Não se tratando propriamente de um catálogo da exposição dedicada ao artista no Oakland Museum of California, não obstante trata-se de um projecto editorial com ela relacionada, partilhando o título, a pessoa da comissária (Susan Miller), e, como é de esperar, muito dos materiais apresentados, com a diferença fundamental da forma diferente em que ambos são apresentados num espaço físico, tridimensional, que se atravessa com o corpo, e num livro, folheado pelos leitores.
O livro é acompanhado por alguns textos, mais ou menos ensaísticos, mas a esmagadora maioria deles são algo impressionistas, tais como o encómio (mas ainda assim iluminador) de Chris Ware e as considerações algo superficiais de Chipp Kidd; uma entrevista por Kristine McKenna apresenta-se como atravessando toda a carreira e vida, e misturando ambas as dimensões, mas parece-nos algo confusa, e sem grande possibilidade de fazer deslocar novos sentidos, novas informações ou novos posicionamentos de Clowes. Há outro texto sobre David Boring e as relações de Clowes com o cinema, por Ray Pride, mas não nos parece que também chegue a ideias muito claras. Susan Miller tem um texto sobre a capacidade de Clowes enquanto retratista/caricaturista, que demonstra como os instrumentos da História de Arte podem ser bem empregues no seu diálogo com a banda desenhada e ilustração. Ou seja, como se espera neste tipo de gestos editoriais (mas que enfraqueceria se pretendessem seguir os mesmos passos estruturais e críticos de um catálogo de arte), não encontraremos aqui materiais maciços. Com uma excepção. Exemplar, todavia, é o texto mais alongado de Ken Parille, um conceituado crítico de banda desenhada. Concentrando-se nas quatro obras de maior fôlego de Clowes desde os anos 2000 – e nas suas versões em livro, não a serialização, a saber, Ice Haven (2005), Wilson (2010), The Death-Ray e Mister Wonderful (ambas de 2011) – Parille faz uma close-reading de alguns dos aspectos de cada um destes livros, obrigando os leitores a redescobrir as razões pelas quais Clowes é, com efeito, um autor determinante da contemporaneidade e, espera-se, influente. É impossível dar conta de todos os passos de Parille, sem se incorrer na repetição de todo o texto. Começando pela ideia mais geral (aparentada à de Thierry Groensteen) da “heterogeneidade gráfica”, o crítico fala do “fim do estilo”, precisamente para analisar, até mesmo comparativamente, as formas como Clowes multiplica a sua linguagem gráfica no interior de uma mesma narrativa, para chegar a uma definição de “afecto” como “o nosso estilo emocional do momento” (168), seguindo depois análises dos narradores duplos (da imagem e do texto), a grafia dos textos, as formas dos balões e legendas, a gestão das cores e texturas dos desenhos, das cenas de fantasia e de memória das personagens, das relações com os tempos diegéticos e da narrativa, passando por questões de representação, caricatura, fisionomia e empatia, a formatos das vinhetas e gestão dos silêncios. “As escolhas formais dão corpo [embody] à psicologia das personagens” (162) é corolário e epítome desta fabulosa lição.
Não deixa de ser inesperada, e algo contraditória, a forma como este crítico goza com a figura do crítico de banda desenhada no interior de Ice Haven, Harry Naybors, falando do jargão deste, ou das formas como lança as redes de interpretação, quando o próprio Parille, sem entrar nos abusos – sobretudo na esfera do patético e do pessoal – de Naybors, demonstra a capacidade que o crítico tem de iluminar um texto, para o elevar ao estatuto de obra de arte, como escrevera Benjamin.
Se bem que não apreciemos a utilização do vocábulo “evolução” para falar das torções internas e pesquisas cambiantes que presidem à obra de um qualquer artista, é visível a diferença entre os trabalhos de meados dos anos 1990 (Lloyd Llewellyn e etc.), devedores de uma inscrição retro e pós-underground, que recorda a um só tempo Jim Flora, Robert Williams, Beatnik jazz e hot rod, e aquela maior acalmia e cada vez mais profunda investigação pela natureza humana que começou, discutivelmente, com Ghost World (1994-1997). Mas este livro concentra-se sobretudo na última produção, quiçá secundarizando o humor corrosivo, mais adolescente do primeiro Clowes (perfeitamente irmanável com Peter Bagge, Joe Matt, John Ryan, Ivan Brunetti, etc.), e sublimando as obras que o colocariam mais próximo de toda uma produção de “graphic novels” mais “literárias” – pelas quais ganhar um reconhecimento crítico e académico determinado, aproxima-o de um cânone contemporâneo da banda desenhada norte-americana, e angaria prémios prestigiados (Pen Center) – e as suas dimensões de estilos variados – que o colocam ao lado de outros reinventores da linguagem em questão, como Ware.Como possível cartografia da sua obra, ou balanço crítico, ou plataforma de descoberta dos vários níveis de produção, criação e pensamento, este livro não deixa de ser uma ferramenta oportuna, invejável de existir em relação a muitos outros autores.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

Sem comentários:
Enviar um comentário