Por ocasião da última
Feira Laica, e como já havia sucedido em ocasiões anteriores, verificámos que
as pequenas e médias indústrias da edição, ou frentes fanzinistas, não
esmorecem face à cada vez menor circulação pública ou atenção crítica das suas
produções (nem delas precisam, diga-se de passagem). Novos e velhos agentes,
contumazes ou debutantes, com maior ou
menor luxo, há uma contínua oferta. O que se segue não é mais do que um
apontamento sumário das impressões suscitadas por cada um destes títulos
obtidos.
Comecemos pelos
veteranos. Este número poderia ser chamado de “especial respigadura”, já que
consiste basicamente em trabalhos produzidos para projectos que ora foram
abortados – os casos das curtas de Tim Morris e Gigi i Gigi que seriam para a
defunta Quadrado, na sua vida da Bedeteca de Lisboa, e duas histórias de Marcos
Farrajota, de um projecto maior que poderá vir ou não a concretizar-se na sua
completude. A capa, por Dr. Urânio, surge como teaser de projectos seguramente a vir. Além desse gesto ao nível
editorial, o acto respigador de Farrajota é também sentido no interior das
próprias narrativas, que aliam temas mais ou menos comuns, e que ganham contornos
de intervenção política e social, de não apenas descontentamento e afastamento
em relação a certos confortos, como procurando mesmo, sobretudo no caso de
Farrajota, de alternativas para as formas como nos relacionamos com o mundo. A
capa mostra uma colagem de um espaço complexo, em que se mistura a ideia de um
gabinete de curiosidades (tudo ideias fósseis e taxidermizadas, como as utopias
citadas pelo editor?), o que parecem ser restos de tecnologia (as promessas
goradas da contemporaneidade?) e uma criatura com uma estranha máscara (a falha
das convenções sociais?) com um objecto indiscritível no tampo da mesa (um
objecto estético, apenas forma?). O mesinha,
sempre em provocação.
Tratando-se de uma
colecção de várias ilustrações “soltas” que Feitor havia criado para o seu blog
Escroque, há pelo menos duas
características que se tornam facilmente perceptíveis. A primeira é a contínua
obsessão de Feitor por desenhar animais, procurando nestes aquilo que podem revelar
do homem não só enquanto animal, como besta. A segunda é a dimensão política
que estas imagens, sobretudo sendo aliadas a breves comentários que tanto têm
de legenda, como de poema, como de prosa “gin tónica”, como de ditame, assumem
desde logo. Curiosamente, quase que se poderiam ler estas imagens como
exercícios práticos e alistados do cartoon
satírico-político, à moda de The Masses
ou Simplicissimus. É verdade que não há “alvos” directos e
reconhecíveis (salvo duas excepções, internacionais), sendo mais pautados pela
generalização, mas não são por isso menos contundentes, como aquela imagem do
“jovem” cujo interior da cabeça é um tijolo. E esta publicação não é tijolo que
parta janelas: abre-as.
Outra colecção, mas
desta feita de material alheio. Trata-se de uma série de reproduções das
magníficas, alucinadas e azuladas capas das também possivelmente alucinadas novelas
policiais de Grandes Mistérios - Grandes
Aventuras, publicadas entre a década de 1940 e 1960 por autores
portugueses, mas sob a capa fictícia (“fraude literária”, escreve Feitor) de
todo um universo de escritores internacionais. O morto foi ao baile, de Marcel Damar, Três enforcados numa corda, de Herbert Gibbons, e Aconteceu no camarote 13 e O mistério do quilómetro 196, ambos de
Richard Young, certamente darão o mote da coisa. O texto introdutório explica
as razões deste gesto (que terão repercussões no projecto Faca Romba, da Oficina do Cego), e pormenores da mesma colecção.
As capas originais não eram assinadas, e pelos vistos ainda hoje está por fazer
o trabalho de identificação, se bem que numa análise estilística seja quase
possível perceber que seriam pelo menos dois, ou três artistas (se aquelas que
optam por silhuetas não pertencerem ao ilustrador mais estilizado, mas que
contrasta com o que busca uma abordagem mais realista, mas também mais pobre em
termos dramáticos). Além disso, André Lemos, José Cardoso, Luís Henriques e
Jucifer, mas também o próprio Feitor na capa, apresentam novas versões de
algumas dessas capas. A organização não parece seguir nenhum critério óbvio,
mas é tentador querer criar, só com os títulos e as cenas das capas, que
parecem sempre trabalhar em torno dos mesmos temas e repetições, uma trama
unitária. Numa das capas (Um crime no
desconhecido), uma nota presa por uma faca reza da seguinte forma: “Não se
metam/ com a morte /A morte não/perdoa”. Seja.
