Biografia entusiasta e encomiástica de Alan Moore, este trabalho do também autor de banda desenhada G.S. Millidge (Strangehaven) é uma espécie de colagem de informações provindas de variadíssimas fontes para dar este resultado: um coffee table book sobre um autor cuja importância não é somente sentida no circuito ou género no qual ele tem trabalhado sobretudo, a saber, a indústria norte-americana mainstream de super-heróis. Se bem que tenha sido nesse círculo que as suas obras mais celebradas e o seu renome tenham sido fundados - com V for Vendetta, Watchmen, Marvelman/Miracleman, Swamp Thing - bastaria pensar em From Hell e Lost Girls para encontrar dois monumentos noutros circuitos bem distintos, ou recordar Halo Jones, The Bojeffries Saga, Brought to Light, Maxwell the Cat (desenhado pelo próprio), A Small Killing, The League of Extraodinary Gentlemen, Promethea, para descobrir géneros transformados por Alan Moore de uma forma ou outra, e em que, em vários graus de sucesso comercial e crítico, terá fundado novas vias de criatividade, imediatamente imitadas com maior ou menor fortuna (usualmente menor, pois havendo um aproveitamento dos efeitos de superfície por outros autores, não se repete a inteligência e a pertinência da substância).
Talvez mais do que qualquer outro autor, Moore foi responsável pelo fim da desatenção generalizada que existia para com o “escritor” nas relações colaborativas da banda desenhada (desse ramo, claro está), abrindo caminho a outras estrelas entre os argumentistas, tal como foi ele quem deu a ver que também na banda desenhada comercial de género era possível introduzir facetas mais complexas quer de temas, tratamentos e princípios éticos, quer de modos de estruturar e entrosar as imagens e os textos. Pois é preciso não esquecer que, apesar de Moore ter de facto trazido personagens de alguma modelagem psicológica, ele não estava nem sozinho nem seria o primeiro a fazê-lo, ainda que possamos dizer ter sido ele quem trouxe essa inflexão para um género em particular que era desprovido dessa complexidade. Tudo deve ser contextualizado de um modo específico. Se bem que concordemos que Watchmen seja um livro incrível (e até encontremos em V for Vendetta um maior prazer na releitura), é possível que esse seja um livro mais apreciável pelos convertidos do género dos super-heróis e que haja outras obras mais rapidamente capazes de conquistar leitores diferentes… Experiência sociológica a ter em conta.
E como se essa produção magnífica de banda desenhada não bastasse, surgem depois o seu romance Voice of Fire (traduzido como A Voz do Fogo em português por David Soares, pela Saída de Emergência), a sua carreira musical e perfomativa (tendo esta última dado origem a dois livros muito marcantes de Eddie Campbell, The Birth Caul e Snakes & Ladders), os filmes, as pequenas histórias espalhadas um pouco por todo o lado, e demasiados etcs. para listar, para o transformar numa multifacetada personalidade. Aliás, ao longo do livro, mas com maior ênfase nos capítulos finais, a carreira “musical” de Moore é explorada, falando-se dos espectáculos ao vivo, de música e magia, e ainda é-nos ofertado um CD com algumas raridades sonoras (mesmo para aqueles que seguem as edições do grupo The Moon and Serpent Grand Egyptian Theatre of Marvels, nome escolhido por Moore, David J, Tim Perkins e outros colaboradores, “porque nos parecia um bom nome. Queríamos algo grandiloquente, um pouco louco, e com alguns laivos de fraude” (pág. 252).
Millidge colhe de dezenas de entrevistas uma série de citações do próprio Moore, não trazendo portanto grandes informações novas que não estivessem disponíveis ou tratadas noutros locais, que contribuem para este edifício de atenção, como A Portrait of an Extraordinary Gentleman, The Exraordinary Works of Alan Moore ou o mais recente Alan Moore: Conversations, que reúne precisamente uma série de entrevistas dadas ao longo de anos. Acrescentam-se notas dadas por colaboradores e amigos, para depois, ao longo de 300 páginas profusamente ilustradas, organizando o seu texto em curtos capítulos mais ou menos coerentes - a esmagadora maioria dos quais orbitando em torno de um só título ou núcleo de trabalhos -, criar a narrativa possível do crescimento, maturação, primeiras experiências profissionais, as primeiras conquistas, os anos conturbados, a “saída” do foco da fama e os caminhos alternativos até à nova vida “underground local” do autor inglês. São demasiados os temas, ou tratamentos, ou informações ou curiosidades presentes no livro para dar aqui breve conta, e muito menos debatê-los com a atenção merecida: a sua interpretação de magia, a relação com Hollywood, o seu mergulho cabal no local para chegar à universalidade do espírito humano, a sua pesquisa das especificidades da banda desenhada, etc.
