Por alturas da redacção deste texto, lemos apenas doze dos quinze volumes desta série, uma vez que as suas várias edições em várias línguas, ou nos são algo inacessíveis ou ainda se encontram em curso (como o caso da versão em língua portuguesa, pela Panini brasileira). Essa própria acessibilidade é também sinal do pouco sistemático e ainda por alinhar modo de circulação da mangá no interior dos vários mercados de banda desenhada internacionais, demarcando-a ainda como um território especial (mas que deve ser considerado também em cada contexto particular, desde a deficitária presença de obras europeias no mercado norte-americano ou no rico e diversificado panorama do mercado espanhol), por vezes entendido com desconfiança, ou sofrendo um tratamento genérico que não é atento nem à sua diversidade interna nem às suas especificidades, que de facto podem ser genéricas (até certo ponto, tal como qualquer outro pólo de produção amalgamado). Se podemos olhar para o mercado francês, alemão e norte-americano como com uma grande oferta, nem sempre ela coincide entre países, e nalguns casos, Espanha toma a dianteira (como o caso de Billy Bat, de Urasawa, de que falaremos em breve). Logo, se estas considerações que agora se tecem têm em conta a leitura desses volumes apenas, no que diz respeito à intriga em si poderá haver ainda desenvolvimentos que possam alterar algumas das suas conclusões.
A série mais conhecida, anterior, de Yamamoto, foi Ichi the Killer, cuja circulação se tornou particularmente marcante pela sua adaptação cinematográfica na versão magnífica (ou horrenda, doentia?) de Takashi Miike. Apesar do grau altíssimo de violência, gore e loucura dessa outra série, o factor decisivo do seu sucesso foi o tratamento profundo da dolorosa relação psicológica do protagonista, Ichi, consigo mesmo: atormentado desde a sua infância, abismado pela sexualidade, legado no conflito entre dois clãs de yakuza, essa tormenta parece encontrar uma solução, mesmo que momentânea, no confronto directo com outro assassino demencial, Kakihara (desempenhado no filme pelo sublime Tadanobu Asano, que também protagonizou um filme baseado na obra de Tsuge). São esses dois aspectos que são herdados por esta nova série: a preocupação com a exploração das psiques das personagens e a eleição de um espaço de confronto, relação e crescimento entre duas personagens. Neste caso o “par” é constituído por Susumu Nakoshi, que nos parece ser um sem-abrigo, ao início, e o jovem estudante de medicina Manabu Ito, que pretende explorar os limites do ser humano, quer física quer psicologicamente, recorrendo a uma técnica de trepanação. Se esta antiga operação remonta aos tempos medievais para a extracção da “pedra da loucura”, o tratamento ficcional de Yamamoto associa-a a várias correntes de pseudo-ciência (e os livros são todos acompanhados com notas a pedir que os leitores não tentem fazê-lo, e não é tão ridículo assim anotar isso…), uma vez que o objectivo do estudo de Ito é despertar o sexto sentido dos humanos. O que ocorre a Nakoshi é que, quando tapa o olho direito, vê as pessoas como monstros, ora totalmente transformadas, ora com pequenos desvios físicos. Essas formas fantásticas são os “homúnculos” do título, isto é, uma deformação que parte da propriopercepção das personagens. No entanto, na excelente tradição da banda desenhada japonesa, a intriga será bem mais complicada do que isso…
As pessoas não são vistas apenas numa forma, mas em formas dinâmicas ou passíveis de sofrerem alterações, que poderão ser profundas para elas mesmas – aliás, seguem o esquema psicanalítico da perlaboração, dando a entender que se esta capacidade de ver e responder directamente a essas formas existisse na realidade, as “curas” seriam relativamente simples e céleres (isto é discutido no livro). Nakoshi vai literalmente “apalpando terreno” para descobrir os contornos e limites deste novo muno. Mas é a economia destas descobertas paulatinas ao longo dos volumes que torna a sua leitura em série apaixonante, como ocorre com outros autores recentes (Urasawa em primeira linha, mas também a primeira parte de Death Note, como havíamos já notado).
