Esta saga aventureira mistura conteúdos e estratégias narrativas oriundas de vários géneros distintos, cuja mistura torna King City numa experiência estimulante – isto é, ao passarmos pelas suas acções, é curioso entender, numa leitura segunda, analítica, o que é que emerge do policial, da ficção científica, o que é que deriva da high fantasy até… Isto não é inédito, é certo, é antes o modo dessa mistura que se vai descobrindo. De certa forma, King City é uma espécie de Blade Runner ou Total Recall passado pelo filtro do “cute”. Passa-se num hipotético futuro, possivelmente muito adiantado, mas a um ponto em que alguma da tecnologia parece pura e simplesmente já não existir, ter regredido ou avançado de tal forma surpreendentemente que não se distingue da magia, como queria Arthur C. Clarke. O próprio Brandon Graham confessa que, mais do que pretender imaginar que tipo de tecnologia irá existir no futuro, uma vez que essas tentativas de imaginação se tornam rapidamente datáveis e obsoletas (basta ler ficção científica de décadas atrás; Katsuhiro Otomo disse numa entrevista que nunca lhe passaria pela cabeça, quando criou Akira, que surgiriam coisas como os telemóveis), fez um salto paradoxal para o futuro e para o passado. Seja como for, em alguns aspectos este mundo corresponde ao nosso: algumas das datas citadas de vez em quando, mas noutros momentos parece um planeta totalmente diferente.
A história segue o regresso de Joe à cidade que dá nome à série. Joe é uma espécie de espia para todo o serviço, um mercenário que se dedica a missões ora (aparentemente) simples ora mais complicadas, misturando desde o parkour a tecnologias mágicas. Joe é agora um “cat master”, ou seja, controla ou é coadjuvado por um gato, Earthling, que é capaz das mais mirabolantes capacidades, desde reproduzir uma chave através do regurgitamento ou transformar-se num periscópio (magia?, tecnologia?). Se os primeiros números são ocupados a montar o ambiente, perceber a rede de relações e apontar às coisas mal resolvidas desde que partira, sobretudo a história com a ex-namorada Anna, agora vivendo com uma espécie de Frankenstein – permitindo assim um adensamento para vir a ser desdobrado mais tarde, portanto chave de suspense -, a partir de um momento o âmago da aventura é lançado, e que envolve um terrível culto canibal e demoníaco. Ao mesmo tempo, uma trama secundária é desenvolvida em torno do seu amigo, Pete, e da paixão assolapada que sente por uma estranha alienígena (mas bela, segundos os mesmos padrões terráqueos, claro, e há ainda um expectável bordel intergaláctico para o comprovar), ao ponto de trair a missão para o qual foi contratado (outro cliché, bem visto, mas explorado correctamente). Graham emprega variadíssimas estratégias formais que são inerentes à banda desenhada, e que tanto revelam da tradição norte-americana dos comic books como da banda desenhada europeia, como da mangá, procurando ritmos diversos nas acções, muitas vezes optando por vinhetas que as interrompem para revelar um pormenor, ou distribuindo as personagens num panorama em vários momentos, criando protocolos de leitura ligeiramente desfasados, aprofundando a velocidade da leitura em momentos decisivos e diminuindo-a nas transições de cenas, etc. Muitos dos pormenores que adensam as paisagens obrigam a um desvelamento de objectos que adensam o ambiente, explicam uma acção, ou ajudam a compreensão de uma situação qualquer, precisamente os fitos do dito “technobabble”. E muitas vinhetas mostram planos de pormenor ou esquemáticos, revelando o funcionamento de uma máquina ou dispositivo, explicando uma técnica ou um objecto, de novo associando-se a muitas das estratégias para-narrativas da mangá. Sem nunca esquecer os trocadilhos linguísticos tornados palpáveis pelas imagens (“Cat-cienda”, “Cervix Entrance”, etc.).
Outra das estratégias narrativas (que Graham explora igualmente noutros seus trabalhos) são as inúmeras referências a aventuras passadas que expandem o enquadramento ficcional deste mundo (algo que é cumprido por muitos outros gestos autorais, senão todos, de modos sempre diversos, mas que ganham aqui um peso substancial no imaginário).