Na Feira Laica
referida, os originais desta publicação encontravam-se expostos. Não seguiam,
de forma alguma, a ordem pela qual surgem no “espaço folheado” do fanzine, o
qual insufla sobre a ordem dos desenhos uma estruturação mais nítida, pelo
menos na relação que cada “bloco” opera no seu interior (a que poderíamos
chamar “o homem que escava”, “estátuas”, “comboio suburbano” e “diálogos
agónicos”) e, quem sabe, entre uns e outros. Formas de desenhar, temas,
materiais, estruturações compositivas, e até mesmo preocupações de tom e humor
apresentam-se de maneiras distintas, em diversidade. Encontramos aqui mais uma
vez, tal como em Fábricas, baldios,
algumas constantes preocupações: a relação com a história de arte, uma
taxonomia livre, a inscrição oblíqua da autobiografia do autor, da sua tarefa
de criação, ou notas sobre reflexão, sob a forma de vinhetas gráficas, que
terão maior ou menor grau de simbolismo. A citação de elementos naturais, como
a lama, o barro, a água como matérias-primas e plasmáveis, para criar obras. E
a flutuação entre uma abordagem virtuosa, multímoda, controlada da arte do
desenho, e uma gestualidade mais sumária, de esquisso, não vá a ideia
evolar-se.
Este é o último número
do fanzine auto-editado pelo artista, e mesmo não conhecendo a série completa,
imagina-se um passo “atrás” em relação a Estátua
falsai (o qual, tal como o outro projecto anterior, estando sob o domínio
editorial de outras plataformas, poderá ter tomado configurações mais
restritas, colaborativas, dialogantes, e nunca menos livres). Melhor dizendo,
encontramos aqui neste número as matérias-primas imagéticas (fotografias – de
pessoas, de troncos serrados, de couves altas, de estátuas, bonecos, animais -,
reproduções de obras de arte retiradas da sua longa história) que servem para as
pesquisas de Baptista. Na verdade, quase se pode imaginar Cleópatra como uma
espécie de Atlas (Richteriano) deste
jovem pintor e desenhador. Conjectura-se que apenas a longo prazo surgirão as
linhas-mestras que tornam todas estas distintas imagens num contínuo pano de
referências, ou então confirmando-se a sua diversidade como a matéria precisa
da sua criação. Tal como nos casos anteriores, há aqui uma qualquer ideia muito
livre, nada disciplinada, entre os mundos sociais da dita Arte (a pintura,
sobretudo) e da Banda Desenhada, em que uma bebe da outra, uma inflexiona a
outra, sem hierarquia nem primazia, mas antes num fluxo mútuo e imanente.
Tendo já abordado em
termos gerais este projecto, a sua continuidade parece assegurada. Temos capas
desenhadas por Rui Ricardo, que nas suas ilustrações com uma abordagem
cromática mais complexa do que os seus trabalhos mais “clássicos”, cria logo
uma história, uma cena e algum humor erótico à la Playboy anos 1950 nestas duas
imagens. Seguem-se alguns autores habituais do zine e outras novidades,
atravessando ora territórios expectáveis ora pequenas experimentações formais e
alucinadas. Uma das melhores peças é de André Pereira, mas dele falaremos mais
à frente, já que a sua história se repete no seu próprio zine. As sagas de
Afonso Ferreira, Aviv Itzcovitz, John Kurokawa continuam ou terminam, e
perguntamo-nos se a plataforma Ruru pensará em dar um passo em frente em termos
de editar histórias completas num só objecto (mas isso seria imitar práticas
comerciais, além-zinescas?). Rudolfo incorre seriamente na possibilidade de se
tornar igualmente importante no que diz respeito à abertura de um espaço
experimental na edição independente no nosso país, menos preocupado com métodos
de edição, inovações de linguagem e de inscrição política do que Feitor,
Pestana ou Farrajota, ou de trabalho de desenvolvimento interno aos géneros,
como o caso da Zona, do que a fabricação de um espaço intermédio, idêntico
àquele terceiro espaço contemporâneo norte-americano que mencionámos a
propósito de Adventure Time. Sinal
disso é a sua associação Zé Burnay e André Pereira, de que também falamos
adiante.