O jovem médico, quando revela no terceiro volume o significado das estranhas visões de Nakoshi através da noção e teoria do homúnculo (ancorada uma parte em ciência real, para tornar plausível a parte da fantasia), dá o mote principal dessas mesmas visões fantásticas, que são connosco partilhadas. É que as formas fantásticas não são tanto o “verdadeiro eu” das pessoas, mas sim uma equação que combina a maneira como elas se vêem a si próprios e os filtros do visionário, apontando a uma inter-relação, uma interpenetração das pessoas. A memória dos eventos que desencadearam essa forma é portanto vista como uma “prática social material, mais do que uma faculdade mental, e a qual é inerente a processos inter-mentais, mais do que intra-mentais”, para citar uma descrição afecta à investigadora Constantina Papoulias. Uma feixe que mistura memória, afecto, discursividade, representação e interrelacionamento está envolvido, portanto, nesta série. A qual se tornará muito significativa no particular contexto histórico, geográfico e cultural japonês, que terá seguramente diferenças das do mundo ocidental, ou do nosso português em particular, mas que não teremos nem os conhecimentos nem os instrumentos para analisar. “As distorções dos homúnculos são minhas distorções”, diz Nakoshi (vol. 7). Uma grande parte do interesse desta trama está na tensão que existe nas descobertas que ambos fazem juntos (ainda que nem tudo seja partilhado honestamente), acrescido do “mistério” sobre a identidade de Nakoshi, a qual vamos descobrindo também aos poucos. É evidente que essa economia só é permitida pela própria condição de produção da banda desenhada japonesa, que permite que se explorem com mais parcimónia e vagar as micro-acções e reacções morais das personagens, ao invés de se ver obrigado a saltar de acção em acção, como ocorre nos projectos do mainstream ocidental. Exemplo maior nesta série, talvez, será o volume 5, totalmente dedicado ao diálogo e relação que se estabelece entre Nakoshi e uma jovem adolescente.
Isso permite que haja grandes “arcos” interiores à trama principal, ou “actos”, melhor dizendo, que vão criando inflexões ou momentos especiais, como quando Nakoshi cose o olho, para “mergulhar” no mundo dos homúnculos, ou dos seus sonhos, nas palavras de Ito, que naquele momento parece querer impor a ideia de que são meras ilusões criadas graças à sua própria capacidade de persuasão hipnótica sobre Nakoshi. Mas em contrapartida, essa economia leva também a que haja a procura de soluções pela construção de páginas visualmente simples de executar, eliminando cenários, simplificando a figuração, optando por enquadramentos próximos o mais possível dos objectos, empregando tramas industriais ou até materiais pré-fabricados (como cenários urbanos). Um exemplo máximo dessa técnica de atalho é esta página [no presente parágrafo], em que o diálogo na penumbra de um quarto leva a que tudo de reduza a perfis ou apenas a olhos sobre fundos negros. Não obstante, isso faz igualmente aumentar a pressão na leitura dos textos e ao avanço rápido, até mesmo físico, das páginas (a que ajuda o formato tankobon), fazendo com que o corpo do leitor mime – como pode - a tensão presente no diálogo.
A discussão no volume oito com Ito, antes da segunda intervenção cirúrgica, por exemplo, cria sequências magistrais desse movimento para trás e para diante entre as percepções “normais” e as “visões”, levando a um complexo, intenso e hipnótico ballet. São momentos como este que trazem alguma disrupção a certas ferramentas de análise da banda desenhada que se pretendem universais. Se as transições entre vinhetas, de acordo com as lições de McCloud, são de momento-a-momento ou de acção-a-acção, isso não será suficiente para descrever as travessias de significado presentes nessa cena. Isso tem implicações também a nível narratológico, que se vai complicando. Se o facto de ser-nos tornado possível observar também o que Nakoshi vê, mas somente nesses momentos, e sempre na “proximidade” dessa personagem, a narrativa leva-nos a imaginar um narrador (ou meganarrador, englobando o visual) que se mescla com a percepção do protagonista. Mas no volume 10 é-nos dada a possibilidade de acompanhar as memórias embaralhadas de Ito e do seu pai, para nos ser revelado o segredo “do peixinho da infância” (esta referência, asseguramos, é claríssima na sua leitura), aumentando o grau de omnisciência. Yamamoto tira partido, portanto, dos vários regimes possíveis, conforme isso o ajuda a tornar a intriga mais impactante a nível não só da informação, digamos em termos policiais, como a nível emocional. Se há uma complexa inter-relação emocional entre as duas personagens, uma espécie de ping-pong constituído por curiosidades e desconfianças mútuas, um instável jogo entre o que cada um revela ao outro de si mesmo, esse brusco movimento quebra-lhes a distância, fazendo mostrar as possibilidades (mas até ao fecho da série pode haver mudanças dramáticas) da interdependência. A qual, diga-se de passagem, é a estrutura basilar da narrativa, como havíamos já apontado. Em termos de agência, não se pode considerar Nakoshi ou Ito, individualmente, como os facilitadores das acções, ambos precisam um do outro.