Tratando-se de uma biografia construída em torno de várias entrevistas dadas por Moore, acrescentam-se-lhe um punhado de documentos que raramente terão visto uma luz tão pública: algumas fotos pessoais, no seu espaço doméstico e familiar - que nada tem de surpreendente, antes pelo contrário é bastante “normal” e “caseiro” - páginas dos seus cadernos de esboços, alguns instrumentos de trabalho, fanzines, trabalhos antigos e obscuros, sobretudo os primeiros, quer textuais quer de desenhos, etc. No entanto, não há imagens do seu espaço de trabalho propriamente dito - Moore escreve numa cadeira, e depois passa as coisas para a sua “máquina de escrever” (única função do computador) -, nem do seu famoso vitral com a árvore das sephiroth, apesar disso tudo ser mencionado. No entanto, não há nenhuma fotografia do seu famoso fato branco, comprado em 1987. Há outras pérolas do género, porém. É claro que a vida privada de um autor não deveria ser apresentada publicamente, pois de nada serve a melhorar a nossa apreciação da sua obra, e muito menos conspurcada por um voyeurismo barato.
Ainda assim, as informações textuais e visuais que nos chegam dessa vida privada dão-nos a entender que as origens de Moore se encontram num estrato social bastante baixo e difícil, o que torna a sua “subida” e libertação mais individualizada, claro, mas ao mesmo tempo iluminam alguns dos seus posicionamentos políticos e éticos face a certas realidades, desde decisões governamentais até à suposta oposição dos sexos, passando pelo papel dos artistas e criativos numa sociedade com muitas barreiras a deitar abaixo até perspectivas perante questões mais filosóficas (se bem que jamais se chegue a um sistema propriamente dito).
Talvez o mais interessante neste acesso a certos documentos se relacione com o seu método de trabalho, muito disciplinado, prevenido e estruturado de um modo muito racional e produtivo. Essa é uma das pistas que levaria à ideia de que Moore é menos um “génio”, no sentido de algo que ultrapassa o controle racional da própria pessoa, que implica a noção da catadupa de criatividade e expressividade de um autor, mas mais de um extremamente inteligente e esforçado criador que pensa de modo arguto sobre o meio que emprega. É isso o que explica que mesmo as mais secundárias das suas histórias curtas, mesmo que de duas páginas, mesmo que “presas” a um universo de referências que não possa escapar à economia expectável das marcas registadas das personagens utilizadas, resulte sempre numa peça muito bem construída, ora reveladora, ora inovadora, ora cheia de humor. Ou, de quando em vez, tudo isso ao mesmo tempo. É isso o que o torna diferente de outros argumentistas com o qual se poderia confrontar, como Neil Gaiman ou Grant Morrison, cuja produção é feliz, muito feliz, num ou outro título, mas de forma alguma de modo transversal e continuado. Além do mais, em termos de compromissos criativos, subserviência às máquinas das indústrias culturais em que trabalham e “fretes”, Moore não tem quase nada…
Ainda assim, sente-se que, na ausência de um trabalho directo de nova entrevista ou confronto desta informação com o autor, perdeu-se uma oportunidade de tentar revelar questões mais críticas, posicionamentos mais vincados da parte do autor, ou mesmo procurar respostas dele em relação a críticas que têm surgido em vários trabalhos e quadrantes em relação à sua obra. Nada que surpreenda, todavia, num projecto desta natureza, que não se pretende cobrir de controvérsia, claro (aliás, o acesso aparentemente sem problemas a imagens da DC e da Marvel e dos filmes que lhe adaptaram - ou melhor dizendo, corromperam - a obra revela desde logo alguma suplesse indesmentível).
Voltando ao método, temos por exemplo acesso a esta capa de uma publicação independente em que Moore participou na década de 1970, The Northampton Arts Group Magazine, em que surge uma personagem que não ganharia a vida desejada, mas décadas mais tarde viria a ressurgir em Promethea como The Painted Doll. Revela-se aqui uma ideia de reciclagem e espera paciente das ideias do autor.
Outro documento valioso é a imensa folha que planeava capítulo a capítulo e personagem a personagem aquela que terá sido a maior obra-prima que nunca foi: Big Numbers, projecto de Moore e Sienkiewicz (e Columbia). Uma vez que muito dificilmente essa obra será retomada - e apesar de outras, como From Hell e Lost Girls, terem demorado muitos anos a serem cumpridas, esta prender-se-ia com um enquadramento circunstancial que não pode ser repetido e, portanto, retiraria a força ao projecto - fica esta relíquia na possibilidade de ressoar na mente dos seus leitores hipotéticos.
Como se aventou, não estamos perante uma obra analítica nem reveladora nem exaustiva, mas antes uma oferta calma e celebratória da carreira do escritor. Há muitas considerações que poderão levar os leitores a querer reler a sua obra com outro olhar, ou então a descobrir algumas peças que se pudessem desconhecer, e há seguramente material aqui desconhecido de muitos leitores, mas cuja acessibilidade não será muito fácil, de certeza. Ainda assim, bastará a sua indicação para tornar a imagem de Moore um ou dois graus mais complexa.
A própria escolha do título e da imagem da capa lança Moore para um universo livresco mais tradicional do que corresponde verdadeiramente à sua produção, mas essas escolhas são também expectáveis no interior deste projecto. Síntese, clareza e excelente packaging, como soe dizer-se.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
21 de fevereiro de 2012
Alan Moore, Storyteller. Gary Spencer Millidge (Ilex)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:47 da tarde
Etiquetas: Academia, Mainstream, Reino Unido
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