Breve policial, sem grandes melodramas, Le Curé tem ainda assim alguns elementos que o tornam um texto de interesse crítico, começando pelas formas mais ou menos subtis como se associa a toda uma tradição literária e cinematográfica, e, bien sûr, da banda desenhada francesas. Estruturando-se em torno da relação entre um jovem padre acabado de chegar a uma pequena aldeia rural francesa, a meados dos anos 1930, e um velho médico ateu e misantropo, de nome Jarowski, que guarda um segredo terrível, as menos de 100 páginas do livro espraiam-se muitas vezes na construção do ambiente mais do que na linearidade da sua acção, de resto, de uma fluidez despretensiosa.
Ora, em vez de estruturar a trama em torno de um simples confronto com um crime e depois tentar descobrir quem é o culpado, sensivelmente a meio do livro descobrimos, a um só tempo, o crime e o seu culpado pelos lábios do mesmo, sob a forma de confissão in extremis. É preciso ter em conta que esta edição reúne num só volume a edição original em dois, cujos sub-títulos eram La Confession (2001) e Le jugement (2003), demonstrando-se que a escolha de formato, de ritmo de publicação, etc., altera não apenas o acto físico da leitura como os elementos que depois levarão à sua interpretação.
Le Curé é, portanto, um exercício que tem como fio condutor esta estrutura em torno de um crime, e suas consequências para os elementos da narrativa, para antes explorar as tensões éticas possíveis entre o jovem cura, que também parece ter herdado dificuldades da sua vida secular e ter encontrado na ordenação uma espécie de fuga e tranquilidade (mas há momentos em que essa tensão se vai quebrando, e ficamos na dúvida se o é à luz do segredo que carrega se é algo que já estava presente), e o médico que procura os caminhos desempoeirados da razão para fazer trazer o melhor que homem tem para oferecer, e não como ele é (nas suas próprias palavras), mas oculta em si um crime hediondo e revela que o abismo das trevas pode ser transportado em qualquer um de nós. O facto da acção se desenrolar em 1935, com um padre católico e um médico (judeu?) ateu, poderia querer levar a uma matéria sensível que encontraria no período da guerra que se lhe seguiria uma ferida aberta.
Qualquer sinopse revelaria os acontecimentos deste livro, demonstrando assim que não é o quê que está em causa, mas antes o como, ou melhor ainda, o modo como esse como se faz sentir à flor da pele do jovem padre. Apesar de termos dito que Le Curé não apresenta grandes laivos melodramáticos, ainda assim os autores (Lacoste surge como co-autor do argumento, mas ser-nos-á impossível estar a tentar compreender percentagens de responsabilidade) dão uma larga parte da sua atenção à representação do rosto do padre: grandes planos, vinhetas silenciosas, modos de ancorar as focalizações circundantes no seu olhar, etc. Existem alguns elementos que nos fazem recordar dois outros autores muito diferentes entre si, Jon J. Muth (com The Mystery Play, com Grant Morrison) e Eddie Campbell. A utilização de aguarelas, atravessando uma escolha variada de ambientes cromáticos, com construções muito coloridas em exteriores soalheiros, escopos mais reduzidos para interiores iluminados por uma só fonte de luz, ou nocturnos sob tempestade, e inclusive cenas em aguadas para denominar analepses, são a matéria de de Metter. Todavia, o seu domínio da figura humana é muito flutuante, havendo momentos em que desliza mais para uma abordagem ligeiramente caricatural e outras mais feéricas, por entre a esmagadora opção naturalista. Muito diferente de Muth, que prefere uma abordagem concentrada nos seus retratos gélidos das personagens, e de Campbell, cuja expressividade manual é mais marcada, há no entanto, e precisamente pela flutuação de de Metter, aqui e ali momentos que se encaixariam nas descrições possíveis, e sua apreciação, desses outros autores.
É mesmo até pelo relativo convencionalismo de Le Curé que os pequenos desvios que são procurados mais se tornam significativos.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
22 de fevereiro de 2012
Le Curé. Christian de Metter e Laurent Lacoste (Casterman).
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:25 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica, Mainstream
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