Tendo escrito sobre este livro quando foi publicado originalmente, em 2006, e tendo encontrado algumas formas de dar continuidade às preocupações nele presente pelas inflexões permitidas por Are You my Mother?, ficaremos apenas por umas quantas breves notas, a propósito da edição portuguesa de Fun Home. Apesar da ainda deficitária oferta editorial em Portugal de uma banda desenhada mais aberta às preocupações contemporâneas do mundo e à pesquisa autoral e artística, e a ainda mais paupérrima recepção crítica e de público, ainda atreitos a uma perspectiva menorizante desta área, no último ano o surgimento de Persepolis e Blankets e Diário Rasgado, e este, fazem imaginar a possibilidade de criar uma pequena biblioteca assente em outro tipo de princípios culturais (por mais diversos que sejam esses gestos entre si).
A banda desenhada não é, de forma alguma, um todo, uma mole constituída pelo número máximo de objectos, textos, obras, cujos elementos constitutivos, por sua vez, seriam totalmente coincidentes. Ainda que seja possível encontrar marcas ou delimitações comuns - que permitem, para começo de conversa, o emprego desse termo composto, “banda desenhada” - existe um particular desenvolvimento histórico, pejado de circunstancialismos, que lança também uma complexíssima rede de diferenciações. Ao longo dessa mesma história será possível encontrar textos que, por uma ou outra razão, são irmanáveis, e houve casos de autores e/ou obras que conseguiram, com os seus instrumentos usuais, tocar as raias da existência humana. Mas não a esmagadora maioria, fechada antes nas mais imediatas preocupações do entretenimento.
É de facto apenas num momento tardio do século XX que alguns artistas de banda desenhada iniciaram um caminho que se afastaria da produção de genéricas aventuras de heróis, inflectindo precisamente na representação da vivência particular do indivíduo. E se podemos encontrar nas experiências de Harvey Pekar e de Robert Crumb uma rebeldia em relação à produção existente do seu tempo através das diatribes ou explorações do si sozinho, já outros autores norte-americanos, de Art Spiegelman a Alison Bechdel, Fabrice Neaud ou Emmanuel Guibert, cada qual do seu modo, partem dessa solidão para atingir as ramificações que estabelecem com o outro, tornado “familiar”.
Esta última palavra deverá ser compreendida num sentido de alguém que nos é conhecido, nos é íntimo. Mesmo que na autobiografia em banda desenhada se encontrem vários graus de relação com os “objectos” dos textos, como nos casos de Emmanuel Guibert, Étienne Davodeau ou Dominique Goblet, usualmente voga-se na proximidade das unidades familiares, em Edmond Baudoin, em David B., em Alison Bechdel. E, como já aventámos antes, a leitura de Fun Home merece ser autónoma, mas ao mesmo tempo coordenada, desde já, ou pelo menos com conhecimento, do novo dedicado à mãe, o que tempera a secundarização dela neste volume agora traduzido para português. O excelente artigo de José Mário Silva, no Expresso, aponta precisamente esse aspecto, mas oculta, de certa forma, os desenvolvimentos para além do livro.
Permitam-nos uma generalização, uma espécie de dicotomia tonta e perigosa, mas que pode ser vir de ponto de partida para um debate ou uma discussão. Uma forma de entendermos, de uma maneira muito geral (generalista, simplória, redutora), a banda desenhada de memórias norte-americana por um lado, e a europeia, esmagadoramente francófona, por outro.
As memórias, numa leitura de Esther Leslie sobre Walter Benjamin, estão próximas do kitsch, objectos ruinosos e abandonados, os quais, “once winkled out of the fashion circuit of commerce – that is, once it becomes passé – it can be viewed through telescope eyes” (“Telescoping the Microscopic Object: Benjamin the Collector”). As memórias “americanas” ainda valorizam as memórias como moeda corrente, ainda há um fito para elas. A memória é algo útil. Nos autores americanos não existe uma esperança no passado (a esperança paradoxal de que dele possa emergir algo de inesperado, algo de diferente), pois essa memória encontra-se presa na sua própria cronologia, inalcançável, é como que um peso do pecado feito, tem um efeito, ou melhor, um valor económico, traumático. Na esmagadora maioria dos casos europeus, sim, essa esperança existe pela aberta interpolação, i.e., a interpretação que dela fazem... Poderíamos mesmo ir ao ponto de trazer à tona, não uma dicotomia mas dois pólos que operariam no interior de um espectro contínuo, o da “memória em banda desenhada”, e que permitiram encontrar, formados por várias combinações de proporção, aquilo a que chamaremos nós memografias e memologias, as primeiras sendo uma (jamais simples) transcrição das rememorações num texto (no nosso caso, vinhetas em sequências), com um intuito de recontá-las cronológico-linearmente e as segundas sendo explorações da matéria da memória, mimando os seus movimentos internos e suas fulgurâncias no próprio modo do contar.
Não queremos, como é de esperar, insistir numa qualquer hierarquia entre trabalhos, para mais sem qualquer análise e simplesmente partindo das circunstância de línguas ou de nacionalidades. É uma hipótese de trabalho. Bechdel poderá eventualmente ser comparada com muitos outros autores pela sua matéria narrativa e estratégias temáticas, com Spiegelman, claro, mas igualmente com Justin Green ou Chester Brown, Debbie Drechsler ou Aline Kominsky, com Craig Thompson ou Marjane Satrapi. Mas nós cremos que Bechdel abdica de todas as estratégias auto-fictivas, delicodoces, fantasistas, projectivas, resolúveis, humoradas, de muitos desses autores, e enfrenta de uma forma mais decidida a sua própria psique e a sua relação com os membros familiares (no caso de Fun Home, é o pai a figura eleita). Isto não quer dizer que não haja estratégias de pequenos desvios ficcionais e fantasiosos, que o livro seja desprovido de humor, que não haja momentos em que se projecta um desejo de resolução - a magnífica cena final, que re-aproxima e sublinha a capacidade de toque entre pai e filha, que faz emergir o toque do pai morto à filha ainda viva.
Acima de tudo, Fun Home pode ser visto como um programa previsto em toda e qualquer autobiografia: a da construção da própria identidade. Este livro é tanto sobre o pai e a sua relação com Alison como a construção dela mesma por ela mesma. Mais, este livro faz parte ainda dessa construção.
Estando ainda a preparar uma apresentação para as Conferência de Banda Desenhada em Portugal precisamente sobre a obra de Bechdel, sobre o uso de cenas de sonhos e de fotografias na matéria dos seus livros, fica esta breve nota, sobre essa outra dimensão da subjectividade na superfície do texto a ler. Todavia, o livro desdobra-se em dimensões de sentido. A atenção que Bechdel dá ao modo como tece as várias linhas de vozes (descritivos, legendas de narração, diálogos, citações de livros), a construção das páginas, tanto aparentemente simples e despreocupadas como extremamente significativas nas suas tensões figurativas e de composição, a sua obsessão arquivística (segundo um estudo de Ann Cvetkovich), a levíssima camada “nevoenta” das aguarelas e o importante design do livro (infelizmente, uma das dimensões em franca perda na edição portuguesa: serão as razões económicas porém compreensíveis? É uma justificação, mas deve ser entendida também como uma franca “perda de texto”). Fun Home é um elegante edifício, cujos elementos devem ser degustados com parcimónia e atenção, numa segunda ou terceira leituras.
Nota: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.
14 de setembro de 2012
Fun Home. Alison Bechdel (Contraponto)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:29 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, EUA
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