10 de setembro de 2012

Monologues for Calculating the Density of Black Holes. Anders Nielsen (Fantagraphics)

A palavra que ainda continua associada ao trabalho de Nielsen é “pesquisa”. Se este volume é, em muitos aspectos, desde os formais do próprio livro aos seus temas recorrentes, um companheiro ou mesmo gémeo a Monologues for the Coming Plague, essa insistência só pode ser vista como o mais correcto escavamento das suas preocupações. Se o primeiro termo, “monólogos”, é quase meramente descritivo da maneira a que as personagens têm acesso para se construírem a si mesmas, os segundos termos, isto é, os objectivos dos mesmos, são tão grotescos que apenas esvaziam esses mesmos gestos. Tornam-nos “absurdos”. Nada disso, porém, invalida que se continuem a repeti-los, e que se insista na pesquisa.
As figuras esquálidas, aparentemente desenhadas ou mesmo rabiscadas a esferográfica, não precisam de ser mais moldadas do que são para surgirem como sinal ou marca de presença das vozes que depois se articulam. Como as obras anteriores – com a excepção talvez da narrativa mais nítida (e estaremos a exagerar) que atravessou o centro de Big Questions – de Nielsen, o que temos aqui são sketches, pequenas cenas que tanto poderemos ler como isoladas e auto-suficientes como pedaços que se articulam entre si. Quer num caso quer no outro, porém, os sentidos são tão banais e corriqueiros como profundos, e por isso sempre elusivos. Imaginamos mesmo que estamos perante uma espécie de notação para impromptus teatrais (corroborado por o autor empregar a palavra “acto”), a partir dos quais uma troupe de actores poderia lançar-se à sua própria pesquisa de como transmitir o mesmo tipo de paradoxal “passional apatia” destas personagens. Em algumas passagens, vemos a súbita presença de uma sombra, um outro corpo, como se fossem a ideia de algo de que depois se desistiu, ou, para continuarmos a transposição metafórica teatral, como se fosse um outro actor que se enganasse no momento da entrada ou que procurasse estes efeitos de estranheza precisamente por não cumprir um programa de causalidade, naturalidade, narrativa.
O carácter fragmentário não se poderá explicar somente pelas circunstâncias de produção – sendo pequenas peças criadas para mini-comics ou antologias (Mome) – mas igualmente por Nielsen se interessar particularmente por esta ideia de escalas diferenciadas que podem sofrer várias permutações.
Quem são estas personagens? Sofredoras de mitomania, até ao ponto de acreditarem serem seres divinos? Vítima patéticas de um sistema social incomensurável, que nos obriga a provar a nossa própria identidade através de uma série de documentos e actos registrados? Personagens criadas pelo autor lançadas em situações que depois de atravessarem todo o deserto do desespero se tornam caricatas? Os rostos riscados ou as personagens que negam permanentemente a sua identidade, ou a não controlam ou possuem, os erros de comunicação, a alteração física que por vezes ocorre a várias personagens ao longo das suas histórias, etc., tudo isso contribui para essa ideia.
No entanto, é precisamente pela abordagem ultra-minimalista de Nielsen – as personagens não têm traços que componham o mais mínimo rosto, logo a questão da expressão está como que suspensa - que o humor, o tão particular humor do autor, emerge. Nesse sentido, mas não noutras particularidades, Nielsen encontra uma família imediata em David Shrigley e Bruno Borges. Também nesses casos a importância centra-se na imperturbável e mínima dimensão visual e a complexa reviravolta construída no texto. Se nalguns exemplos anteriores, Nielsen tinha personagens que não se moviam mas os diálogos pareciam inscrevê-los em cenas de grande dinamismo, neste caso o(s) monólogo(s) do(s) protagonista(s) remete(m) sempre a acções já passadas. E então a estranha apatia que os atravessa torna-se ainda mais premente por percebermos as suas histórias, que deveriam antes ter levado à raiva, à vingança, ou ao desespero terminal.
Nielsen tem um alvo que desmonta: a credulidade humana em soluções fáceis e absolutas. A psicanálise, a religião, a astrologia, os livros de auto-ajuda, a Oprah, seja o que que for que as pessoas encontram como fórmulas de se sustentarem de uma vez por todas. O problema não está em crer-se de vez em quando no que diz a secção de astrologia, ou encontrar algum sustentáculo em consultas breves de psicanálise ou recorrendo a psicofármacos, ou jogar no Euromilhões e fantasiar nos usos da fortuna. Está em crer que existe uma “chave mágica” que, mais tarde ou mais cedo acertará, que dizermos “sou Caranguejo” explica quem somos, que esgotando a nossa história a um qualquer processo de “cura” definitivo se atinge a felicidade. que há, enfim, uma explicação (problema duplo: o da univocidade e o da solução). Todas essas soluções, quando surgem como absolutas, obsessivas para os seus utilizadores, são então aqui reveladas como edificações vazias e trémulas. Os reality shows que criam uma camada de auto-consciência e auto-escopia que se tornam por sua vez num filtro que impede precisamente a realidade de ser experienciada, a qual, para o ser, deveria fluir pela distracção. Quando não são mais do que desculpas para continuar a aprofundar a instrumentalização (e a mercantilização ou “comodificação”) da vida humana e a criação de novas oportunidades de comércio para marcas e produtos já consolidados. Os celebrity matches, em que o exercício do conflito apenas serve não tanto para uma verdadeira exploração do valor eventual dos combatentes, mas de uma redução das suas características, reificadas elas mesmas para se construir essa tensão. Além do mais, não será impossível ver nessa interminável lista (de Madonna a Jay-Z, Bin Laden a Martha Stewart, mas passando igualmente por eventos históricos, disciplinas médicas e espécies de animais) um estado do ridículo em que tudo é redutível a tudo, sem quaisquer tipos de hierarquias ou diferenciações. É como se esta(s) personagem(ns) tentasse dominar toda a espécie de disciplinas e discursos para que se pudesse entender o mundo, as pessoas e as situações, mas quanto mais instrumentos elegesse e agregasse, apenas esclarecesse o único facto de que tudo não é mais do que absurdo. Tudo isso contribui então para o fito central… o cálculo da densidade dos buracos negros.

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