Penso que não será a primeira vez que indicámos aqui a produtividade de um exercício que é ler dois livros que, de uma forma ou outra, se iluminem mutuamente (ainda há pouco, a leitura de MetaMaus e de Katz foi proveitosa para ambos os casos). Ora, à luz de Los Profesionales (aqui em edição francesa), de Carlos Giménez, juntámos a da obra mais famosa de Esteban Maroto, a monumental, ainda que quase instantaneamente olvidável, Cinco por Infinito, editada há pouco num só volume, e que discutiremos em breve.
Giménez foi colega de Maroto, ambos tendo sido discípulos de Manuel Lopez Branco, uma referência importante na banda desenhada espanhola, e parecem constituir aquilo que se apelida, nos estudos espanhóis de banda desenhada, de Escola de Madrid da década de 1960 (se bem que a mudança depois para Barcelona, onde existia uma mais viva indústria comercial, altere os parâmetros destas inscrições). Estes dois artistas, tal como muitos outros artistas espanhóis, trabalhavam em agências internacionais que produziam material para o mercado inglês, alemão e outros, para revistas comerciais infantis (como, por exemplo, Fix und Fox) e juvenis (como as revistas de guerra britânicas, da Fleetway e DC Thompson), produzindo trabalho derivado, muitas vezes de qualidade sofrível e de um pagamento irrisório. Tudo isto, de resto, é matéria de Los Profesionales, que pode ser considerado como um retrato desses trâmites na Barcelona da segunda metade dos anos 1960 (de resto, como El Invierno del Dibujante será de um outro quadro de referências).
Poderemos dizer que Los Profesionales é a terceira parte de uma trilogia que havia iniciado em 1977 com Paracuellos. Recordemo-nos que é de 1972 que data Binky Brown Meets the Holy Virgin Mary, talvez a primeira banda desenhada autobiográfica indicada na bibliografia especializada, se bem que tanto Justin Green como Giménez não sigam todos os elementos previstos no “pacto autobiográfico” teorizado por Ph. Lejeune (coincidência entre autor empírico, narrador e protagonista), mas optem antes por mecanismos que mais tarde seria descritos como “auto-ficção” ou que pelo menos permite alguns desvios ligeiramente fictícios. Essa discussão é muito complexa e já a tentámos noutros locais. Por outro lado, não estaremos aqui a querer demonstrar nenhum tipo de ligação directa entre as duas obras, claro. Bastará por agora dizer que esta(s) obra(s) particular(es) de Giménez podem tanto ser consideradas autobiografias propriamente ditas como não, independentemente do modo como o próprio autor as apresenta, discursos que poderão afinal fazer parte da auto-mistificação… Não se pode, porém, negar, que pelo menos no panorama espanhol - mas com consequências para além dessas fronteiras - Giménez fundaria um terreno que apenas mais tarde se revelaria mais procurado. É, portanto, em retrospectiva que o seu trabalho ganha um maior peso. Aliado a muitos autores da sua geração, como Filipe H. Cava, por exemplo, é igualmente considerado como um agente importantíssimo no advento de uma banda desenhada para adultos em Espanha, tal como pelo reconhecimento dos direitos políticos e económicos dos seus autores, o que num quadro de uma Espanha fascista e cuja resposta era muitas vezes facínora, não é de somenos importância.
No seu site, o autor apresenta uma categoria a que dá o nome de “Histórias da Vida”, separando-as de outros géneros mais clássicos. Paracuellos, Barrio, Los Profesionales, e Rambla arriba, Rambla abajo (este último incluído neste volume integral, uma vez que há uma coincidência de personagens, espaço e época) fazem parte dessa categoria, procurando-se assim um princípio qualquer de coerência e organização na obra do autor.
