16 de julho de 2012

Breves notas sobre bravos fanzines. AAVV

Por ocasião da última Feira Laica, e como já havia sucedido em ocasiões anteriores, verificámos que as pequenas e médias indústrias da edição, ou frentes fanzinistas, não esmorecem face à cada vez menor circulação pública ou atenção crítica das suas produções (nem delas precisam, diga-se de passagem). Novos e velhos agentes, contumazes ou  debutantes, com maior ou menor luxo, há uma contínua oferta. O que se segue não é mais do que um apontamento sumário das impressões suscitadas por cada um destes títulos obtidos.
Mesinha de Cabeceira # 24. AAVV (MMMNNNRRRG)
Comecemos pelos veteranos. Este número poderia ser chamado de “especial respigadura”, já que consiste basicamente em trabalhos produzidos para projectos que ora foram abortados – os casos das curtas de Tim Morris e Gigi i Gigi que seriam para a defunta Quadrado, na sua vida da Bedeteca de Lisboa, e duas histórias de Marcos Farrajota, de um projecto maior que poderá vir ou não a concretizar-se na sua completude. A capa, por Dr. Urânio, surge como teaser de projectos seguramente a vir. Além desse gesto ao nível editorial, o acto respigador de Farrajota é também sentido no interior das próprias narrativas, que aliam temas mais ou menos comuns, e que ganham contornos de intervenção política e social, de não apenas descontentamento e afastamento em relação a certos confortos, como procurando mesmo, sobretudo no caso de Farrajota, de alternativas para as formas como nos relacionamos com o mundo. A capa mostra uma colagem de um espaço complexo, em que se mistura a ideia de um gabinete de curiosidades (tudo ideias fósseis e taxidermizadas, como as utopias citadas pelo editor?), o que parecem ser restos de tecnologia (as promessas goradas da contemporaneidade?) e uma criatura com uma estranha máscara (a falha das convenções sociais?) com um objecto indiscritível no tampo da mesa (um objecto estético, apenas forma?). O mesinha, sempre em provocação.
Iceberg. José Feitor (Imprensa Canalha)
Tratando-se de uma colecção de várias ilustrações “soltas” que Feitor havia criado para o seu blog Escroque, há pelo menos duas características que se tornam facilmente perceptíveis. A primeira é a contínua obsessão de Feitor por desenhar animais, procurando nestes aquilo que podem revelar do homem não só enquanto animal, como besta. A segunda é a dimensão política que estas imagens, sobretudo sendo aliadas a breves comentários que tanto têm de legenda, como de poema, como de prosa “gin tónica”, como de ditame, assumem desde logo. Curiosamente, quase que se poderiam ler estas imagens como exercícios práticos e alistados do cartoon satírico-político, à moda de The Masses ou Simplicissimus.  É verdade que não há “alvos” directos e reconhecíveis (salvo duas excepções, internacionais), sendo mais pautados pela generalização, mas não são por isso menos contundentes, como aquela imagem do “jovem” cujo interior da cabeça é um tijolo. E esta publicação não é tijolo que parta janelas: abre-as.
O Morto foi ao Baile. AAVV (Imprensa Canalha)
Outra colecção, mas desta feita de material alheio. Trata-se de uma série de reproduções das magníficas, alucinadas e azuladas capas das também possivelmente alucinadas novelas policiais de Grandes Mistérios - Grandes Aventuras, publicadas entre a década de 1940 e 1960 por autores portugueses, mas sob a capa fictícia (“fraude literária”, escreve Feitor) de todo um universo de escritores internacionais. O morto foi ao baile, de Marcel Damar, Três enforcados numa corda, de Herbert Gibbons, e Aconteceu no camarote 13 e O mistério do quilómetro 196, ambos de Richard Young, certamente darão o mote da coisa. O texto introdutório explica as razões deste gesto (que terão repercussões no projecto Faca Romba, da Oficina do Cego), e pormenores da mesma colecção. As capas originais não eram assinadas, e pelos vistos ainda hoje está por fazer o trabalho de identificação, se bem que numa análise estilística seja quase possível perceber que seriam pelo menos dois, ou três artistas (se aquelas que optam por silhuetas não pertencerem ao ilustrador mais estilizado, mas que contrasta com o que busca uma abordagem mais realista, mas também mais pobre em termos dramáticos). Além disso, André Lemos, José Cardoso, Luís Henriques e Jucifer, mas também o próprio Feitor na capa, apresentam novas versões de algumas dessas capas. A organização não parece seguir nenhum critério óbvio, mas é tentador querer criar, só com os títulos e as cenas das capas, que parecem sempre trabalhar em torno dos mesmos temas e repetições, uma trama unitária. Numa das capas (Um crime no desconhecido), uma nota presa por uma faca reza da seguinte forma: “Não se metam/ com a morte /A morte não/perdoa”. Seja.
