Armazéns e arquivos, fetiches e fósseis, Ou, os fanzines em ruínas de João Bragança. A história do desenvolvimento etimológico da palavra “fanzine” não é particularmente complicada, nem tampouco se estende demasiado no tempo. Porém, na sua curta vida, atravessou um bom número de áreas distintas, agregando significados por vezes distantes, talvez mesmo incompatíveis, mas que ainda assim vão sobrevivendo nos seu usos. Os projectos editoriais de João Bragança arrastam consigo, como um fóssil, alguns dos sentidos mais recuados da palavra, mesmo que a publicação Succedâneo tenha sido, como dissemos noutra ocasião, o fanzine menos fã e menos zine que conhecemos.
“Fanzine”,
significando estritamente uma publicação dedicada a um qualquer
tema “amado” por um grupo de interessados, os “fãs” (em si
mesma uma palavra que abrevia os “fanáticos” de uma área de
interesse, seja ele o desporto ou uma linguagem cultural), remete à
passagem das décadas dos anos 1930 e 1940 nos Estados Unidos (se bem
que se possa ainda criar uma história mais alargada da “underground
press”, de que o escritor Alan Moore fez um esboço, “Going
Underground”, na sua revista Dodgem
Logic no.1). Tratavam-se de publicações produzidas por não-profissionais e
através de tecnologias de reprodução mecânica acessíveis e
baratas (mas também de uma qualidade gráfica, em termos técnicos,
limitada), sendo a fotocópia tão-somente aquela que pautou as
experiências de quem os cultivou no final dos anos 1980 e início
dos 1990, em cujo intervalo Bragança se inscreve (a Succedâneo
existiu entre 1996 e 2006, contando 32 números, aos quais se
acrescentam outras experiências editoriais). Tendo-se iniciado com
amadores da ficção científica, rapidamente se estenderia a outros
géneros fílmicos ou literários, como o horror, ou à música, como
o rock'n'roll e mais tarde o punk, e a banda desenhada, um modo
expressivo particular, com a sua própria história e espaço social.
Mas a palavra nasce da junção das palavras inglesas “fã” e
“magazine”, que em si mesma vem de um sucessivo empréstimo: do
francês (magasin),
deste ao italiano (magazzino),
e deste ao árabe (makhzan),
que também daria origem ao vocábulo português que cobre o seu
sentido original: “armazém”. A palavra em inglês perderia esse
significado pelo século XVIII, que a empregaria a vários tipos de
publicação, sempre na ideia de ser um ajuntamento, mais ou menos
organizado, de objectos heteróclitos ou partilhando algo em comum.
O
fanzine pós-punk, que agregaria a sua específica cultura e ética
do do-it-yourself
(“faça-você-mesmo”)
viria a contribuir com duas faces decisivas. Por um lado, aquela
formal, que permitiria a abordagem do bricolage,
da assemblage,
a total displicência para com regras de etiqueta, de design, da
gramática, da correcção burguesa, etc., sublinhando assim uma
atitude de conflito. Por outro lado, a face da emergência de uma
politização do indivíduo, bebendo quer do feminismo quer das
conquistas sociais de várias minorias societais (em termos de
representação cultural). De facto, um dos teorizadores do fanzine,
Stephen Duncombe, no seu artigo “'I‘m
a Loser Baby': Zines and the Creation of Underground Identity” (in
Hop
on Pop: The Politics and Pleasures of Popular Culture),
escreve o seguinte: “O
que [a cultura underground]
faz, porém, é criar um espaço no qual os indivíduos podem
experimentar alternativas ao status
quo:
novas formas de configurar a noção de comunidade e solidariedade,
contra-definições de trabalho e consumo, e... reimaginar o mais
basilar dos blocos de construção política: a identidade”
(sublinhado no original, p. 228).
Duncombe
procura uma análise muito próxima de uma subjectivação que é
extremamente politizada, e que se corrobora por uma grande parte dos
fanzines que analisa – assim como pela cultura da banda desenhada
underground
dos anos 1970 e, mais tarde, a alternativa
dos anos 1990, que lhe está associada, pautada sobretudo pelo género
narrativo da autobiografia. No entanto, o caminho procurado por João
Bragança é outro, bem diferente, mas que não explora menos “novas
formas de configurar a noção de comunidade e solidariedade”, até
precisamente pela construção absolutamente circunstancial e
colectiva dos seus objectos e, se quisermos estender o seu título -
sucedâneo, algo perfeitamente substituível, diminuído na sua
individualidade pela função
- numa metáfora que enquadre esse processo, pela deslocação que
procura fazer do seu sentido último. Se o pessoal é político, o
Succedâneo
não procura remeter a um cerne pessoalizado, de um
indivíduo, empírico ou simbólico, mas a uma atomização que ainda
assim permitirá a emergência de “novas personalidades, ideias e
políticas” (Duncombe: 247).
