Jared Gardner é um investigador associado à área da cultura popular, e os seus interesses sempre vogaram em torno do início do século XX, entre o cinema, as revistas periódicas, a literatura e a banda desenhada. Neste último campo, ele é autor de alguns ensaios significativos, sobre um dos quais, “Autobiography’s Biography, 1972-2007”, esperamos dar notícias brevemente (associado ao próximo FIBDA). Este é o seu primeiro livro que tem a banda desenhada enquanto nexo das suas discussões, se bem que, tal como o de Scott Bukatman, com o qual estabelece algumas afinidades estruturais e conceptuais – e outras diferenças de monta – ela se integra num tecido cultural e artístico mais amplo. Mas onde Bukatman estudava o modo como as artes populares reflectiam certos conceitos da modernidade, Gardner tem uma maior atenção para a recepção e participação do público leitor e espectador. Não se trata tanto de um livro sobre banda desenhada só, nem da sua história, mas antes de uma arqueologia que pretende regressar “à cena das origens com as quais a banda desenhada sequencial [sequential comics] e o cinema [film] começaram a explorar o século XX em conjunto” (pg. 28). O autor compreende momentos de aproximação e de afastamento entre essas duas linguagens, tendo nalguns casos nossos contemporâneos uma possibilidade de regresso a práticas culturais anteriores: “a convergência de filme e banda desenhada pode ser entendida como a aceitação dos elos genéticos que uniram uma vez estas duas linguagens, quando ambas emergiram como novos modos mediáticos de narrativa nos primeiros anos do século XX” (181; leia-se, porém, a entrevista, no fim deste artigo, para alguma temperança). (Mais)
A banda desenhada, em particular, é estudada como um meio que apela a uma participação moderna muito especial, que inspira “projecções, identificações e fantasias” de um modo quase imediato – como por exemplo a imitação de si mesmos, levando a que os seus leitores paguem em papel e lápis e comecem os primeiros passos na conquista desse território (pouco importa agora se esse fim é atingível ou não, e seja como for as circunstâncias, mutáveis, históricas são alvo do estudo do autor). Mas não só, as “projecções” de que o título fala tem de facto um cariz psicológico importante, tanto referente aos investimentos emocionais dos leitores nas personagens e/ou histórias, como na forma como seguem os autores, ou a ideia romantizada, idealizada que fazem deles e delas. Pode-se dizer que a cruz deste livro é auscultar as “possibilidades para a colaboração e a surpresa partilhada entre criador e leitor” (124). O livro, cujo título completo é Projections. Comics and the History of Twenty-First-Century Storytelling, apresenta 6 capítulos, os quais estão organizados de acordo com o cruzamento de dois eixos, o cronológico e o de aglomerados de produção, que podem ser físicos ou temáticos. Vejamos, citando e traduzindo os seus títulos: “1. Fragmentos de Modernidade, 1889-1920”, “2. Prazeres em Série, 1907-1938”, “3. Fã-dependentes e o Comic Book, 1938-1955”, “4. Gráfico na Primeira Pessoa, 1959-2010”, “5. Arquivos e Coleccionadores, 1990-2010”, e “6. Coda: banda desenhada, filme, e o futuro dos modos narrativos do século XXI”.
O primeiro capítulo é bastante devedor a Walter Benjamin, no sentido em que se tece uma história particular em torno dos vários dispositivos ópticos que serviriam de analogia aos modos de consciência permitidos pela modernidade, e que revelariam aspectos até então “invisíveis”, e que Benjamin discutiria a propósito do “inconsciente óptico”. Se bem que a banda desenhada estivesse arreigada desses dispositivos, de certa forma o papel de Gardner é demonstrar como fará todo o sentido considerá-la parte desse movimento, já que essa transformação de consciência é tão material quanto social, e isso é igualmente uma lição de Benjamin. A banda desenhada é “o primeiro e, discutivelmente, o mais importante dos modernismos vernaculares – [e] dedicava-se à diagramatização das complexidades em série [ou “serializadas”, serial] da vida moderna e à fixação dos fragmentos da modernidade na página” (pg. 7). Neste sentido, a tecnologização da consciência e da memória proposta por Benjamin encontra na banda desenhada e nalguns exemplos da animação uma conjugação perfeita, e far-nos-á recordar igualmente as discussões a este propósito de Bukatman no livro recentemente lido.