Estátua Falsa. Tiago Batista (Imprensa Canalha)
Na Feira Laica referida, os originais desta publicação encontravam-se expostos. Não seguiam, de forma alguma, a ordem pela qual surgem no “espaço folheado” do fanzine, o qual insufla sobre a ordem dos desenhos uma estruturação mais nítida, pelo menos na relação que cada “bloco” opera no seu interior (a que poderíamos chamar “o homem que escava”, “estátuas”, “comboio suburbano” e “diálogos agónicos”) e, quem sabe, entre uns e outros. Formas de desenhar, temas, materiais, estruturações compositivas, e até mesmo preocupações de tom e humor apresentam-se de maneiras distintas, em diversidade. Encontramos aqui mais uma vez, tal como em Fábricas, baldios, algumas constantes preocupações: a relação com a história de arte, uma taxonomia livre, a inscrição oblíqua da autobiografia do autor, da sua tarefa de criação, ou notas sobre reflexão, sob a forma de vinhetas gráficas, que terão maior ou menor grau de simbolismo. A citação de elementos naturais, como a lama, o barro, a água como matérias-primas e plasmáveis, para criar obras. E a flutuação entre uma abordagem virtuosa, multímoda, controlada da arte do desenho, e uma gestualidade mais sumária, de esquisso, não vá a ideia evolar-se.
Cleópatra # 12. Tiago Baptista (auto-edição)
Este é o último número do fanzine auto-editado pelo artista, e mesmo não conhecendo a série completa, imagina-se um passo “atrás” em relação a Estátua falsai (o qual, tal como o outro projecto anterior, estando sob o domínio editorial de outras plataformas, poderá ter tomado configurações mais restritas, colaborativas, dialogantes, e nunca menos livres). Melhor dizendo, encontramos aqui neste número as matérias-primas imagéticas (fotografias – de pessoas, de troncos serrados, de couves altas, de estátuas, bonecos, animais -, reproduções de obras de arte retiradas da sua longa história) que servem para as pesquisas de Baptista. Na verdade, quase se pode imaginar Cleópatra como uma espécie de Atlas (Richteriano) deste jovem pintor e desenhador. Conjectura-se que apenas a longo prazo surgirão as linhas-mestras que tornam todas estas distintas imagens num contínuo pano de referências, ou então confirmando-se a sua diversidade como a matéria precisa da sua criação. Tal como nos casos anteriores, há aqui uma qualquer ideia muito livre, nada disciplinada, entre os mundos sociais da dita Arte (a pintura, sobretudo) e da Banda Desenhada, em que uma bebe da outra, uma inflexiona a outra, sem hierarquia nem primazia, mas antes num fluxo mútuo e imanente.
Lodaçal Comix # 6. AAVV (Ruru Comix)
Tendo já abordado em termos gerais este projecto, a sua continuidade parece assegurada. Temos capas desenhadas por Rui Ricardo, que nas suas ilustrações com uma abordagem cromática mais complexa do que os seus trabalhos mais “clássicos”, cria logo uma história, uma cena e algum humor erótico à la Playboy anos 1950 nestas duas imagens. Seguem-se alguns autores habituais do zine e outras novidades, atravessando ora territórios expectáveis ora pequenas experimentações formais e alucinadas. Uma das melhores peças é de André Pereira, mas dele falaremos mais à frente, já que a sua história se repete no seu próprio zine. As sagas de Afonso Ferreira, Aviv Itzcovitz, John Kurokawa continuam ou terminam, e perguntamo-nos se a plataforma Ruru pensará em dar um passo em frente em termos de editar histórias completas num só objecto (mas isso seria imitar práticas comerciais, além-zinescas?). Rudolfo incorre seriamente na possibilidade de se tornar igualmente importante no que diz respeito à abertura de um espaço experimental na edição independente no nosso país, menos preocupado com métodos de edição, inovações de linguagem e de inscrição política do que Feitor, Pestana ou Farrajota, ou de trabalho de desenvolvimento interno aos géneros, como o caso da Zona, do que a fabricação de um espaço intermédio, idêntico àquele terceiro espaço contemporâneo norte-americano que mencionámos a propósito de Adventure Time. Sinal disso é a sua associação Zé Burnay e André Pereira, de que também falamos adiante.