Se
os primeiros números do seu fanzine principal começam em passos
mais ou menos tradicionais, mas desde logo integrando muito a ética
dos objectos encontrados, da apropriação, do apagamento das marcas
autorais - práticas que no mundo da arte são desde logo etiqueta de
confirmação da autoria, mas que na esfera social da banda
desenhada/fanzines apenas aumentava o peso do ruído que as apaga da
centralidade dos palcos que mereceriam -, aos poucos começam a
integrar plataformas formais, de suporte, de materialidade, que
remetem a esferas que lhe são exteriores: postais, cromos,
fotografias de objectos, papel de parede, cadernos pautados ou
quadriculados, cadernos de escola do velho regime, “naperons”
de plástico prateado e/ou dourado,
flyers (por vezes das performances do próprio Bragança),
publicações de vários tamanhos, com vários tipos - gramagem, cor,
textura - de papel num só número, etc. Isto é, aos poucos, o
arquivo vai aumentando, o armazém vai abrindo mais espaços.
O
uso da palavra arquivo
não é, de forma alguma, inocente. Usamos este conceito de um modo
bem específico, e associado àquele que está previsto num texto de
Jacques Derrida,
“Archive Fever: A Freudian Impression”
(in
Diacritics.
Vol. 25, no. 2). A
criação de um arquivo não é apenas um processo de selecção e
integração, mas igualmente de exclusão, e uma exclusão
particularmente poderosa, uma vez que o que é excluído é excluído
da própria possibilidade de arquivamento, isto é, da memória. A
“tecnologia arquivística... determina... a própria instituição
do evento arquivável” (Derrida: 18). Os arquivos de João
Bragança, porém, como é constatável de imediato, são construídos
à margem das mais habituais considerações políticas e sociais do
que é merecedor de salvamento oficial. Podemos encontrar no
Succedâneo
não apenas um arquivo do imediata e quase-espontaneamente efémero
como um arquivo de ruínas instantâneas, os sinais da fragilidade
intrínseca de uma cultura, industrial, tardo-capitalista, que se
apresenta como uma sempiterna e prístina juventude capaz de uma
produção continuamente perfeita e sustentável. Bragança, actuando
como uma espécie de recolector, ou melhor, de respigador, aponta de
imediato para as quebras do vaso, para a o bicho na maçã da árvore
do Bem e do Mal, serve-nos uma sandes de restos de ontem. Derrida
explica como, no acto de arquivar, “esta passagem institucional do
privado para o público nem sempre significa uma passagem do secreto
para o não-secreto” (10). Como no caso do Anjo da História de
Benjamin, o acto de respigagem de Bragança permite-lhe ter os olhos
bem abertos na direcção das ruínas e até mesmo assinalá-las, mas
está fora do seu alcance a sua recuperação.
A
dimensão material desse trabalho é por demais visível. Depois
daqueles primeiros passos que fariam escapar a Succedâneo
ao formato clássico da “revista fotocopiada e agrafada”, viria a
incluir saquinhos de plástico, mangas de plástico de embrulho
enroladas que serviriam de capas, até encontrar outros
suportes-capa, como caixas de plástico, luvas de trabalho
industrial, sacos de dejectos de cão. A inclusão de objectos
tridimensionais também não se faria esperar. Sementes, pensos
higiénicos, solas de borracha com pitões, CD-Roms, revistas antigas
(isto é, revistas que não a própria Succ,
como também era conhecida, mas títulos-parasita, ou pelo contrário,
hóspedes dos quais a Succedâneo
se tornava o parasita - eis outra metáfora possível de explorar),
pão, etc. Até encontrar dois excessos, digamos assim, nos dois
últimos números, ambos de 2006: o carrinho de madeira (dois
exemplares) e o saquinho de pó branco suspeito (sendo uma obra
“pós-11 de Setembro”, ela pode ganhar leituras de uma
provocação), ou por outras palavras, o fetiche máximo do objecto
raro e o mínimo no objecto atomizado (mas como todos os fetiches,
insistindo na sua materialidade e traduzindo um qualquer afecto, de
acordo com Laura U. Marks em The
Skin of the Film. Intercultural
Cinema, Embodiment, and the Senses,
e que voltaremos a citar; pg. 80).
