23 de agosto de 2013

Boxers & Saints. Gene Luen Yang (First Second)

O novo projecto de Gene Luen Yang confirma o autor como alguém que pretende criar um excelente compromisso entre uma abordagem ficcional, legível, apropriada junto a um público mais jovem para as primeiras experiências das várias dimensões do mundo, e uma certa ambição quer em termos estruturais da banda desenhada narrativa quer em termos de temáticas. Oscilando entre o humor nerd (Prime Baby) e a aventura infanto-juvenil (as versões de Avatar: The Last Airbender), da navegação à vista entre vários géneros (TheEternal Smile) e à concentrada e complexa auto-ficção, construção de identidade e tratado sobre as relações raciais nos Estados Unidos (American Born Chinese), com Boxers & Saints Yang explora a um só tempo os territórios da ficção histórica e do realismo mágico. Se não estamos perante uma obra com os contornos de American Born Chinese, ainda assim este título irmanar-se-á com ele, na obra deste autor, do que os outros títulos.
Na verdade, este projecto deve ser entendido como um só, um texto uno, que se apresenta simultaneamente em dois livros, cada um dos quais contribuindo para uma narrativa maior completada pelo outro. Em termos diegéticos, são autónomos, não obstante os cruzamentos que se complementam, mas esse enquadramento mais alargado é-o em termos históricos e até, se quiserem, éticos. Ambos os livros têm a mesma contextualização, entre os anos 1880 e 1900 na China dos Qing, focando sobretudo aquilo que é conhecido como a “Rebelião dos Boxers”.  
“Boxers” é a forma como os ocidentais tratavam os membros da Sociedade dos Punhos Harmoniosos e Justiceiros, um movimento de párias das classes mais baixas que consideravam a crescente presença e influência dos ocidentais (sobretudo alemães, ingleses, franceses) na China como a raiz dos males sociais e económicos, e que se rebelaram contra o governo de Pequim e a intrusão desses estrangeiros, começando no norte da China e marchando paulatinamente até chegaram à capital. Apesar de uma avanço inesperado e de algumas vitórias assombrosas, acabariam por ser esmagados pelas forças unidas das potências ocidentais. Uma vez que estes rebeldes praticavam artes marciais e rituais físicos complexos (inclusive o mítico kung fu), mesclados com os sincretismos religiosos chineses, os ocidentais chamavam-lhes os boxeurs. Ora o volume “Boxers” conta a história do ponto de vista de um membro dessa sociedade, líder de um grupo e boxers, e “Saints” a partir das vivências de Vibiana, uma chinesa convertida ao cristianismo.
De certa forma, isto poderia recordar outras experiências, sendo talvez o díptico de Clint Eastwood Letters from Iwo Jima/Flags of Our Fathers o mais famoso. Mas se isto vem esclarecer na prática a lição de Chimamanda Adichie dos “perigos de uma história única”, ao mesmo tempo pode acarretar os seus problemas Esta estratégia e estrutura do autor em apresentar dois livros, em que cada um corresponderia à perspectiva e posição de um representante das duas facções opostas reifica precisamente essa ideia de total e incompatível dicotomia. Mesmo que o autor pretenda criar uma oposição entre duas “Chinas”, essa oposição surge como demasiado clara. Por um lado, aquela representada pelo jovem Little Bao, aparente fundador da Sociedade referida (é necessário indicar que estes eram agrupamentos sociais algo recorrentes desde a passagem do século XVIII), de visão tradicionalista, de uma nação autónoma, e pronta a responder violentamente às investidas das potências estrangeiras, por outro, a de Vibiana (antes conhecida como “Rapariga Quatro”, por ter sido a quarta filha a nascer, e sendo o som fonético de “quatro” próximo do de morte, vista como mau augúrio, crença presente na China, Japão e Coreia), nova cristã, com uma ideia de abertura a novos valores espirituais, morais e sociais (ou outro tipo de interdições, melhor dizendo), o “progresso” Mas a História, essa não se coaduna com este tipo de estruturas simplistas. Os tempos atribulados em termos económicos, sociais e políticos na China já se arrastavam há décadas, e é preciso ter em conta variadíssimos factores, desde a guerra civil chamada Rebelião de Taiping (com contornos religiosos) até às dificuldades do próprio programa de expansão colonial da China, que se expandia e tentava absorver populações tão distantes como os muçulmanos do Oeste e os tibetanos de Kokonor, os défices económicos provocados pelas investidas dos ocidentais (o ópio, introduzido pelos Portugueses no século XVII em terras chinesas, fazia no século XIX mossa maior com a intervenção dos britânicos, depois destes terem conquistado a Índia – a Guerra do Ópio durou três anos, mas exporia e agravaria uma rede de compadrios que atravessavam todos os níveis da sociedade, quase impossível de extirpar), já para não falar dos problemas internos desde más colheitas, populações dispersas e poderes centralizados mas altamente corruptos e divididos em interesses facciosos. A “entrada” dos poderes ocidentais, sobretudo anglo-americanos, e o envolvimento mais tarde de novas potências como a Rússia e o Japão (o qual se “ocidentalizara” com maior rapidez precisamente pela maior facilidade de gerir em termos de população e território), tornaria toda esta equação mais complexa ainda. Estas complexidades não têm espaço de desenvolvimento nos livros, uma vez que se opta por uma estrutura mais simples (inevitável?). Mas seja como for, Boxers & Saints decorre no interior da última década do século XIX, no auge de um período na história da China cujo capítulo em Le monde chinois, de Jacques Gernet, é titulado “O falhanço da modernização e o avanço da intrusão estrangeira”. As palavras escolhidas dão o mote.