Nalguns momentos, as visões – sendo sempre necessário recordarmo-nos que as transformações fantásticas são fruto apenas da perspectiva de Nakoshi, não pertencendo à “realidade” da diegese, e por isso mesmo constituindo matéria do fantástico tal como descrito por Todorov – acabam por ganhar uma proeminência assustadora, recordando o terror biológico de um Junji Ito ou de um Shintaro Kago (mas sem cair na abjecção e no asco),ou de Charles Burns ou Al Columbia (sem o desespero).
O corpo é um nódulo capital nesta obra. Não apenas porque a visão permite a Nakoshi a observação das tais “formas corpóreas”, mas porque ele se abandona a toda a maquinaria sensória – são várias as cenas em que o protagonista cheira, saboreia, escuta, tacteia, o mais atentamente possível superfícies de objectos, pessoas e lugares, e as vinhetas mostram o pormenores dessa acções penetrando ao nível microscópico e interior do corpo, até ao nível mesmo das sinapses, muitas vezes servindo de umbrais proustianos – revelando dessa maneira aquilo que o investigador britânico Ben Highmore chamou de “a mais estranha materialidade de todas”, a do corpo. E o corpo não surge apenas aqui como forma exterior, invólucro. Ele é discutido mesmo no seu peso carnal, na sua superfície enquanto factor de inscrição e aceitação social (pela beleza, os sinais de sucesso, etc.), mas também naquela dimensão de máquina sudorífera, ejaculante, sofredora, plasmável, nexo de dentros e foras. De facto, as várias explorações entre o interior e o exterior do corpo – a cena espelhada em que Nakoshi ejacula na palma da mão e ingere o esperma e a jovem rapariga bebe o sangue que faz sangrar nos calcanhares, a ingestão do peixinho por Ito – levam a que a ideia psicanalítica da incorporação se torne central. Na verdade, um quadro de conceitos psicanalíticos, tal como operativo na análise literária, revelar-se-ia seguramente produtivo nesta obra (mas possivelmente também, pela clareza desses movimentos, dogmático, ou de mera “aplicação””). Aliado à vivência de Nakoshi num limbo social, as práticas infantis, e depois impostas, de travestismo de Ito, a mitomania e constante desvio à verdade toda pelos dois, são igualmente sinais dessa complicação, explorada repetidamente, sempre com inflexões diversas, ao longo dos vários tankobon.
Uma das grandes linhas de força interessantes deste livro é que, apesar da sua dimensão fantástica, é ao mesmo tempo um olhar atento à sociedade japonesa. Aliás, a talvez até esse olhar se torne mais significativo precisamente por não se reduzir a uma abordagem realista, mas um gesto de contornos de pesquisa psicológica através do fantástico que vemos raramente empregue (como por exemplo em Zil Zelub, de Buzelli). A mera presença de sem-abrigos, dos vários tipos de prostituição ou actividades próximas da prostituição entre adolescentes, das cirurgias plásticas e a importância que isso revela naquela sociedade (e até associando-se aos modelos figurativos clássicos da mangá, de certa forma, mostrando aí, e noutros momentos breves, uma capacidade de metalinguística), as questões do desprezo que existe entre as classes sociais, são alguns dos elementos que demonstram a atenção social de Yamamoto.
Pela dimensão fantástica, pela ciência-limite, pela densidade psicológica, pelo jogo tenso entre as duas personagens, pela intriga, pela espelho semi-distorcido que pode dizer algo de nós, Homunculus é uma obra capital da cena da banda desenhada japonesa contemporânea.
Nota final: falámos de edições várias, uma vez que lemos sobretudo parte da edição brasileira (Panini Comics) e francesa (Tonkam), mas ainda alguns dos volumes numa edição pirata em scanlation – o que só em si merece toda uma atenção especial enquanto fenómeno entre a demanda comercial e o trabalho dos fãs - da edição original (Big Spirit Comics) em língua inglesa. Agradecimentos a José Marmeleira, pelo empréstimo do primeiro volume.
3 de setembro de 2012
Homunculus. Hideo Yamamoto (várias edições)
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:28 da manhã
Etiquetas: Japão
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