De acordo com
informações de outras publicações, esta trata-se de uma nova série por Rudolfo
que seguirá as pisadas de Tobias, uma espécie de avatar do autor (que é avatar
de si mesmo em vários graus) sob os auspícios de uma concatenação de
lugares-comuns em torno da cultura “nipónica”. Espécie de cruzamento entre Rusty Brown, auto-ficção depravada, e
ultra-sensitividade aos elementos que constituem a cultura dos jogos Nintendo,
animé, a mangá mais comercial, a colecção de bonecos e o cosplay, a tortura do
J-pop e a tendência para o “tentacle porn”, a narrativa é brevíssima (dez
páginas), mas parece preparar desde logo uma desordem narrativa promissora. Há
ainda materiais complementares que confirmam ser Rudolfo detentor de várias
abordagens possíveis, ora controlando uma grafite muito leve que recorda Renée
French, ora uma nervosa caligrafia que o coloca ao lado de uma série de autores
norte-americanos, a história principal é, porém aquela que segue uma produção
mais “clássica”, acabada, com artes-finais sólidas e uma composição austera.
Este zine agrega curtas
histórias, e desenhos ou ilustrações. O estilo de construções e sobreposição de
objectos, as tramas empregues por Burnay, e até mesmo as temáticas, fará
recordar um espaço criativo que tanto englobaria a arte de um Suehiro Maruo
como a venerável tradição dos mais fantasiosos ilustradores do metal. Algures
numa entrevista, Fernando Ribeiro (Moonspell) dizia algo como o heavy metal ser
uma espécie de fantasia dos fracos. Se assim o for, Burnay tira partido dessas
mesmas fantasias, ma sempre com um humor suficiente para revelar que não passam
disso mesmo: fantasias. Como muitos outros autores, Zé Burnay é um daqueles
iconoclastas – em referência à cultura média e burguesa – que opera por icono-construção.
Há porém menos uma preocupação pela elaboração de narrativas claras, mesmo
naquilo que passa mais próximo das “bandas desenhadas”, do que a eleição de uma
forma de composição quase análoga à da tattoo
art para criar blocos de ideias e de cenas, ora colocando no centro
personagens divinas ora oriundas de um fundo mais ou menos reconhecível, senão
mesmo expectável (tarantinadas, ódios a Bieber-Gaga, e coisas quejandas).
Energia brutal.
A história que surge a
abrir este fanzine é a mesma de Lodaçal
# 6, intitulando-se “Demiurgo”. Além desta, também as outras, algumas das quais
escritas por João Machado, tenham mais ou menos páginas (de 3 a 5), demonstram
desde logo que Pereira tem todos os ingredientes na mão para sustentar uma
longa história, de forma concertada, organizada, coesa, aliando a isso os seus
desenhos, a um só tempo, expressivos, legíveis e apropriados, que flutuam entre
abordagens mais elaboradas e outras mais rabiscadas (alguns pormenores, mas
talvez também por causa das referências semi-cthulhianas, recordam Troy Nixon).
Quer dizer, em contraste com muitos dos “novos talentos” que encontram nos
zines o total espaço de liberdade que é o deles, apresenta um estilo mais
convencional, mas por isso mais capaz de conquistar um espaço para fora desse
circuito. Por essa razão, não deixa de ser surpreendente que as histórias
pareçam criar uma promessa de complexidade a partir da qual sairia uma trama
maior, mas são como que “interrompidas”, em nome de uma mais imediata gratificação
sob a forma de humor, ou até mesmo de displicência melancólica. “Demiurgo” e
“Cigarros”, por exemplo, fazem pensar numa espécie de “universo diegético”
coerente. Veremos mais episódios? Continuaremos a perceber a origem do universo
sob os princípios esotéricos apresentados em “Demiurgo”? É possível misturar a
cabala e mecha? A epígrafe que o autor escolhe na abertura, tirada das cartas Magic: The Gathering (!) falam de uma
certa inércia inicial. Mas se Enjôo é
sinal de inércia, esperemos ver o início da mobilidade..
Esperando-se que o
autor continue o seu projecto maior semi-autobiográfico, este pequeníssimo
objecto apresenta uma simples e algo linear história, talvez sublimação de um
sonho ou episódio alucinado, plenamente informado por toda uma cultura pop (Planeta dos Macacos e E.Ts. a rodos),
com alguns laivos de iluminação esotérico-ecológica. Não havendo orçamento para
lançar o avatar de Campos – que protagoniza o encontro com chimpazés e aliens – no “Star Gate” de
Kubrick/Clarke, algumas vinhetas a preto-e-branco, fotocopiadas e agrafadas,
sobre o que um charro, ao som de P-Funk, pode provocar.
Nota: agradecimentos
aos editores e/ou artistas, pelas oferta ou descontos “forçados”.
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