Magical Otaku # 1. Rudolfo (Ruru Comix)
De acordo com informações de outras publicações, esta trata-se de uma nova série por Rudolfo que seguirá as pisadas de Tobias, uma espécie de avatar do autor (que é avatar de si mesmo em vários graus) sob os auspícios de uma concatenação de lugares-comuns em torno da cultura “nipónica”. Espécie de cruzamento entre Rusty Brown, auto-ficção depravada, e ultra-sensitividade aos elementos que constituem a cultura dos jogos Nintendo, animé, a mangá mais comercial, a colecção de bonecos e o cosplay, a tortura do J-pop e a tendência para o “tentacle porn”, a narrativa é brevíssima (dez páginas), mas parece preparar desde logo uma desordem narrativa promissora. Há ainda materiais complementares que confirmam ser Rudolfo detentor de várias abordagens possíveis, ora controlando uma grafite muito leve que recorda Renée French, ora uma nervosa caligrafia que o coloca ao lado de uma série de autores norte-americanos, a história principal é, porém aquela que segue uma produção mais “clássica”, acabada, com artes-finais sólidas e uma composição austera.
Deathgrind. Zé Burnay (Poison comics)
Este zine agrega curtas histórias, e desenhos ou ilustrações. O estilo de construções e sobreposição de objectos, as tramas empregues por Burnay, e até mesmo as temáticas, fará recordar um espaço criativo que tanto englobaria a arte de um Suehiro Maruo como a venerável tradição dos mais fantasiosos ilustradores do metal. Algures numa entrevista, Fernando Ribeiro (Moonspell) dizia algo como o heavy metal ser uma espécie de fantasia dos fracos. Se assim o for, Burnay tira partido dessas mesmas fantasias, ma sempre com um humor suficiente para revelar que não passam disso mesmo: fantasias. Como muitos outros autores, Zé Burnay é um daqueles iconoclastas – em referência à cultura média e burguesa – que opera por icono-construção. Há porém menos uma preocupação pela elaboração de narrativas claras, mesmo naquilo que passa mais próximo das “bandas desenhadas”, do que a eleição de uma forma de composição quase análoga à da tattoo art para criar blocos de ideias e de cenas, ora colocando no centro personagens divinas ora oriundas de um fundo mais ou menos reconhecível, senão mesmo expectável (tarantinadas, ódios a Bieber-Gaga, e coisas quejandas). Energia brutal.
Enjôo de invocação. André Pereira et al. (Robô Independente)
A história que surge a abrir este fanzine é a mesma de Lodaçal # 6, intitulando-se “Demiurgo”. Além desta, também as outras, algumas das quais escritas por João Machado, tenham mais ou menos páginas (de 3 a 5), demonstram desde logo que Pereira tem todos os ingredientes na mão para sustentar uma longa história, de forma concertada, organizada, coesa, aliando a isso os seus desenhos, a um só tempo, expressivos, legíveis e apropriados, que flutuam entre abordagens mais elaboradas e outras mais rabiscadas (alguns pormenores, mas talvez também por causa das referências semi-cthulhianas, recordam Troy Nixon). Quer dizer, em contraste com muitos dos “novos talentos” que encontram nos zines o total espaço de liberdade que é o deles, apresenta um estilo mais convencional, mas por isso mais capaz de conquistar um espaço para fora desse circuito. Por essa razão, não deixa de ser surpreendente que as histórias pareçam criar uma promessa de complexidade a partir da qual sairia uma trama maior, mas são como que “interrompidas”, em nome de uma mais imediata gratificação sob a forma de humor, ou até mesmo de displicência melancólica. “Demiurgo” e “Cigarros”, por exemplo, fazem pensar numa espécie de “universo diegético” coerente. Veremos mais episódios? Continuaremos a perceber a origem do universo sob os princípios esotéricos apresentados em “Demiurgo”? É possível misturar a cabala e mecha? A epígrafe que o autor escolhe na abertura, tirada das cartas Magic: The Gathering (!) falam de uma certa inércia inicial. Mas se Enjôo é sinal de inércia, esperemos ver o início da mobilidade..
Landing the Mothership. David Campos (auto-edição)
Esperando-se que o autor continue o seu projecto maior semi-autobiográfico, este pequeníssimo objecto apresenta uma simples e algo linear história, talvez sublimação de um sonho ou episódio alucinado, plenamente informado por toda uma cultura pop (Planeta dos Macacos e E.Ts. a rodos), com alguns laivos de iluminação esotérico-ecológica. Não havendo orçamento para lançar o avatar de Campos – que protagoniza o encontro com chimpazés e aliens – no “Star Gate” de Kubrick/Clarke, algumas vinhetas a preto-e-branco, fotocopiadas e agrafadas, sobre o que um charro, ao som de P-Funk, pode provocar.
Nota: agradecimentos aos editores e/ou artistas, pelas oferta ou descontos “forçados”. 

Sem comentários: