A novela das transformações dos
últimos anos desta plataforma editorial, com saídas e entradas, regressos e
greves, coups e berraria, pública ou não, é demasiado intricada para ser
transformada num fio condutor único e inócuo. Talvez o que interesse é fazer um
balanço dos seus mais de vinte anos de existência, desta associação dedicada “à
espera de um polvo de uma banda desenhada particular e inovadora, seja por meio
da reprodutibilidade ou de qualquer outro meio (exposições, debates, etc.)”,
como rezam os estatutos (reproduzidos na íntegra em Utopie, e mitificadods
por Ayroles, cf. adiante). Aquela
expressão do “polvo” deve-se entender pelo facto de que na sua imediata
pré-história se tratava de L’Association pour L’Apologie du Neuvième Art Libre
(AANAL), fundada por Stanislas, Konture e Menu (em 1984, e associado ao fanzine
Lynx à tifs), e depois, em 1990, torna-se então L’Association à la
Pulpe. Esse nome também é notável pelo símbolo escolhido, uma hidra com tantas
cabeças quanto os seus fundadores-autores, de sete passando imediatamente para
seis, referentes a David B., Lewis Trondheim, Jean-Christophe Menu, Stanislas,
Killoffer e Mattt Konture.
Por exemplo, numa das últimas assembleias
gerais, como vem transcrito num blog que dá conta disso, Lewis Trondheim terá
dito, “Para mim, só há um problema, que é o Menu” , ao que este terá
respondido, “O problema até posso ser eu, mas se eu não estivesse aqui, não
haveria nada!” Como é óbvio, não tomaremos partido aqui das personalidades
envolvidas e/ou posicionamentos assumidos pelas “partes”, e acreditamos até que
a situação encontrará a meio-caminho as suas razões. Alguns destes livros que
trazemos à consideração dão conta de várias perspectivas, que mais do que
contradizerem se complementam e mostram como todos e quaisquer factos podem ser
interpretados e até sentidos de maneiras diferentes.
Também não podemos deixar de
sublinhar que a escolha destes quatro livros nasce de uma circunstancialidade,
de uma coincidência, de uma espera, e não de uma concertada convergência da
parte dos seus autores, e até se a faz na ausência, ignorância ou
secundarização de outros canais e projectos. Aliás, se o livro de Menu
corresponde ainda a uma fase em que ele estava tomando conta das rédeas da
plataforma, Quoi já se segue à sua saída. E poderíamos ainda ter
incluído outros livros, até da própria l’Association, como parte desta ideia de
balanço (poderíamos até indicar que alguns dos seus gestos têm sido balanços
sucessivos, quiçá parte daquelas batalhas de egos e direcções).
Este livro é criado por um
colectivo de investigadores e estudiosos da Universidade de Liège da banda
desenhada, necessariamente interdisciplinar, e trata-se de uma perspectiva
multifacetada sobre o projecto, tentando criar não tanto uma figura completa da
sua história, políticas, produção, personalidades, características, etc. mas
pelo menos suficientemente transversal para abordar todas esses aspectos.
Os capítulos são todos assinados
de forma singular (com excepção da introdução), e alternadamente apresentam um
estudo mais exclusivo sobre determinado aspecto ou textos mais descritivos,
gerais, informativos. Nos primeiros casos, fala-se da autobiografia, da
reportagem, da banda desenhada dita “muda”, das técnicas visuais, nos segundos
dos materiais exclusivos para associados, os projectos da Oubapo, a revista Lapin,
o projecto Comix 2000 (se bem que não explorando com maior exactidão os
problemas que a sua “mudez” representa na suposta “universalidade” da linguagem
da banda desenhada), ou sobre a nova geração de autores da casa. Nalguns casos,
os estudos são mesmo close readings, como no caso do estudo de
Christophe Dony sobre o livro 73304-23-4152-6-96-8 de Thomas Ott, ou
abordagens sobre Sfar (sobre o seu “estilo gráfico ‘espontâneo’”, que,
compreenderão os leitores do lerbd, tange as mesmas cordas do que
chamamos de “desenho caligráfico”), François Ayroles, Persepolis (o
único verdadeiro caso de best seller da casa, tendo atingindo um
público, “além-bêdê”, ainda que não de uma recepção crítica mais restrita), Manuel,
Shenzhen, etc.
Importante é a contextualização
da l’Association não enquanto gesto absoluto – inédito, irrepetível, singular,
isolado – mas como parte de um tecido de continuidades, históricas e de
afinidades editoriais e estéticas. Daí que o primeiro texto seja dedicado não à
l’Association mas à Futuropolis, que pode ser vista, a um só tempo, como primeiro
passo na direcção do que a Association cumpriria, como porto de abrigo aos
autores na sua juventude e aprendizagem, e como eixo de transformação e
plataforma de lançamento (e até de regresso, se compreendermos a aliança entre
Menu pós-Association com Robial na L’apocalypse). Mas tem que se compreender
que essa fase, de uma “contra-cultura interna” à banda desenhada nos anos 1970,
e como muito bem a caracteriza uma expressão de Björn-Olav Dozo, foi de facto
uma “autonomização inconclusa da banda desenhada” (43). Por outro lado, Erwin
Dejasse não nos deixa esquecer a relação íntima, quase confundível, com as
éditions Cornélius, com a qual dividiam espaço, distribuidora, autores e “rede
social”. Como escreve Menu no seu livro (de que falaremos a seguir), no momento
da fundação da l’Association, “há já uma História anterior, uma experiência
consequente ao nível do Colectivo, uma relativo conhecimento de técnicas de
impressão, as quais fazem com que desde o início a nova estrutura tenha os
meios de ultrapassar o terreno amador” (pg. 189 de Double, sublinhado no
original). Fala-se apenas de uma forma telegráfica de outros projectos como a
Fréon, a Amok, ego comme x, La Cinquième Couche, etc., mas sem um estudo mais
alargado, e, de resto, compreende-se esse “desequilíbrio” apenas na ideia de
que é de facto a Association que consegue conquistar um público não só mais
alargado, como também é ela quem acaba por influenciar outros projectos, quer
através de um formato como o da colecção Patte de Mouche, adaptado por tantas
outras plataformas independentes (inclusive a portuguesa Quadradinho; mas a
importância dos formatos nesta casa é de uma extrema produtividade, como quis
um artigo de Pascal Lefèvre, aqui),
à forma como uma editora mainstream como a Casterman se iria aproveitar
da fórmula formato-e-conteúdo Ciboulette/“livro literário” na sua Écritures,
etc. Já para não falar da forma concertada como a Éprouvette demonstrou
a possibilidade dos autores de banda desenhada serem capazes de coordenar e
exprimir reflexões teóricas sobre a sua própria prática como quaisquer outros
artistas.
O ensaio de Dozo dedica-se
sobretudo à fundação e experimentação contínua das autobiografias nesta
editora, sobretudo os três livros fundacionais (Approximativement, de
Trondheim, Livret de phamille, de Menu, e Journal d’un album, de
Dupuy & Berberian) e a espiral que lançavam entre si, e entre outros
materiais – criando o que o autor chama de “a autobiografia polifónica de uma
geração” (91). Porém, se este artigo aponta muitas das características
originais, marcantes desses gestos, e avança algumas robustas interpretações,
algumas das citações ou omissões não deixam de ser sinal de desequilíbrio, como
a suposta resistência aos géneros clássicos da banda desenhada, o que, não
deixando de ser verdade em relação à própria Association, não é assim no que
diz respeito aos autores em termos pessoais, visto tantos dos seus projectos
noutros locais (Lapinot, Donjon, Petit Vampire, etc.).
Um estudo das técnicas
narrativas e visuais, por Gert Meesters, contrasta a produção desta casa com o
que o ensaísta chama de “banda desenhada clássica”, seguindo métodos
quantitativos, comparando pranchas da revista Lapin com as de outras
revistas mais comerciais, sobretudo a Tintin reporter/Hello Bédé.
As suas análises são produtivas e as conclusões significativas, mas fica-nos a
impressão (não mais que isso, pois obrigaria a um contra-estudo) de que a
comparação falha por não tomar em conta a alteração profunda do contexto
histórico e social das publicações em questão: afinal de contas, o mainstream
francófono, nos anos 1990, não tem nas revistas regulares o mesmo cadinho de
lançamento junto ao grande público que tinha tido em décadas anteriores, e a
própria fórmula da Lapin repesca essa ideia antiga mas no seio de uma
lógica contemporânea, até mesmo “artística”, “literária”, “intelectual” de uma nova banda desenhada, que implica tanto
o experimentalismo como a inteligente utilização e citação da sua linguagem,
precisamente, “clássica”.
As reflexões de Menu começam bem
cedo, pelo menos de forma semi-pública na sua tese de licenciatura em artes
plásticas, em 1988 (e que seria publicada para os associados em 2003) e são
exploradas neste volume, ainda que sem uma dedicação mais centralizada e
crítica. No entanto, não é de todo secundário que se façam as necessárias
ligações entre todos os seus projectos, desde os primeiros fanzines até à
revista Labo, a qual, publicada pela Futuropolis em 1990, contaria com a
presença dos fundadores da editora, e outros autores. De certa forma, pode-se
dizer ser esse o ponto de partida oficial, ou pelo menos o nexo oficial do
projecto (que tem outros pontos de partida e muitas metástases). Entre “Sorte d’éditorial”,
publicada na Labo, e “Sorte d’épilogue”, no volume colectivo XX/MMX
(2010, que não lemos), Menu faz um retrato simétrico, ainda que invertido, da
situação editorial francesa entre os vinte anos que são então marcados pela
própria existência da Association: se na primeira história há uma espécie de
esperança de que as novas e pequenas editoras seguissem caminhos deveras
alternativos aos dinossauros que vemos digladiarem-se (metáforas para as
grandes editoras a lutarem pelos mesmos géneros, pelos mesmos espaços de
divulgação e circulação, etc.) – a personagem/avatar de Menu tem um X na cara
para representar a colecção especial da Futuropolis, e o pequeno dinossauro
apenas nos faz imaginar o pior -, a segunda mostra como algumas dessas pequenas
plataformas acabaram por apenas mimar as grandes e, por isso, cair na mesma
desgraça e fim. Não deixa de ser curioso pensar, todavia, que parte do que se
acusa Menu de ter feito é precisamente ter transformado uma associação de
autores, não-hierárquica e com projectos livres, no seu próprio projecto
editorial (e, dizem alguns, ditatorial), com os problemas inerentes. A
transformação ou regresso a um modelo anterior (não sem uma valsa complicada)
pode significar um seu relançamento, mas apenas o tempo o dirá.
Utopie é, portanto, a um só tempo, um
balanço, uma consideração global, um encómio mas também uma tentativa de fundar
um gesto crítico para a contribuição desta editora.
A inclusão deste livro neste grupo não deixa de ser um exercício
injusto da nossa parte, uma vez que não é sobre L’Association de modo directo
ou exclusivamente, ainda que cite a sua história e se a implique de um modo,
literalmente, íntimo. Esta é a tese de doutoramento de Menu, que, como
se depreende pelo título, parte da noção de Artaud do duplo para o descobrir
na banda desenhada, emergindo nas “perspectivas práticas, teóricas e editoriais”
(pg. 9), a que o próprio autor se entregou nas últimas décadas. Logo, este
livro deveria merecer uma leitura crítica mais específica, que lhe respeitasse
os conceitos e com eles entabulasse um diálogo, e não o subsumir à história da
Association, mas incorreremos em parte nesse erro aqui.
Valerá a pena uma descrição quase exaustiva da estrutura do livro.
Ele é dividido em três partes, a primeira sobre “limites e potencialidades”,
falando, em capítulos exclusivos, sobre a autobiografia, a Oubapo e os
cruzamentos entre a banda desenhada e a terceira dimensão, cada uma dessas “coisas”
vistas como potenciais “outros” no interior da banda desenhada, quer dizer,
como vias que desdobram a banda desenhada em novas direcções. A segunda parte, “mitos
e microcosmo”, discute a história da L’Association em todos os seus passos e
princípios (estéticos, editoriais, políticos, críticos, etc.), assim como
aborda as tradições e rupturas da história da banda desenhada, e procura “novas
perspectivas internas”, sublinhando conceitos tais como as de metaficção,
infraficção, fragmentos, heterotopias, etc. para descobrir formas “duplas” da
banda desenhada, e quase sempre citando obras compostas (editadas ou inéditas)
pelo próprio Menu. A terceira parte, “linguagem e fronteiras”, alarga a ideia
da história “clássica” (leia-se “fechada” e “alheia a experiências”) para
abordar exemplos de textos medievais, hieróglifos egípcios (tirando partido do
conhecimento da mãe, egiptóloga de renome), abarcar os ideogramas, e falar
mesmo de um “corpus fora de campo” desta área, com o grande livro de Charlotte
Salomon, ou citando Dino Buzzati ou Henry Darger. O último capítulo, ainda
nesta terceira parte, entrega-se a um balanço teórico e conceptual que continua
o edifício desta área de estudos, mas procurando entrosar cada noção (vinheta,
hiperquadro, espaço folheado, etc.) com a sua própria noção de “duplo”. Duplo
que a articula no seu próprio interior, como em relação às duas áreas criativas
imediatamente contíguas, a Arte e a Literatura (v. 482 e ss.). O seu alto
propósito é, nem menos nem mais do que um estudo sobre os elementos “ontologicamente
constitutivos” da linguagem da banda desenhada. De onde parte a ideia de que a
sua “equivocidade salutar é uma configuração [tournure] de
espírito paralela da qual o dispositivo da Banda Desenhada faz parte, e é
também a natureza equívoca desde meio suspeito que faz com
que seja incompreendido e marginalizado pelos defensores de uma sociedade unívoca”
(484, subl. ori.).