Em relação a muitos depreciadores da banda desenhada quer por princípio quer por cegueira aspectual (isto é, por quererem encontrar nela algo que ela jamais ofertou ou nem poderia ofertar; mas perguntamo-nos se ambas atitudes não terão muito em comum?), Gardner tenta, através da sua argumentação, demonstrar como a banda desenhada, e outros exemplos da cultura popular, tentavam a seu modo responder à modernidade. Claro que será de uma maneira bem diversa da das artes de vanguarda, por exemplo, mas nesse seu processo próprio, - e aqui ele refere-se aos “serials”, ou filmes apresentados em episódios em série dos anos 1910 e 1920, associáveis logo às tiras de jornal – elas “são textos anti-‘clássicos’ em quase todos os aspectos, trazendo para primeiro plano a descontinuidade narrativa, a intertextualidade, o anti-realismo, e os aparelhos mediáticos necessários para transformar estes filmes em ‘eventos” (34). “Elogio” que surgirá em relação a outros meios, e é vista como uma dimensão positiva, este “desalinho inerente à tira de banda desenhada do jornal diário, multímoda e de fim em aberto” (67).
Um exemplo desse problema dá-se em relação à “densidade” das personagens. A questão problemática está em eleger “um modelo crítico que presume serem apenas personagem psicologicamente complexas, redondas [o autor refere-se aqui aos termos de E. M. Forster] a justificarem uma ligação emocional [attachment] da parte dos leitores” (57). O problema não está propriamente na análise que esses instrumentos permitem, está antes na crença da sua aplicabilidade universal em todos os textos, géneros e fundos culturais. Mais especificamente, esta questão da incompatibilidade emocional com personagens “planas” é falha em relação a contos folclóricos, textos infantis, literatura de género – inclusive alguma banda desenhada – e até séries de televisão. Outro tem a ver com a atitude que surgiria com a escola conhecida como Nova Crítica [New Criticism]: “Rejeitando as exigências enciclopédicas da alusão, da intertextualidade, da história literária, e da biografia, os Novos Críticos privilegiaram antes uma qualidade mental e uma atenção disciplinada à forma do próprio texto”. Ora isto foi fulcral para um crescimento e uma democratização do saber no pós-Guerra nos Estados Unidos, e até para uma abertura de um elitismo empedernido, mas a banda desenhada não se poderia encaixar nesse modelo, já que ela “era necessariamente intertextual e inevitavelmente incompleta, exigindo do leitor que inserisse os seus sentimentos e interpretações, de modo activo, no próprio texto. Era cativante, afectivo, e deleitava-se quer na personalidade do autor quer nas respostas emotivas do leitor” (81). Como se nota no primeiro número da revista Superman (1939), que convida os leitores a conhecerem os autores, associando a personagem a um pólo de produção pessoal. É nesse quadro de referências que a leitura de Gardner do que aconteceu nos anos 1950, em torno da controvérsia e complexa rede de acontecimentos entre as audiências do Subcomité do Senado em torno da banda desenhada, a obra de Wertham e o surgimento do Comics Code, ganha uma importância de pormenor. Em vez de demonizar Wertham de uma forma banal, Gardner compulsa a sua argumentação e a sua capacidade de análise (e os seus erros de análise também) para sublinhar a descoberta fulcral do psiquiatra e reempregá-la na sua própria argumentação: a dos “modos como a banda desenhada desacelera o processo de leitura, abrindo espaço simultaneamente para a atenção imaginativa do leitor em reparar nos detalhes e a fornecer outros” (89).
