21 de novembro de 2012

Asteroid Fighthers 2 e Hän Solo. Rui Lacas (Asa/Polvo)

Não haverá dúvidas aos leitores destes livros, e da obra de Rui Lacas em geral, que este é um autor capaz de navegar as mais diversas águas dos géneros da banda desenhada, adaptando-se a eles e fazendo inflectir as suas ferramentas de construção narrativa, composição e ritmo, e até mesmo os instrumentos gráficos. Tal não significa, porém, que todas as suas conquistas sejam efectivas do mesmo modo. (Mais) 

No nosso panorama, não são muitos os autores que, singularmente, têm uma capacidade de produção aliada à possibilidade de edição, para mais em circuitos relativamente comerciais e de fácil acesso ao (seu) público. De modos diferentes e em vias distintas, a Asa com a sua máquina comercial consolidada e a Polvo com o seu firme catálogo de edição de autores portugueses são também veículos que permitem essa diferenciação de Lacas. Poderíamos dizer, possivelmente numa redução crua, que Asteroid Fighters (AF) é o seu título “mainstream”, e que Hän Solo (HS) é um projecto mais pessoal, expressivo.

Como já havíamos dito anteriormente, AF é de uma leveza que poderia ser contagiante, mas como veremos, o desdobramento dos conceitos apresentados neste segundo volume não é suficiente para o tornar um objecto mais sólido. Havíamos feito algumas comparações quando do primeiro volume, mas à luz de trabalhos internacionais mais recentes e citados por nós uma eventual referência seria King City, de Brandon Graham, enquanto ficção que mescla géneros distintos, também aqui presentes: a ficção científica (menos hard do que techno-babble), elementos de fantasia mágica, senão mesmo New Age, uma dicotomia muito clara entre o “bem” e o “mal”, o humor de personagens, aspectos cool, e uma aventura.

HS parece um regresso àquelas histórias mais pessoais, reflexos da vida contemporânea portuguesa, de que, no percurso de Lacas, A Filha do Caranguejo é ainda o seu maior eco.

Em AF temos a continuação da tremenda saga de ficção: desvenda-se o inimigo (Otipep), visita-se o passado de algumas personagens (sobretudo dos irmãos), para ao mesmo tempo desvendar o mais alargado enredo de rivalidades entre elas, explicam-se mais alguns aspectos da tecnologia ficcional e aumentam-se os envolvidos, e procura-se tornar a direcção dos futuros volumes para um maior empolgamento (mas, por isso mesmo, menor “resolução” interna no livro presente), não só em termos do número das personagens como da moralidade mais vincada de cada lado. Em HS cria-se uma pequena novela emocional, em que o protagonista procura uma resolução da sua vida amorosa, mas também profissional, com uma mudança de espaços, e é mais através do silêncio e de algumas acções que se compõem essa vida de papel, do que de uma exposição verborreica. Portanto, em termos de instrumentos, estamos em dois territórios bem distintos.

Não queremos, na discussão que se segue, dar a entender que não aceitaríamos as regras de indeterminação, vagueza, poeticidade ou irresolução a que todo e qualquer artista tem direito de explorar nas suas obras. Bastas vezes explorámos livros em que a narrativa é colocada em causa, minada por relações que não as de causalidade, ou até mesmo totalmente abolida, o que não significa necessariamente uma conquista de uma hierarquia de valor ou de exploração conseguida. Cada obra de arte, sendo-o, estabelece as suas próprias regras de construção e, consequentemente, de crítica: logo, elas devem ser lidas no seu próprio enquadramento e não numa aleatória comparação com outro modelo que não se coadune com a sua natureza. Dito isto, quer num caso quer no outro, Lacas parece ter instituído uma regra de construção, mormente das personagens, que depois não é levado a cabo completamente. Se bem que de formas diferentes, que decorrem dos próprios projectos, há uma sensação de que Lacas atalhou o desenvolvimento que as suas personagens pedem. Os propósitos de ambos os livros são muito distintos, claro. Afinal, Asteroid Fighters inscreve-se numa tradição de um humor de entretenimento leve, pejado de referências à cultura popular que servem de nós significativos, piscares de olho, intertextualidades que aumentam a potência desse humor (como já havíamos debatido em relação ao primeiro volume, a private joke de utilizar avatares dos seus colegas e companheiros de trabalho aumenta essa dimensão de uma forma especial, ainda que impenetrável para “quem está de fora”). Se algumas dessas referências também estão presentes aqui e ali em Hän Solo, elas servem mais para ancorar a realidade social da sua personagem, e o ambiente deste outro livro é mais realista, angustiada e intimista.