Graham faz parte, tal como outros autores já citados a propósito de Adventure Time, de uma geração que está muito confortável em navegar para trás e para diante entre territórios distintos, onde um sem tergiversações se apelidará de mainstream e outros mais autorais, alternativos. Ou melhor, territórios em que elementos de ambos os campos (nunca dicotomias absolutas e claras, mas antes localizações tensas num contínuo) estão presentes num equilíbrio descomplexado, e que tem encontrado em algumas editoras o local ideal para a sua exploração, como a Image, a Oni, a Vertical, a Boom! Studios, etc. bastará ver o percurso do autor e da série, que passou pela Alternative, pela Oni, pela Tokyopop e agora se encontra na Image, para compreender essas travessias e misturas.
Aliás, a Image, com títulos tais como Saga ou The Bulletproof Coffin, têm contribuído para essa tendência. É como se se tratasse de um regresso às suas origens enquanto gesto de autonomia económica, que foi precisamente o que levou vários artistas da Marvel a fundar a Image, mas onde uma nova geração fosse mais criativa, original e com um sentido de pundonor nas suas criações, em vez de tombar em narrativas genéricas e pouco inteligentes, onde a imagem (claro!) tinha mais importância – mas uma imagem desligada de um dinamismo mais apropriado à banda desenhada, e antes próximo ao iconicismo estático da ilustração, do pin-up, da commission. Se se seguir Prophet, que discutimos adiante, também escrito por Graham, vemos uma explicitação muito clara de como esta nova geração emprega os materiais deixados pelos fundadores da Image, e se tornam “seus” e “mais pessoais”.
Em Portugal, parece-nos ser Rudolfo da Silva e ca. aqueles que melhor representam esta tendência, se bem que não tenham à sua disposição a máquina editorial que lhes permitiria expor e circular melhor os seus trabalhos. Aquelas expansões narrativas que são prometidas no próprio veio principal da história encontram outros desenvolvimentos. Por exemplo, alguns autores que colaboram com Graham neste mesmo título, ou que o fizeram durante o comic book (em capas, ou pequenas histórias), ajuda também a estender o mythos de King City, dos cat masters, ou a suas implicações junto aos fãs. Ora mostrando outros agentes parecidos com Joe, ora fazendo imaginar que papel eles teriam no nosso mundo real, etc. E, para mais, esses colaboradores também se juntam a esse núcleo alargado que indicámos brevemente, como James Stokoe, Thomas Herpich (de Cusp e Gongwanadon), e a sua namorada Marian Churchland (tanto autora de histórias curtas ou capas para coisas como Elephantmen, Madame Xanadu como do meritório e mais pessoal Beast).
Em termos de imaginário, vemos aqui uma tendência que é algo nostálgica de um certo modo de fazer ficção científica em banda desenhada nos Estados Unidos, como na Europa ou no Japão, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980. Mas utilizando essa atitude retro para relançar pistas para uma banda desenhada contemporânea, descontraída, despretensiosa e até com um genuíno prazer em existir. Mais próximo a um livro recente entre nós, é uma tendência que também sentimos presidir a Asteroid Fighters, de Rui Lacas, se bem que neste caso sem o mesmo tipo de desenvoltura. Até mesmo as histórias “laterais” na versão do comic book, que mostravam o próprio Brandon Graham como protagonista, lança eventuais jogos de referências privadas análogas às que se verificam em AF, reforçando essa analogia ou comparação.