Outro dos aspectos a que este livro se dedica, e que deriva directamente dessa “atenção imaginativa”, é a emergência da cultura dos fãs, e o modo forte como a interactividade destes se faz sentir, algo que também Henry Jenkins estudou sob o nome de “cultura participativa”, o que o autor chega mesmo a debater enquanto “reivindicações de autoria partilhada” (57). O grau com que qualquer fã se entrega à cultura eleita é detectável em vários círculos, como é óbvio, desde a música erudita a cinematografias específicas, mas em relação à cultura popular essa expressividade muda (daí que haja uma diferença social e classista entre um connoisseur e um fã). Por exemplo, o tipo de investimento emocional sobre estas personagens não nasce de uma complexidade psicológica propriamente dita das mesmas (como vimos atrás, e que é antes, incorrendo em generalidades, apanágio de outro tipo de linguagens artísticas, mormente a literatura), mas antes da sua presença contínua, quotidiana, íntima mesmo: “uma personalidade que emerge através da repetição em série” (14). O autor cita Michele Hilmes numa afirmação fulcral a ter em conta neste quadro: a de que “O jornal é a forma serial original: aparecendo todos os dias, com finais abertos, e muitas secções recorrentes” (apud pg. 46, de Radio Voices). É isso o que explicará o impacto emocional – “a profundidade de sentimentos reais”, escreve-se na pg. 55 - que Gardner estuda em torno da morte da personagem Mary Gold, em 1929, na tira de jornal The Gumps, de Sidney Smith (cf. a entrevista, hoje quase incompreensível; e veja-se a fotografia em que Smith literalmente nada na enxurrada de cartas que recebeu por causa disso). Além do mais, a interactividade não surgiu com a cultura digital. Temos exemplos de como “todas as promoções [comerciais ou outras relativas aos] serials antigos eram explicitamente interactivas” (37), e temos aqui reproduções de anúncios de 1914 apelando à participação; de como a presença de tiras como Mutt and Jeff, de B. Fisher, Gasoline Alley, de F. King, originalmente situada nas páginas desportivas, se tornava “integral para o sentido da tira e para [a sua] experiência de leitura” (42); ou de como as páginas das cartas às revistas se tornavam um espaço de “trabalho de edição colaborativo” (68).
Voltando à “autoria partilhada” citada atrás, o modo como os fãs discutem determinados acontecimentos em torno das “suas” personagens – e isto é aplicável quer a The Gumps como a Crepúsculo ou os concursos televisivos - emerge “não tanto porque [os fãs] pensam que as personagens são reais mas porque entendem que eles mesmos têm um papel a desempenhar em relação ao desenvolvimento das personagens” (58). À guisa de conclusão sobre esta faceta, escreve o autor: “a forma do comic book (…) inspira manifestamente não o isolamento, mas a colaboração, a comunidade e a comunicação” (104). Parte da expressividade desses gestos encontra-se em actividades muito expectáveis, como o coleccionismo (a que se dedica, como vimos, o 5º capítulo). “Na verdade, é a sua natureza efémera, a sua qualidade de produtos residuais dos mass media modernos e da cultura de consumo que constitui os prazeres perversos daqueles que os coleccionam, organizam e fetichizam” (151, e aqui regressamos a W. Benjamin). Esses “prazeres perversos”, porém, não se esgotam naqueles que gastam fortunas a comprar comic books em todas as suas edições com capas variadas, na expectativa de um lucro mais tarde nos mercados especializados, mas em matéria que se torna ponto de partida ou de exploração criativa de novos textos por certos autores, como os casos de Ben Katchor ou de Kim Deitch, sobretudo na sua opus magnum Boulevard of Broken Dreams, que é em si mesmo uma “máquina pensante” das projecções do século XX estudadas por Gardner. Quando o autor fala “das maneiras como as formas da cultura popular – apesar de serem designadas enquanto descartáveis, dissolvidas no momento mesmo do seu consumo – são assombradas por um excesso que não pode ser nem ocultado nem aproveitado [buried or co-opted]” (160), torna-se muito difícil não encontrar nesse excesso a sua natureza mais perene e, ao mesmo tempo, aquele conceito vivo e produtivo do “estado de animação” (animatedness) proposto por Sianne Ngai e estudado por Bukatman.