O problema, no primeiro caso, é que muitos dos pormenores que comporiam uma narrativa mais complexa - a infância conjunta dos irmãos gémeos Pepito e Otipep, as várias linhas narrativas protagonizadas pelos heróis titulares - é mais confusa do que bem gerida. Há uma tentativa em ter aqui várias camadas de tempo e espaços, uma “montagem” intercalada entre as acções, mas nem sempre isso cumpre transições claras e equilibradas, e outros episódios há em que nos lançamos em novas informações sem ter ainda a necessária desenvoltura para a sua coordenação. A introdução dos oráculos não parecia preparada, e traz uma nova dimensão à saga que se mantém, apesar de tudo, destacada, não-integrada.

Quanto a Hän Solo, aquilo que poderia ser pasto para um desenvolvimento das emoções a fogo lento, e por isso mais eficazes, são tratados de forma demasiado repentina (a informação extratextual de que este se trata de um livro que nasce dos despojos de um projecto maior, mas que mantém as linhas gerais originais, não altera essa leitura, nem poderia fazê-lo). Afinal, que emotividade existirá na relação amorosa entre Hän e Sandra, se apenas temos uma cena introdutória caseiro-burguesa, um novo encontro sem palavras que parece reduzido a imagens feitas de um casal e uma tórrida cena de sexo, para depois ser interrompida pelo brusco afastamento dela e um brutal entendimento do seu abandono? O que é ainda mais reforçado, de forma ainda mais brutal, pela sua total displicência face à também súbita decisão de Hän partir para Madrid, sem nunca se perceber bem o que afinal abandonara em Lisboa? A cena do Bairro Alto não é suficientemente estruturada e cheia para percebermos que rede é que o holandês havia estruturado em Lisboa (mesmo que o fim da história faça adivinhar que algumas ligações teria, para ter publicado a sua fotografia na capa do diário Público, ou de um diário que o mime ficcionalmente). No fundo, o tipo de exploração psicológica - que não precisaria de ser feito através de diálogos, mas pelo menos através de um mais aturado relacionamento entre as personagens - que este livro exige não é nunca cumprido. Faz-se até uma fuga em frente, literal pela ida para Madrid, mas também pelos sucessivos acontecimentos nessa cidade, que o lançam em desvios permanentes e sucessos (sobretudo “profissionais”) por acaso. A ligação às manifestações da população contra as medidas do Governo, a carga policial, e alguns comentários ao longo do livro, apontam a um suposto ensejo de haver uma associação aos temas mais correntes - e prementes! - do dia, mas nunca se demonstrando uma verdadeira e profunda tomada de posição política de Hän, e tampouco do autor. Aliás, a ligação repentina com um grupo de nerds e o modo como o trabalho fotográfico do protagonista é instrumentalizado leva à ideia de uma domesticação e subalternização desse mesmo assunto.