Muitos dos aspectos figurativos e estilísticos de Graham recordam autores como Taiyo Matsumoto, Jamie Hewlett, Jim Mahfood ou Paul Pope, com os quais as afinidades são evidentes. Se bem que seja verdade que as “fontes” explícitas pelo autor apontem antes a Moebius e Otomo (ou outras referências europeias e japonesas que vão surgindo ao longo das páginas), há com esses outros autores, sobretudo norte-americanos - e pensamos em Mahfood em particular - a mesma partilha de estratégias visuais e escolhas temáticas. O mesmo tipo de cool, por exemplo, e o foco particular numa certa forma de estar urbana, atenta quer a modas de vestuário quer a culturas musicais (tantas vezes umas intimamente relacionadas com as outras). Daí a presença de elementos culturais como o graffiti, o skate, gangues, zombies, aliens, máscaras de luchador, os ninjas, as “japonesices”, e, outro elemento que não poderia faltar, esse novo tipo de femme fatale das gerações mais contemporâneas, que em vez de se vestirem de noir escolhem antes a American Apparel e são mais Bond girls que Bacall. Mas também o repetente tema lovecraftiano dos Deuses Anciãos e do Cthulhu, aqui tratado com alguma frescura. Regressando a Mahfood, estas personagens têm igualmente contornos arredondados, num encontro feliz entre o mais clássico bigfoot e um estilo cartoonesco infantil, mas sem esquecer o cada vez mais presente “mangá internacional” e uma forma romantizada de entender a banda desenhada europeia (com Moebius sempre à frente, e outras referências do “Euro sci-fi”). Aliás, King City, em muitos aspectos, parece ser uma versão ocidental daquela estrutura genérica usualmente à shonen mangá a que se dá o nome de nekketsu, do qual Naruto é possivelmente o exemplo mais actual. Todos os elementos que o compõem são mais ou menos identificáveis neste título (apesar de alguns contornos mais adultos).
Apesar de termos falado de uma missão central, é curioso notar como a personagem acaba por rondar o evento principal, e com ele, os leitores. Essa acção continua a desenrolar-se, mas nós estaremos mais próximos do que Joe tem para fazer. Isso não pode deixar de ser entendido como uma pequena subversão da economia usual deste tipo de aventuras, que não a nega totalmente, mas procura seguir um caminho ligeiramente diferente. Tudo isso contribui para o prazer inegável na leitura deste livro.
Como é de esperar, parte do charme destas aventuras de Joe está no facto das suas missões, quer as menores e secundárias quer a principal, o obrigar a tornar-se um flanêur na sua cidade. Esses percursos jamais são feitos ao acaso; bem pelo contrário, são decididos e claros quanto aos seus objectivos, mas ajudam ao leitor fazer a sua própria descoberta, cada vez mais expandida, da cidade. King City faz parte de uma série de bandas desenhadas cuja relação com o espaço é não apenas circunstancial, para ancorar a acção, mas intricadamente construída, em que o ambiente urbano é parte desde logo do espírito da narrativa (como, por exemplo, Mister X de Dean Motter et al., mas também as cidades da Garagem hermética ou do Incal). E estes elementos (todos, aliás, que temos vindo a citar) fazem parte também da curta graphic novel que Graham criou a meio desta série, Multiple Warheads. Na verdade Graham havia interrompido King City por razões pessoais/médicas, e este outro título, apesar ser relativamente mais simples, e leve, uma comédia de acção e ficção científica, parece ser também um exercício quer de retoma do fôlego quer muito revelador de uma vontade em regressar a estratégias narrativas e comerciais hoje em dia algo esquecidas no panorama norte-americano, mas que sempre foi perene na Europa: o álbum independente numa série coordenada. Aliás, na mais do que expectável necessidade em variar a oferta comercial, muitos editores procuram soluções que escapam do formato “comic book mensal com série regular”, para experimentar fórmulas já antes existentes, desde estas séries que encerram capítulos independentes, até revistas que contêm várias histórias ou capítulos curtos (como Creator Owned Heroes, que regressa aos primeiros comics nessa distribuição). Mais uma vez, esta é uma maneira de nos apercebermos que na leitura destas obras não basta o seu texto propriamente dito, sendo necessário tomar em conta o contexto social, histórico e económico, que pode ditar as suas próprias estruturas.
Há mesmo um momento em que, aumentando o grau de participação possível dos leitores no próprio texto, o autor oferece um mapa da cidade sob a forma de jogo de tabuleiro, onde devemos ajudar os protagonistas a chegar aos seus destinos. Num momento em que a interactividade prometida pelas plataformas digitais e da web são cada vez mais imersivas, estes regressos - que não deixam de ser nostálgicos - são de uma candura quase desarmante.
[Nota: imagens da web]
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