De resto, este livro joga com todo um jogo de identidades mais ou menos (re)veladas. Não saberemos até que ponto é que as correspondências são totais, imediatas e nítidas, mas os desvios permitem a reaproximação à realidade histórica. Por exemplo. a agência em que trabalham os autores chama-se, no livro, “Creaciones Ilustradas” corresponde à real Selecciones Ilustradas, o editor Filstrup corresponde a Josep Toutain, o autor Pablo García García seria o próprio Giménez, a série western em que trabalha, “Pingo-Bang” é na verdade Gringo , o argumentista Blas Peribañez [nesta imagem] é Manuel Yáñez Solana, etc. Vários momentos epitextuais desta obra - prólogos, notas, introduções, materiais extra-narrativos - sublinham sempre o facto de que as personagens são “fictícias”, e que se houver correspondências é “coincidência”, e por aí adiante… Contudo, para que esta obra ganhe uma importância superior a essa ligação histórica, que merece, é preciso que se ultrapasse essa contingência.
Los Profesionales seria publicado em pequenos episódios, cada um apresentando uma história ou anedota, melhor dizendo, completa em cerca de cinco páginas, em revistas tais como Rambla e a francesa Fluide Glacial (que agora edita estes volumes “integrais”), se bem alguns dos seus tomos (como o 3º) apresentem histórias mais desenvolvidas, cruzando várias linhas narrativas. Rambla arriba, Rambla abajo, apresentado no fim deste volume, é um caso muito particular na construção da narrativa, e a ele voltaremos.
A natureza fragmentária da série, portanto, nunca é apagada. Trata-se mesmo de uma espécie de colagem de pequenos acontecimentos entre os membros do estúdio, desviando a atenção de um só protagonista - o que não ocorria em Paracuellos ou em Barrio - para se atomizar numa troupe mais ou menos corrente. Esses acontecimentos revelam tanto de uma candura desarmante, de um tempo em que não se imaginariam liberdades e possibilidades de expressão como as que hoje existem, e também de uma crueldade tremenda: o tipo de partidas que os colegas pregam uns aos outros tocam as raias do asco e do monstruoso, muitas vezes, mas a forma como o autor as estrutura parece servir a mostrar como o tecido social que era criado entre estes artistas de banda desenhada só poderia reforçar-se se atravessasse estas mesmas maldades. Recordemo-nos de que num período de “paz podre” do fascismo franquista, estes elos encontravam assim um forma de resistência não-pública, não-politizada, mas que ainda assim faziam sentir essas dimensões.
A carga sociológica é de facto o que parece mais assinalado por Giménez, e é nas margens das histórias que vão surgindo aspectos que poderão ser tomados como comentários da vida espanhola da época. Há vinhetas de transição ou de abertura ou fecho de um episódio que em nada adiantam à trama central, mas que criam todo um ambiente circundante, que não apenas tem a ver com uma espécie de establishing shot da acção, mas das circunstâncias sociais e políticas. Num dos episódios vemos uma manifestação a preparar-se no local em que uma das personagens marcou em encontro com uma rapariga. Vemos os guardias armados, e o cartaz dizendo Espana es diferente ou 25 anos de paz. Quando panfletos políticos são espalhados no chão, os polícias ameaçam quem os tentar apanhar de arma em riste, “como seu eu fosse um assassino” (pensa o protagonista). Não há comentário de um narrador externo, mas não é necessário, pois a violência e a opressão desse ambiente é por demais clara.
Os aspectos mais intimamente relacionados com o modo de trabalhar são, claro está, tema principal: como se entra nesta indústria, que tipo de respeito se (não) conquista, como se recebem os argumentos e se lhes responde, que ritmos de trabalho existem, que desculpas se arranjam para atrasar ou para pedir adiantamentos ou para enganar o patrão ou que atalhos tomar para despachar, etc. E, sobretudo, que relacionamentos se criam entre os colegas do atelier e que tipo de relação (pautado por ilusões, sonhos loucos, delírios) se cria para com a banda desenhada. São muitos os pormenores curiosos e surpreendentes, cada qual constituindo uma lição de história sócio-económica desta disciplina criativa e ao mesmo tempo um brutal contraste com a situação actual. Se haverá uma ideia, da parte de alguns, de que existia uma “idade de ouro” devida à grande distribuição e visibilidade dos trabalhos, a realidade profissional dos criadores era miserável… Daí que se compreenda que a nostalgia é sempre, parcialmente pelo menos, cega.