Em alguns outros domínios, este novo volume de Asteroid Figthers demonstra também alguma celeridade na sua produção, o que leva a páginas com composições confusas (como se houvesse uma procura, abusiva, pelo maior número de soluções de composição possível, num imenso contraste com o mais simples trabalho em HS, que é também, por isso, mais sereno e equilibrado), um trabalho de cor inferior ao que víramos no primeiro volume e mesmo algumas soluções de desenho um pouco empobrecidas, preferindo soluções convencionais, mas pouco convincentes, de acção e expressividade melodramática à la mangá mais comercial. Há mesmo casos de rostos desenhados que não seguem a consistência desejada. Se se pretende criar uma série com todos os contornos habituais deste universo mais convencional, seria importante manter a coerência interna e o brio criativo que sabemos ser possível.

Por outro lado, a flutuação interna em Hän Solo já é permitida, pela própria estrutura dos acontecimentos, isto é, a forma como eles são transformados simbolicamente na diegese. Veja-se esta dupla página: na da esquerda, o rosto de Solo é desenhado de forma quase esquemática, o que “rima” com o desenho imediatamente abaixo, sobreposto num mapa simplificado, como se procurasse aqui um rápido atalho infográfico da sua procura pelas ruas de Madrid de um poiso. Na página à direita, porém, na primeira vinheta, o mesmo Solo ostenta um rosto com um trabalho mais detalhado, e que se explicaria pelo encontro de uma possibilidade de pausa, descanso e reflexão, continuado nas vinhetas imediatamente seguintes sem texto. Esta flutuação dá-se em todo o livro, e apenas uma cuidada análise demonstraria se essa solução multímoda é ou não conducente a uma obra bem moldada. Este livro mostra, também, uma das forças - nem sempre constantes, como se depreende - de Lacas, que é a sua capacidade em fazer emergir representações de ambientes e personagens com um fundo emocional intenso, sem recurso às palavras. A sua leve ficcionalização de Lisboa (através da ligeira mudança de alguns nomes de locais e espaços) é muito estimulante em termos imaginativos, mas não é, por assim dizer, escavada (como o será, por hipótese, na obra de Victor Mesquita, na trilogia de Filipe Seems, de N. A. Silva e A. J. Gonçalves). Ainda assim, é isso o que torna este pequeno livro numa excelente adição ao seu catálogo de criações mais acabadas.
Nota final: agradecimentos a ambas as editoras, pelas ofertas dos respectivos livros.

2 comentários:

Ricardo Baptista disse...

Concordo mais com esta análise do Hän Solo do que a (mais generosa) da Sara Figueiredo Costa na revista Ler deste mês.

Pedro Moura disse...

Caro Ricardo Baptista,
Obrigado pelas suas palavras. No entanto, não penso que a Sara Figueiredo Costa seja "mais" generosa onde eu o serei "menos". Tratar-se-á de um foco diferente - inerente ao próprio trabalho da crítica - que teremos, sobre estes títulos em particular de um autor que ambos admiramos e gostamos de seguir. Aliás, deve ficar claro que a obra contínua de lacas não está de forma alguma em causa, sendo um autor cujas oportunidades de trabalho não são jamais desperdiçadas. Penso simplesmente que a falta generalizada de um trabalho de "edição", no que essa palavra verdadeiramente significa, de trabalhar o texto com o autor pela parte de outras pessoas, pauta muita da banda desenhada de maior circulação em Portugal. A alternativa segue os seus caminhos idiossincráticos, e que chegará sempre a um número mais reduzido de autores, mas aquela que teria potencialidades de ser um projecto mais abrangente em termos de público não é muitas vezes cultivada da melhor forma. Ainda penso que "AF" poderá vir a ser uma saga interessante no nosso panorama: um título divertido, leve, com todos os ingredientes no sítio certo. Esperemos que o 3º volume "feche" a história de uma maneira mais acabada. Quanto a "HS", é ainda um trabalho emotivamente importante, no trabalho de Lacas (é mais moldado que, por exemplo, "A Ermida"), e que deve ser lido e apreciado - criticamente - pelo maior número de leitores possíveis.
Obrigado,
Pedro Moura