Esses objectos, extensivos ou redutores, lançam dessa forma pistas,
mesmp que contraditórias, não apenas materiais para o mundo, pois
já não se trata de representação,
mas de inclusão e participação. São mapas para uma performance
sobre o mundo, uma vez que seria possível plantar as sementes, usar
a luva e as carteiras, comer o pão (possível, mesmo que não
aconselhável), conduzir o carro. Estas questões de forma,
multisensoriais e multimodais, vêm exacerbar o papel de actividade
política desde logo prometidas na ética primeira do fanzine.
Voltando a Marks,
“as
questões da forma não podem ser separadas das condições políticas
em que estas obras são produzidas”
(10).
Não
há aqui espaço para discorrer sobre o estado da arte da publicação
em que Bragança trabalhou, mas compreender-se-á facilmente que o
caminho por ele trilhado, e os seus colaboradores (entre
os quais, alguns celebrados da banda desenhada, como Janus e Isabel
Carvalho, mas não só),
era quase perpendicular às expectativas comerciais criadas pelo
mundo mais visível das artes, da performance, da banda desenhada.
Essa
materialidade parece não só cumprir
como estender uma das potencialidades do conceito da “imagemtexto”,
de W.T.J. Mitchell, que é o de providenciar “locais
epistemológicos múltiplos”, de acordo com Tanya K. Rodrigue
(“Postsecret
as Imagetext: The Reclamation of Traumatic Experiences and Identity”,
in The
Future of Text and Image: Collected Essays on Literary and Visual
Conjunctures;
pg. 47).
Pois ao mesmo tempo João Bragança numerava e assinava cada um dos
exemplares da publicação. Qual a razão desse acto adicional?
Sublinhar precisamente o método do arquivo? Ou enquanto imitação
do mundo da banda desenhada, obcecada com a ideia da dedicatória,
que é uma espécie de transubstanciação do objecto mecanicamente
reprodutível em objecto-único? Ou mesmo do mundo da arte (livros de
artista inclusive), também obcecado com o conceito (a um só tempo
estético e económico) da “assinatura”? Bragança agrega assim
experiências advindas de áreas tão distintas (ou próximas,
conforme o enquadramento disciplinar) como os postzines
de banda desenhada, os livros de artista, os objects
trouvés,
etc. São práticas que tanto partilham alguns gestos como ocupam
espaços distintos, e que encontram no Succedâneo,
mas igualmente nos dois números do Pecarritchitchi
(sendo o primeiro um tubo de plástico com um livro feito de selos e
uma moeda e o segundo um livrinho cuja capa é uma minúscula
amêijoa), catalisadores.
Cada
número surge assim como um sinal de actuação no seu determinado
momento histórico. Tratou-se de uma performance de arquivamento
desse bloco de sensações determinado espácio-temporalmente, mas ao
mesmo tempo era um acto falhado, se entendermos o arquivo como algo
capaz de nos devolver esse mesmo momento “tal
como era”, númeno, impossível. Se entendermos como forma de
fotografar a ruína, de nos confirmar a falha e a necessidade de
repetir o acto de subjectificação, o acto político, porém, então
é um gesto feliz, é um perfeito gesto de deslocação - temporal,
espacial, conceptual - do fóssil. De novo, Laura U. Marks: “Eis
então a diferença entre fetiches e fósseis. Os fósseis retêm a
forma do levantamento cultural, convidando perpetuamente à
descodificação de conflitos passados. A sua qualidade 'radioactiva'
pode diminuir à medida que são feitas ligações ao estrato
histórico em que foram criados, mas eles não desaparecem. Os
fetiches, apesar de serem tão densos em termos de significado quanto
os fósseis, tendem a dissolver-se depois da sua necessidade se ter
dissipado” (124).
Recuperar
o Succedâneo,
portanto, num meta-exercício de arquivamento (ou museificação),
tem de servir o propósito de não
deixar dissipar a necessidade da função.
Nota final: todas as fotografias são de João Bragança.
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