Regressando ao site do autor, na secção dedicada a esta série, o autor explica como a criou, reunindo os seus antigos colegas Adolfo Usero, José González, José María Bea, Luis García, Víctor Ramos e Alfonso Font, gravou anedotas contadas por todos, e depois sublimou-as no seu trabalho auto-ficcional. É preciso entender que este é (ou era) um grupo extremamente activo e que se entrecruzava e entreajudava em toda uma série de projectos diferentes. Existe um livro que é dedicado a este trecho da história da banda desenhada espanhola - da criação de Los Profesionales, não da época que retrata, que é anterior -, Los cómics de la transición (el boom del cómic adulto 1975-1984), de Francesca Lladó, que contribui, pelo menos um pouco para quem não conhece todos os seus trâmites e pormenores, como nós, para uma primeira ou segunda abordagem, ainda que seja um mundo imenso. Estes artistas, e muitos outros, trabalhavam juntos em séries, ajudavam-se nos trabalhos individuais de cada um nas agências internacionais, fundaram revistas, produziam bandas desenhadas para toda a espécie de público, procuravam formar novos públicos de facto (no sentido de diversificação de géneros, humores, qualidades e naturezas dos trabalhos, e não somente na pobre opção de conquistar crianças), apoiavam-se mutuamente em termos de direitos e conquistas sociais, e procuravam estar a par das possibilidades de integrar “invenções” do métier.
Rambla arriba, Rambla abajo parece sublimar e concentrar as ferramentas expressivas de toda a série. Aparentemente centrado nos eventos de uma noite protagonizados por García García, duplo do autor, na sua relação com um colega de trabalho, numa breve conquista amorosa que corre mal e depois na sua entrada no mundo politizado dos sindicatos e forças políticas de esquerda então ilegais, a narrativa é sistematicamente interrompida para dar atenção a pequenos episódios paralelos com as centenas de personagens que atravessa essa famosa avenida: pedintes, casais idosos, miúdos divertindo-se, artistas de rua, os polícias e militares, as prostitutas, os operários na miséria, os poetas desconhecidos e vendedores de livros baratos, as comemorações franquistas, e até os gatos e os pombos. São muitos os pormenores em que o autor cria contrastes que o leitor deve entender como críticos: como uma velha pedinte e o seu neto deitados juntos a uma coluna que incita as pessoas a tirarem férias, “alguns duas de paz e felicidade”. Mas com fome…como o esperar sequer? E há momentos interrompidos com cenas seguidas que não se consubstanciam numa sequência narrativa, mas na emergência do multímodo ambiente. Como extremos do livro, o enorme cartaz proclamando os “25 anos de paz”, em ambos os casos mostrando pormenores que mostram a fragilidade dessa mesma proclamação e, até mesmo, o princípio do seu fim.
Tanto Rambla arriba, Rambla abajo, como todo Los Profesionales parece estar sempre numa tensão entre um retrato das personagens envolvidas e o seu meio profissional e um muito subtil e inteligente espelho da época e da sua sociedade. E é muito importante, a nosso ver, que se descubra essa faceta sociológica, ou Los Profesionales corre o perigo de ser somente um divertido fresco anedótico que servirá, egoistamente, àqueles que conseguem identificar a par e passo as personagens e o que se conta à matéria histórica. Basta ver o rol das “personagens” a falar das suas impressões pessoais no site do autor, aqui. Não é retirar a validade do que dizem, do que experienciaram, mas trata-se de separar a abordagem jornalística, de curiosidade imediata e convencional, e entrar num território de distância crítica, de construção de um discurso histórico e até mesmo da possibilidade da relevância do texto para além dessa pequena esfera de insiders, o que fecha a obra a circunstâncias que irreparavelmente se perderão e estão presas a circunstâncias demasiado estreitas e não podem ser partilhadas para além desse círculo imediato. É necessário então que se leia este livro com outros olhos que a libertem dessa canga historicista e nostálgica para a tornar uma obra-maior de associações a um mundo ético maior.
Nota: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
27 de fevereiro de 2012
Les Professionnels. Carlos Giménez (Fluide Glacial)
Publicada por Pedro Moura à(s) 3:00 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, Espanha
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