A relação entre o texto e as imagens é algo que tem fomentado, desde o seu surgimento no mundo ocidental, pelo menos, discussões profundas que tanto se referirão restritamente à grafia (palavra que deve compreender as marcas em ambos os casos), aos seus actos e elementos, e relações, como às implicações que têm sobre a visão ideológica do mundo, ou até mesmo sobre o aparelho cognitivo humano. De Platão a W.J.T. Mitchell, as discussões têm sido profícuas mas – como é próprio do pensamento humano – infindas, inconclusivas e sempre relançando-se. O nome de Mitchell não surge naquela frase como último ponto, nec plus ultra da discussão, mas sendo dele o texto curto de introdução a este livro, é justo que se o cite, pela forma decisiva e constante como tem contribuído para a mesma. Apesar de curto, este é desde logo um texto importante, já que o autor vai mais longe naquele conceito por ele cunhado de “imagemtexto”, aqui para marcar a indecibilidade das relações potenciais (ou virtuais, no sentido de Deleuze-Guattari) entre texto e imagem. O autor, nos seus vários livros, foi expondo como poderão existir relações de ruptura, de síntese e de relacionamento entre um e outra, à qual ele dava nome, tirando partido do significado dos traços gráficos que as unem, da seguinte forma: “imagem/texto”, “imagemtexto” e “imagem-texto”. Neste breve texto, Mitchell vai mais longe, como dizíamos, propondo o termo “imagemXtexto” ou “imagem X texto”, discutindo todo os cismas, abismos e cruzamentos possíveis, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade da correcção dos termos empregues quando da sua discussão.

Os ensaios coleccionados neste volume abordam o espectro previsto por Mitchell. Fala-se do uso da fotografia em textos literários, quer romances, poemas ou autobiografias (J. R. Ackerley, Sebald, etc.), fala-se das inflexões materiais e construtivas que o digital permite à visualização de imagens, a escrita da poesia e à participação dos leitores, fala-se de atomização e unidade em relação à poesia visual (futurista, no caso) e de articulações entre obras literárias e pictóricas; envolvem-se os conceitos de descrição, de metaforização, de sinestesia, de orientação, em relação aos textos literários, e de memória, trauma, afecto, em relação a obras visuais. E falam-se dos postais – na verdade, uma magnífica “close reading” (Tanya K. Rodrigue) de um só exemplo - da PostSecret, como uma forma de imagemtexto particularmente apta para providenciar um quadro expressivo e interpretativo individual que contorna e evita discursos dominantes, como a autobiografia, por exemplo, que criam necessariamente rotinas simbólicas e, logo, “criam identidades essencialistas” (55-56).
É algo surpreendente, na leitura de determinados autores que se dedicam a temas próximos, como Didi-Huberman, Deleuze, Rancière, entre outros, que apesar de vasculharem “high and low” em busca de exemplos pertinentes para as interpretações e conceptualizações que fazem destas relações texto-imagem ou de imagenstextos, a banda desenhada nunca faça parte da equação de exempla, por maior que seja o seu escopo. É possível que parte disso se deva à falta de conquista cultural, intelectual e conceptual de que esta arte padece há décadas (ou será “estruturalmente”, “essencialmente”?). Todavia, dada a oferta imensa contemporânea, essa distracção é hoje insustentável. Mitchell considera a banda desenhada como uma “forma de arte compósita”, na qual nem “texto” nem “imagem” seriam descritivos suficientes mas tampouco uma adição, suplementação, ou simbiose entre os dois. Dá a entender que há uma especificidade, ou especificidades, neste meio, que a tornam, não necessariamente um palco privilegiado (i.e., superior) para a discussão, mas pelo menos determinante. Algo positivo naquele “x”.

Apesar da inegável qualidade de ambas estas obras citadas, e a forma como as duas abrem o campo da banda desenhada para temas mais humanamente profundos do que mais desabrida fantasia, ou com repercussões filosóficas e políticas mais imediatas em relação à polis contemporânea do que os géneros mais clássicos do humor, da aventura, etc., a verdade é que não deixa de ser sintomático que os tratamentos interdisciplinares e intelectuais – para além de questões de representação - sejam muitas vezes feitos sobre este tipo de obras. É um caminho possível, e é aquele que tem sido trilhado sobretudo. Poderá levar a uma ideia algo desequilibrada da pertinência dos objectos a estudar – por exemplo, a multimodalidade é analisável em toda a banda desenhada, independentemente de género, e até de qualidade (diga-se que Jacobs, noutros ensaios, aborda outras tipologias, mais mainstream inclusive) – ou até a um afunilamento do corpus – na verdade, trata-se do processo de canonização. Contudo, o mais importante de assinalar talvez seja mesmo o seu entrosamento com estes discursos. Regressando ao ensaio de Jacobs e Dolmage, entende-se a banda desenhada não somente como um encontro entre uma camada visual e uma camada textual, mas um locus onde “o visual, o alfabético, o espacial, e o gestual se combinam entre si para criarem uma sequência multimodal complexa” (80). Com futuro, certamente.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
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