Uma das consequências de maior impacto deste grau de interactividade potencial da banda desenhada ganha contornos especialmente marcantes com o advento da autobiografia neste meio, a partir dos anos 1970. O capítulo que é dedicado a este sub-campo da banda desenhada (mais do que um “género”, pois ultrapassa-o, complica-o ou faz gerir múltiplos géneros para vários fins) é extremamente producente. Faz sentido que a autobiografia seja pensada de uma forma relativamente apartada, num livro sobre o caminho da banda desenhada pelo século XX, já que as “memórias gráficas” – no seguimento de investigadoras como Gillian Whitlock, Hillary Chute, etc – provocam uma “reivindicação simultânea da autobiografia e da ficção, e uma exigência simultânea ao leitor por distância e identificação”. Apesar de nos parecer que, mais uma vez, “identificação” seja aqui utilizado de uma forma fraca – temos sempre em mente a lição de Jan Baetens na separação do seu sentido psicológico e o seu sentido semiótico, importantíssimo – esta realidade parece-nos ser muito acertada.
Pensamos que a sua discussão pormenorizada tem de ser deixada para uma outra ocasião, possivelmente associada a investigações particulares. Bastar-nos-á dizer por agora que se trata de um soberbo contributo à investigação deste sub-campo. Uma das lições fulcrais é, na óptica dos estudos de memória, de trauma, da autobiografia, da psicanálise enquanto aplicada às artes, a maneira como a mescla entre a narrativa do passado e do presente, complicada na banda desenhada – pelas suas várias camadas textuais, a realidade visual que pode ganhar várias estratégias, etc. -, não é “uma falha de uma externalização correcta ou uma ‘perlaboração’ do passado, mas é de facto o fito desejado (o único desejável) na mistura de facto e ficção, imagem, e texto, uma mistura [de afectos, acrescentamos nós] que permite ao passado ser produtivamente contínuo com o passado” (139). Uma imagem-chave para essa relação é esta imagem de Phoebe Gloeckner, em que a autora se representa duplamente: no seu tempo presente, beijando de uma forma estranha e paradoxalmente protectora e sedutora a sua versão mais jovem, alvo das reminiscência do livro (A Child’s Life).
Projections é um livro cujas associações são bastante alargadas. Um dos temas também presentes e muito produtivos, parece-nos, é o da noção do arquivo, que se associa, como é de ver, à memória pessoal da fruição deste campo popular, do cruzamento de leituras do coleccionismo particular que possa emergir, mas também em relação aos textos disponíveis. Apesar de vivermos num momento em que temos um grande acesso a edições novas e “arquivísticas” de toda uma série de autores e obras antigas, ou a disponibilização através de DVDs ou até da internet de muitas jóias da arqueologia do cinema, Gardner tem o cuidado de não só procurar referências precisas que muitas vezes escapam a esses outros filtros – é preciso não esquecer que são sempre filtros, logo não-exaustivos – como de providenciar close readings e associações cuidadosamente elaboradas, de forma a que surjam conclusões o mais pertinentes e produtivas possíveis. No que diz respeito ao cinema, por exemplo, a discutida convergência não se reduzia somente às adaptações, claro está (como este Dream of the Rarebit Fiend, de Edwin Stanton Porter, de 1906 e dos estúdios Edison), mas a relações mais estruturais e de tomar o pulso à modernidade (de novo, são possíveis leituras conjuntas com Bukatman).
A banda desenhada é, para Gardner, e em muitas ocasiões ele vê esta realidade desperdiçada mesmo no seio dos estudos que lhe são dedicados, “no fundo, uma forma bifocal, que exige uma visão dupla da parte do leitor e do criador ao mesmo tempo” (177) e que “é definida menos pelas suas propriedades formais – balões de fala, espaços intervinhetais, e até imagens sequenciais – do que pelo seu convite à leitora para se projectar a si mesma na narrativa e projectar a narrativa para além da página” (193).
Como é quase habitual em relação a volumes académicos, elaboramos uma breve entrevista por email com o autor, que deixamos acessível aqui.
Nota: agradecimentos ao autor, pela simpatia e disponibilidade, e à editora, pela oferta do livro. Imagens da web, excepto relativa a Gloeckner, (mal) fotografada do livro.
17 de setembro de 2012
Projections. Jared Gardner (Stanford University Press)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:36 da manhã
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