Em termos superficiais,
Demeter coordena-se com os dois outros títulos que a artista
auto-publicou nos últimos anos, a saber, Wolves e The
Mire. Há mesmo quem fale de uma trilogia, apesar de não
existirem elos directos, pelo menos diegéticos, entre estas
narrativas. Existirá, decerto, uma certa ambiência, que bebe de
ideias, sempre vagas e não exploradas em termos de contextualização
histórica específica, de uma Europa do norte medieval, prestes a
sair das “Trevas”, mas onde ainda resistem elementos provindos
dos contos tradicionais, das religiões antigas pagãs, da magia da
terra e de sombras menos benfazejas que habitam a noite. E sempre
para se concentrar em contos curtos centrados em relações amorosas
e destinadas à tragédia, ou pelo menos a estranhas felicidades. A
autora parece interessada em explorar toda uma série de ideias
feitas e imagens pré-fabricadas, não tanto para as subverter, mas
para criar pequenos relatos sobre uma emoção. Nesse sentido, em
nada difere da tradição que parece mimar, precisamente. (mais)
Por outro lado, oscilando
cada um destes projectos entre as 20 e 30 páginas, podemos
perfeitamente imaginar que a sua auto-publicação em comic book
é uma forma da autora experimentar uma solução financeira (o seu
moto, também repetido noutras esferas, é “auto-publica ou
morre”), vendendo também a edição digital, e que poderá vir a
agregar-se num volume, por uma editora estabelecida. Seja como for, a
atenção que lhe tem sido dada graças aos prémios Eisner, por
exemplo, são algum garante da sua sobrevivência crítica e
económica. Além do mais, vivendo o mercado norte-americano ocupado
sobretudo ora por séries de comic books com histórias
“épicas” e infindáveis, ou graphic novels de grande
sofisticação narrativa e emocional, de quando em vez é uma pequena
alegria ver um gesto destes, simples, abdicando de complexidades, e
concentrado no seu propósito. Aliás, Cloonan, com estes seus
livritos, e alguns outros exemplos esparsos (mesmo no interior de
séries mais longas), conseguem atingir intensidades bem mais altas
do que por vezes projectos mais longos, no seio da indústria
norte-americana, sobretudo aquela obcecada com
personagens-propriedades...
Demeter conta a
história de uma mulher, Anna, vivendo perto de uma falésia, à
beira-mar, com o seu homem, Colin, um pescador. O seu amor parece bem
plantado, mas rapidamente nos apercebemos que existe um escolho.
Sendo uma história curta, não há grande complexidade na sua
estrutura maior, mas Cloonan, mais uma vez, tira partido dessas
expectativas e até mesmo fórmulas para criar o melhor possível os
ambientes que pretende. Bem vistas as coisas, a sua abordagem é
económica: duas páginas, uma com um desenho e a ficha técnica e
outra com uma espécie de poema-epígrafe podem ser vistas desde logo
como parte da diegese, preparando a promessa da história. Depois, em
quatro páginas apenas, já estamos inteirados sobre as personagens,
a sua relação e o que a periga. Não deixa de ser algo
desconcertante que a autora, ciente da beleza dos seus desenhos
suaves, num belíssimo equilíbrio entre uma figuração influenciada
pelas décadas de contacto com a shoju mangá e a arte de
linhas densas dos comics americanos, opte por sempre
representar personagens impossivelmente belos e jovens. Mas em que é
que isso difere dos contos tradicionais, de que bebe? A “fractura”
que Cloonan opera sobre essas imagens feitas está na forma como
distribui os silêncios e os afastamentos das personagens, os
momentos de pausa, de sonho, memórias e “fugas” em relação aos
eventos principais – muitas vezes através de uma simples técnica
de tornar os desenhos em cinzentos quase transparentes.
Se esses intervalos se
impõem, é porque eles vivem no meio de uma intricada rede de
enclausuramentos. Veja-se o modo como ela separa interiores e
exteriores, ou modos de visão das personagens e o que vêem através
de vinhetas separadas pelas janelas, com grossas linhas diagonais, ou
mesmo losangos negros, desequilibrando a “grelha” da página.
Esta escolha leva a que
haja uma concatenação de enquadramentos, enquadramentos dentro de
enquadramentos, os quais contribuem para uma espécie de ritmo visual
à narrativa, aquilo que Groensteen chamaria de tressage
(entraçamento). E de facto, esse entraçamento é quase literal, e
corresponde à sensação da personagem, presa a um espaço doméstico
que imagina protector o suficiente. Por outro lado, há também
outras formas de mostrar passagens entre espaços, mesmo que não
contíguos, nas splash pages em que temos uma qualquer
distribuição triangular no topo “despejando-se” na parte
inferior da página: o casal abraçando-se sobre as ondas sobre a
fronte febril de Colin, Anna na praia, sobre as pedras, com o olhar
perdido sobre o mar para onde Colin regressou, a imagem final, a
contra-capa...
A forma possessiva como
Anna deseja manter Colin consigo é notável pela quantidade de
imagens em que os vemos abraçados, estejam a dormir, a aproximar-se
um do outro, a fazer amor, ou simplesmente tentando proteger-se. Esta
importância do corpo é ainda sublinhada pela insistência de
vinhetas que focam somente as mãos, como se estas fossem (e são-no)
metonímias da presença táctil, do elo desejado, mas também da
perda final. Demeter é aliás um excelente exemplo, porque
curto, para uma análise formal, e também uma compreensão de que um
cômputo de quantidade não é suficiente para a interpretação de
uma obra, se não estiver aliado a questões de composição de
página, focalização e perspectiva, emprego diegético, ordenação
narrativa, e de estilo mesmo. Tem de ser uma convergência de
atenções diferenciadas que vão encontrar essa importância do
toque.
O título remeterá,
imaginamos, para a função distribuitiva e de justiça “ctónica”
da deusa grega, mas nada disso é explorado de modo directo ou óbvio.
Bem pelo contrário, Cloonan opta sempre por uma certa vagueza que,
se por um lado disfarça a simplicidade do seu gesto narrativo e de
composição, por outro aumenta-lhe a possibilidade de interpretação.
Pois essas simplicidades não são nunca sinónimo de fraqueza
alguma.
Sem comentários:
Enviar um comentário