Alguns dos escolhos da argumentação do autor está no facto dele, em
termos gerais, afunilar a sua senda ao panorama francês, o que não deixa de
fortalecer aos seus próprios gestos autorais/editoriais como diferentes (o que
se diluiria, possivelmente, num outro enquadramento; e nem abordaremos a
questão de ele pessoalizar ou individualizar a vida da Association à sua
própria prática, desligada da de um colectivo); quer dizer, esta é uma opção
a-histórica e que é falha nas suas qualificações (por exemplo, pensar enquanto “excepção
da reprodução técnica/mecânica” em relação a textos que surgiram antes da
sua própria possibilidade, como os manuscritos medievais, é um
exercício apenas superficialmente interessante, sendo bem mais produtivo uma
inscrição mais correcta na história). Algumas das suas leituras de textos
alheios, como as de um manuscrito medieval de Villard de Honnecourt, são algo
essencialistas e até mitificantes em relação ao grande corpus da banda
desenhada, mas Menu deixa visíveis as razões para essas mesmas posições.
Diga-se de passagem que Menu está mesmo consciente deste estilo: “Nunca
escondi as minhas contradições e, bem pelo contrário, sempre cultivei os meus
paradoxos, que sempre me pareceram mais férteis do que definições unívocas”,
210). E essas linhas unem-se: “ultrapassando (…) essa dicotomia [do seu próprio
percurso] entre a minha tendência Spirou e a minha tendência Underground,
também integrei essas duas direcções num estádio mais consciente, e num campo
de acção mais alargado. Nesse sentido, classicismo e ruptura, bloco
de infância [associada às revistas Spirou, Pilote, Pif, Tintin, ou
Ric Hochet] e bloco da adolescência [Métal Hurlant], não são
mais do que dois registos, até mesmo duas ferramentas entre outras, no seio de
uma prática que se tornou plurívoca e polimorfa” (279, subl.
orig.).
Se bem que o estilo pessoal, por vezes controverso, senão mesmo
polemista, de Menu levante alguns obstáculos e o tornem algo desequilibrado na
argumentação - por exemplo, pela forma como defende necessariamente os seus
gostos provindos da infância (Macherot, Hergé, Tillieux, que ele chega a
afirmar como autores que criam ideias subversivas!, pg. 222) face a outros
textos -, a leitura deste tomo de mais de 500 páginas (na verdade, deveria ter
mais de 600, pelas indicações que remetem a um anexo final que parece
incompleto, mas poderá ser a nossa cópia somente) que aborda a Criação, a
Reflexão e a Produção da banda desenhada, por um dos mais activos e
interrogativos agentes da cena francesa da contemporaneidade não deixa de ser
uma plataforma intrigante, pedagógica e instigadora. Não há dúvida de que Menu,
à sua maneira, tem contribuído para uma banda desenhada “exigente e libertada
das suas contingências comerciais face a um microcosmos vendilhão e mesquinho [marchand
et borné]” (11). E, sendo uma tese no quadro de trabalho prático, é de uma
extrema produtividade ler excertos ou peças completas do autor que não só “ilustram”
como inflectem a discussão académica, ou dão-lhe uma extensão interrogante. Há,
portanto, sinais de uma “meta-prática” (definidas como “transposição para a
esfera da produção certas reflexões da prática criativa”, 211) que poderíamos
detectar, até certo ponto, entre nós, em Teresa Câmara Pestana, José Feitor,
Marcos Farrajota. E, na verdade, a leitura analítica de Menu dos seus próprios
trabalhos é apaixonante e obriga a uma cuidada leitura das suas conquistas.
