de algum “mistério”, é na mesma ordem que os buracos
negros há umas décadas atrás, e antes disso todo e quaisquer
elementos que foram sendo descobertos, detectados e descritos ao
longo da longa, dolorosa e complexa curva de aprendizagem da
astrofísica, que implicou igualmente uma alteração dramática da
cultura humana, sobretudo no que dizia respeito à literal cosmovisão
e à posição do ser humano nesse mesmo espaço (a nova série
Cosmos: A Spacetime Odyssey é um excelente instrumento de
reaproximação a essa realidade). Seja como for, estes objectos
parecem poder contribuir para mais um passo ao entendimento dos
mecanismos necessários para a teoria unificada.
Claro
que, para a ficção, usualmente associada a géneros que têm de se
mover em aspectos espectaculares e dinâmicos para tornar a história
interessante, todos os seus aspectos dramáticos são exagerados. À
medida que vamos compreendendo estes objectos e alguns deles guardam
poucos “segredos” (já raramente se fala do “lado escuro da
lua”, que é um erro), é necessário procurar objectos mais
“exóticos”.
Se
nos lembrarmos daquele axioma da ciência, que parece poético (e
pode sê-lo, pois porque não ancorar a poesia na mais banal e
palpável das realidades?), de que nós mesmos somos pó das
estrelas, uma vez que os átomos que nos constituem foram fundidos
nas estrelas.
A
obra do autor já havia demonstrado as suas capacidades em criar
ambientes diversificados para que servissem de palco dinâmico a
acções de “alta cilindrada”, como no caso do seu super-“herói”
Necronauta, cujos livros são compostas de curtas histórias
mostrando-o em várias aventuras mas consequente e gradualmente
expandindo o seu “universo”. Ora, alguma da estratégia da
ambiguidade e elipse narrativa é usada em Magnetar, tanto deixando
os leitores providenciarem mais informações extra-textuais a partir
das memórias que terão das leituras do Astronauta original
(infantil) ora projectando possibilidades de futuro desenvolvimento
deste Astronauta (adulto), o que de resto se concretizará no segundo
volume já anunciado.
Se
a história em si é concentrada, uma vez que o protagonista se
encontra sozinho na sua missão cósmica, ainda que isso permita –
pela alucinação, sonho, memória – que ele “fale” com todas
as pessoas que criam a sua rede familiar, e procure entrar num
processo de introspecção que re-metaforiza a personagem (“um
esqueleto dentro de um ovo, por toda a eternidade” é um grande
achado enquanto descritivo da personagem), a trama em si é
relativamente focada num objectivo que se desdobra. Estudar o
magnetar de perto, cair num acidente, escapar do magnetar. O acidente
é apenas uma desculpa para que possamos mergulhar, com o Astronauta,
na sua mais profunda humanidade que, compreendendo ser sempre
solitária, pode não cair no niilismo e a companhia dos outros seres
que ama.
O
autor já participara na antologia
MSP + 50,
com uma história em torno da turma do Penadinho, mas até pela
matéria e as personagens, há um contraste curioso entre estes dois
gestos. Onde a curta história da turma macabra era divertida e em
cores glaucas, esta outra é algo mais grave, ao passo que as cores,
de Cris Peter, optam por soluções mais expansivas, iluminadas, e
extremamente elegantes e justas para esta história. Estes
descritivos poderiam associar-se a todas as dimensões do livro, uma
vez que as pesquisas do autor em termos de figuração, composições
que balançam entre o retórico e subsumido à acção, às
repetições claustrofóbicas ao spread que dá a ver uma ideia
parcial da imensidão do universo onde o protagonista se perde, lhe
permitem uma grande justeza narrativa.
Como
todos os volumes, no final são dedicadas algumas páginas aos
processos de criação dos autores, revelando esboços, estudos de
paginação, projectos de capa, algumas ideias alternativas de
desenvolvimento, assim como um breve suplemento sobre a história da
personagem, desde a sua criação original nas mãos de Mauricio de
Sousa às várias transformações que foi sofrendo ao longo de
décadas. Ver algumas das capas alternativas de todos estes
projectos, encontrando os trailers para os passos futuros, e
imaginando que outras escolas poderão surgir, esta pode de facto ser
uma via muito interessante de desenvolvimento de trabalhos futuros de
banda desenhada no Brasil, um curiosíssimo encontro, com alguns
elementos inéditos, de criatividade autoral e individual e
desdobramento no interior de uma máquina empresarial de grande
sucesso.
Nota:
agradecimentos à Panini Brasil, a André Diniz, Pedro Franz, Maria
Clara Carneiro, e Sidney Gusman, pela ajuda em obter os livros, e
algumas outras questões. Escusado será dizer que nenhuma das nossas
posições e/ou leituras responsabiliza terceiros.
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