8 de agosto de 2005

Que sejas bem-vindo se vieres por bem.


Este blog não só é meu, que o faço, como vosso, que o lêem. Mas um blog é como uma casa à qual se deixa a porta aberta, convidando, como um cartaz que me mostraram há pouco, dizendo: “expressamente proibida a entrada, a menos que queira cá entrar.”
Mas, se é como uma casa, há certas regras a respeitar, apesar de toda a liberdade que se permite na internet, que infelizmente é abusada, esquecendo-se o preceito dela terminar onde a dos outros começa. É como uma casa: poderemos achá-la mal decorada, feia, apertada, inapropriada, por qualquer razão, mas não o devemos dizer à cara do proprietário, seja amigo próximo ou não.
Como saberão quem lê com paciência estes textos (ou outros meus que conheça), e tenha trocado seriamente duas ou três palavras directamente comigo – o meu email está disponível e tenho sempre respondido – não os apresento todos de forma igual. Por vezes tratam-se de meros “recados”, pequenas “notícias”, “chamadas de atenção”. Por outras, tento desenvolver mais algumas considerações, de juízo estético, claro, e ainda algumas vezes, tento associar os textos que faço às minhas contínuas investigações de um cariz mais académico. Pois é esse é o meu caminho, a minha escolha, e não estou sob as ordens ou o jugo de ninguém para que não o possa fazer.
Não quero entrar em polémicas, em discussões alargadas – já tidas por outros bem mais informados e inteligentes que eu – e muito menos em “bate-bocas”, mas sinto-me na necessidade de defender de palavras menos felizes aqui deixadas por leitores menos graciosos, to say the least. O único propósito do meu blog, aliado a outros canais de expressão a que me dedico, é a de cumprir uma possível via de discussão balizada, teórica, académica (só tem medo do academismo o analfabeto ou o excluído, não o seu consciente adversário), intelectual (não tenho medo da palavra, pois não é sinónimo de, malgré l’idiot, “filho da puta”). E não sou o primeiro a fazê-lo, nem em Portugal (cf. meus artigos no site da Bedeteca e doutros meus companheiros), nem para além do país.
Mas parece haver uma certa resistência no próprio seio da comunidade bedéfila contra a possibilidade de uma aproximação à banda desenhada menos saudosista, menos nostálgica, menos fanática, e mais cerebral. Como diz o meu amigo D. I., são os “bedófilos”.
Walter Benjamin é um crítico alemão com o qual tenho estado a combater – isto é, lendo-o, atravessando as dificuldades que me suscita, mas aprendendo. Gostaria de acreditar que o meu combate com ele é um combate em termos heideggerianos, em que ambos os adversários se reforçam (A Origem da Obra de Arte). Ora, duas palavras deste autor dos anos 1920-30: “O escândalo que sentem, em relação a qualquer crítica de arte sob o pretexto de que ela se aproxima demasiado da obra, aqueles que não encontram nela o reflexo da sua familiaridade egoísta, testemunha uma ignorância tal, que numa época, para a qual a origem da arte definida rigorosamente se torna cada vez mais viva, não deve a esse escândalo qualquer argumentação.” (“As Afinidades Electivas” de Goethe, trad. inédita de M. Filomena Molder). Ora é precisamente desta “familiaridade egoísta” que mais sofrem a esmagadora maioria dos leitores dessa mole estranha e multímoda a que se dá o nome de banda desenhada, sem dar azo aqui às distinções necessárias de épocas, geografias, autorias, géneros, qualidades, propósitos, programas, etc. Ninguém em seu perfeito juízo negaria a necessidade (e da existência!) de discurso(s) crítico(s) sobre cinema, artes visuais, literatura, dança contemporânea, outras artes, apesar de nem todos saberem onde exactamente ele(s) existe(m) e como se estrutura(m). Mas na bd, basta ser fã para estar acima disso e, mais, arrogar-se o direito de negar quem o cultive!
Em segundo lugar, e sem entrar em grandes explanações – pois os livros de e sobre W. Benjamin são acessíveis e não sou particularmente dotado para fazer de professor de filosofia ou de crítica, e basta dizer “leiam-no” -, eis como metaforicamente (Gleichnis, “imagem” ou “símbolo”) o mesmo autor aclara a tarefa do crítico: “a obra que cresce [é] uma fogueira em chamas, então o comentador [o que não chega a avançar no território da crítica – minha nota] está diante dela como o químico, o crítico como o alquimista. Enquanto que para aquele a madeira e as cinzas persistem como os únicos objectos de análise, para este só a própria chama guarda o enigma: o do ser vivo. É assim que o crítico pergunta pela verdade, cuja chama viva continua a arder por sobre os pesados destroços daquilo que passou e as cinzas ligeiras do vivido” (idem).
A imagem que apresento aqui é como que um estirar essa metáfora de Benjamin. Trata-se do cartaz do filme de Louis Feuillade de 1913, da série Fantômas: Le Mort qui tue. Este título não é um redobrar, e é não só um pleonasmo, mas uma tautologia. O trabalho do crítico é ler o lido: encapuzado com o seu teatral traje (e apodo) de malfeitor, criminoso, sonda a pulsação de um morto, e nesse silêncio (re)conta-nos a vida dele. Ao seu lado, um bonacheirão, nulo e simplório polícia finge perceber o que se passa e manda bitates: é o comentador, o vulgarizador, o amador (na sua inferior acepção, não de amante). O mau fã, o leitor distraído, o que age impetuosa e irreflectidamente confunde este segundo com o primeiro, e chama a ambos “polícias de gosto”, “juízes”, sem entender que o juízo do primeiro é apenas uma tarefa necessária de fazer reviver a obra de arte, e o do segundo uma baixa opinião para encher frases.
Dito tudo isto, não pensem – mais um sinal de não me conhecerem pessoalmente – que não admito críticas ao meu trabalho, às minhas ideias, às minhas tomadas de posição, aos meus “recados”. Bem pelo contrário, aceito e dou as boas-vindas mesmo, pois – espero que os bourgeois se empatem – sigo a fórmula de Kant em que a arte (ou o juízo estético) não se disputa, mas sim discute. Trocando argumentos, apontando as teses com as quais não se concordam, trocando ideias. Prefiro ter como interlocutor (e até “inimigo”) um Ivan, o Terrível, que possuí nome próprio, uma biografia e, acima de tudo, um programa, uma estratégia, do que Ivan, o furacão, que por natureza é ciclópico, ou seja, não tem profundidade de campo, e tropeça sempre que caminha, arrastando tudo de igual forma, sem distinção, brutalmente, sem inteligência. Posted by Picasa

2 comentários:

andré lemos disse...

Caro Pedro, há de facto pessoas que não sentem a bd como uma Arte com toda a liberdade que lhe está inerente, preferindo isso sim, defender-se num autismo criativo e crítico aflitivo. Todos temos direito de escolher aquilo que nos faz "vibrar", mas é quase obsceno criticar-te pelas tuas escolhas, visto seres talvez dos críticos de B.D. que mais eclético se apresenta no nosso panorama nacional. Defenitivamente não és um "bedófilo"(ainda bem!), tal como não o são Domingos Isabelinho e João Paulo Cotrim, que com as devidas distâncias se "atrevem" a analisar a B.D. de uma forma pessoal e sentida, com tudo de bom e de mau que isso acarreta, não deixando contudo de traçar um perfil académico das obras em questão. Sim conheço pessoalmente o Pedro Moura e até estou a trabalhar num projecto com ele, e então?

Pedro Moura disse...

Com amigos assim, para que procuro eu inimigos?
Abraços, André!