Mesmo as suas falsas partidas, projectos inacabados, ideias abortadas, fragmentos
sem descrição possível, são vistas, e correcta e luminosamente, como partes de
um todo interpretável e significativo. Aliás, o elogio ao fragmento é uma das
partes mais decisivas de toda a argumentação de Menu. A sua inscrição como “actor”,
central ou até mesmo exclusivo - quase se pode tresler Menu a dizer, “après
moi, le Déluge” (ou, pelo menos, L’Apocalypse) - torna toda a discussão em algo
perigosamente titubeante em termos académicos (e remetemos para este texto da du9), mas mais uma vez convidamos à leitura cuidadosa do livro para
detectar quer os escolhos (bastos) e das lições (não displicentes).
Menu compreende que um dos problemas, a um só tempo criativo e
social, é que a banda desenhada sofre muitas vezes de uma apresentação
estática, e que mesmo os seus leitores mais fervorosos, senão precisamente
esses leitores mais fervorosos, querem sempre ler o mesmo, e não que ela
acompanhe o desenvolvimento intelectual, emocional e cultural de criança a
adulto. Quando Menu escreve, em relação a leitura da obra de Franquin, em
criança com Spirou e depois com Idées Noires, “Era como se eu
visse as minhas leituras a crescer ao mesmo tempo que eu” (27), dá conta de uma
possibilidade que nem sempre se verifica na maior parte dos leitores - que ora
abandonam esta linguagem como parte da sua infância/adolescência ora a
preservam somente num estado em que a ela remeta. Esta atitude não apenas é
notada nos coleccionadores, amantes bedéfilos e comentadores, como em toda uma
série de mal-entendidos entre o circuito artístico e a banda desenhada, que é
analisada com veemência e produtividade, sobretudo em relação a muitas
exposições que partem de comparativismos fáceis, redutores e até perigosos, da
qual a banda desenhada sai sempre “mal”. Em relação à Vraoum, por
exemplo, mas aplicável noutros contextos, escreve Menu: “com efeito, juntando
num mesmo local e em primeiro grau as obras de que provêem, elas não procuram
outros ecos senão as das personagens, da mitologia, do universo
dessas obras, e não da sua linguagem” (146, subl. ori.). Por isso,
torna-se muito interessante uma outra discussão, mais à frente, compreensível
na seguinte citação: “A ideia desta Erosão é simples, ela exprime a
salutar porosidade das fronteiras dos campos artísticos: em cada um destes territórios
[das fronteiras disciplinares], podemos encontrar uma forma de poder central
que tem a tendência (e muitas vezes o interesse) a calcificar o seu meio em
género, ao mesmo tempo que existe, nos extremos, uma marginalidade difusa,
propositadamente rebelde, cuja tendência é antes a de pactuar com os povos
vizinhos do que a obedecer às injunções do poder central. Desta forma, a Banda
Desenhada, quando não se contenta a imitar a digerir a si mesma, sabe
contaminar-se por múltiplas outras disciplinas, alimentando-se de várias
experiências e, abrindo-se a outra coisa, a desdobrar-se” (366, subl.
ori.). Na óptica de Menu, o trabalho da l’Association, que não se resume à
revista Lapin e ao incrível catálogo de livros e às experiências
oubapianas, mas igualmente aos objectos criados para os subscritores, a forma
como expunham e apresentavam publicamente os trabalhos, como se criava a imagem
(e o “auto-mito”) dos autores e das formas de produção, e à influência que se
sentiria rapidamente quer no circuito dos pequenos e/ou editores independentes
quer no mundo das editoras mais comerciais, em muito contribuiu para esses
desdobramentos em termos de género, de estilo, de linguagem, de materialidade
dos objectos, e de expressão económica e política, no que diz respeito à
distribuição e relação com a imprensa (nenhuma, na verdade), à venda e
comercialização, à relação com todos os agentes da equação
autor-leitor/produtor-consumidor.
Em conclusão, e regressando a Menu, subscrevemos esta ideia: “a
Banda Desenhada não existe, o que há são formas de bandas desenhadas,
cada vez mais diferentes” (220, subl. ori.). E l’Association contribui, de modo
a um só tempo controlado, contínuo e contundente, com muitas dessas diferentes
formas. Esta tese de Menu contribui para uma narrativa - não sem contornos
mitificadores e de uma subjectividade quase extrema - dessa mesma história, mas
igualmente para compreender os desdobramentos internos a esse capítulo da
produção.
Não há como evitar pensar neste livro como um “lavar a roupa suja em
praça pública” ou um “contra-ataque a Menu”. Com histórias assinadas e, nalguns
casos, baralhadas, de David B,, Charles Berberian, Jean-Louis Capron (da
Cornélius), Jean-Yves Duhoo, Killoffer, o associado desaparecido Mokeït, Joann
Sfar, Stanislas e Lewis Trondheim, este volume, que marca o regresso de muitos
destes artistas às rédeas da casa depois da saída (tempestuosa) de Menu,
parecer querer contar a sua própria versão dos factos. É mesmo contraponto de XX/MMX,
ou uma espécie de contra-comemoração, ou comemoração do aniversário por quem
tinha sido deixado “de fora”. Tendo-se previsto editar noutro local
(Shampooing), o regresso dos associados originais ao ponto de partida leva a
que este gesto surja no seu seio, e isso faz todo o sentido. O grande problema
desta publicação, compreendem os leitores, é que é de um interesse limitado,
apenas para aqueles que têm interesse na história particular deste grupo de
autores, ou o que ele representa na esfera social da banda desenhada francesa
contemporânea. É um exercício de ensimesmamento e de auto-importância
monumental.
A leitura deste livro é uma espécie de biografia de toda
l’Association, a partir destes outros membros (mas Konture está totalmente
ausente, assim como a de outros artistas, mais ou menos contínuos, como
Baudoin, de outra geração, ou, como muito bem aponta Capron, todos os
“assalariados” que trabalharam nesta plataforma). A formação das amizades, as
primeiras decisões. As invenções dos pormenores que compõem a casa editorial,
os primeiros deslizes, discussões e afastamentos. As reuniões, regressos e
cortes finais.
David B. e Trondheim tentam mostrar a sua versão dos factos, desde os
momentos da fundação até ao corte final, mas não conseguem fazer representar
Menu sem ser um controlador quase histérico (tal como ele próprio se faz
representar, na tese citada acima, enquanto coração, motor e génio isolado).
Mokeït recusa-se a tomar partido, e a sua versão dos factos mostra um retrato
mais matizado. Stanislas prefere o humor, e Killoffer prefere ainda uma posição
diplomática. Capron mostra uma terceira versão, enquanto colega “exterior” ou
de projecto, e tanto celebra a Association como não esconde que este mesmo
gesto, que estamos a ler, pode ser sinal de um fim. Sfar é uma espécie de
repórter equilibrado, e as páginas deste autor que haviam sido, de certa forma,
“censuradas” por Menu demonstram de imediato um rol de problemas graves numa
plataforma que se queria independente e alternativa nos modos de funcionamento.
Este livro é um gesto quase inédito. Autobiografia, biografia de
grupo, monografia sobre um projecto, desmontagem de uma personalidade, retrato
de uma época e de uma circunstância, tanto se pode revelar apaixonante e
contribuindo para um retrato cada vez mais complexo (a tal “novela” que citámos
logo ao início), ou, para quem não quiser saber destes pormenores e preferir
ler as excelentes produções editoriais da casa, um desvio inominável… Mas a
Association sempre se compôs de satélites…
Apenas a título de recado, ou
marcação de mais uma perspectiva, temos este pequeno livro. Na esteira de duas
obras anteriores dedicadas aos “momentos-chave” da história da banda desenhada,
e uma dedicada a um colega da editora (Mon Killoffer de poche), esta
pequena obrinha faz também parte deste balanço. Umas dezenas de imagens
recordam, de formas mais ou menos claras, outras pedindo um conhecimento íntimo
da história e dos pormenores das personalidades e projectos da l’Association,
os vintes anos discutidos nas outras obras com recurso a outras ordens de discurso.
Miscelânea a um só tempo nostálgica, diplomática, comemorativa, e de certa
forma melancólica, é uma forma talvez sucinta de recordar toda aquela aventura,
esperando eventualmente que se possam repetir tantos momentos decisivos (menos
os tristes).
1 comentário:
Näo tem muito a ver com o teu artigo mas bd vintage em Franca,é demasiado moderninha para Portugal
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