Do ponto de vista ocidental, a história é mais ou menos contada nos seguintes termos: A China viveu milénios de isolamento, e os ocidentais vieram contribuir com um acordar em termos científicos e industriais, assim como com as noções de liberdade e progresso. Claro que esta narrativa faz suspender a importância fundamental que a China teve no desenvolvimento intelectual, cultural, científico e tecnológico daquela parte do mundo, que envolveria toda a Ásia, desde o extremo japonês aos impérios muçulmanos, e trata de um modo monolítico a história e cultura daquele país (ou melhor, como monolítica qualquer cultura de qualquer país, uma vez que basta pensar que os impérios português e britânico do início do século XIX eram bem distintos dos do seu final). No entanto, não pode deixar de haver uma sensação de que a(s) narrativa(s) de Yang se apresenta, ainda que alternativa, como um idêntico trabalho de simplificação. Existia uma China tradicional, simples e campesina, e dependendo da vida individual de cada pessoa, a chegada e confronto com os ocidentais – os padres missionários – isso seria visto como uma oportunidade de fugir uma certa opressão ou como dando corpo acabado a toda a espécie de ideia de corrupção e “doença social” de que a China sofria às mãos desses invasores. De facto, Rapariga-Quatro/Vibiana vive uma existência quase miserável e vê no Cristianismo, que compreende mal mas lhe é apresentado por um missionário francês, uma espécie de saída e transformação do seu mundo, ao passo que Bao, confrontado pela violência do mesmo missionário para com a sua cultura e crenças, concentra nele o centro nevrálgico da crise nacional que quer resolver.
Apesar da presença dos ocidentais nesta história, e o próprio Yang ser um cidadão americano de origem chinesa, podemos dizer que esta dilogia é “sinocentrista”, isolando os dois protagonistas no seu contexto cultural, no qual a presença dos ocidentais é sempre tratada de forma reduzida. No entanto, tendo em conta o número de narrativas populares em que o homem branco assume o papel do “salvador” ou “último” (ou “último salvador”) representante de sociedades vistas como “tradicionais” e “mais genuínas” precisamente a partir do ponto de vista da cultura do “homem branco” – pense-se em O último samurai, O último dos moicanos, Dança com lobos, Avatar, 47 Ronin, etc., etc. -, não nos parece que uma concentração numa perspectiva chinesa seja algo desequilibrada e escusada. Bem pelo contrário, ela é necessária.
O volume Boxers tem mais de 300 páginas, e o Saints quase 170 pranchas. Esse desequilíbrio pode dar a entender um tratamento drasticamente diferente entre uma perspectiva e outra, mas a verdade é que boxers, centrada numa personagem masculina, está imbuída de uma vertente muito mais dinâmica, com passagens entre vários espaços, talvez indicadora da maior liberdade de movimentos e escolhas que os homens tinham em relação às mulheres. Mas isso é apenas uma visão limitada da economia dos sexos, sendo antes muito equilibrada a posição de Yang, que mostra o papel que algumas mulheres tiveram no esforço militar da Rebelião, inclusive enquanto combatentes, como também mostra o papel dos homens “caseiros” em toda a economia da narrativa. Sendo as vidas de Vibiana e de Bao muito distintas, elas cruzam-se em momentos decisivos, como a infância (ambos testemunham o padre católico a esmagar a pequena estátua do deus da terra Tu Di Gong [ver imagens combinadas neste parágrafo]) e o derradeiro episódio em Pequim. Além disso, o autor tece alusões de paralelismo que tanto revelam dos modos como a identidade é construída como das pontes que seriam possíveis de sincretismo mesmo através da religião, houvesse ouvidos para a compreensão. Eis dois exemplos, que ilustramos em imagens neste artigo: quando atingem uma pequena cidade nos arredores de Pequim onde os cristãos se escondem, os boxers rodeiam a cidade, gritando “mata!”: ora, uma das imagens do volume Saints mostra-os como simples humanos, ao passo que a correspondente em Boxers revela os avatares dos deuses que eles pensam encarnar (ou encarnam mesmo) [ver imagem combinada acima]; o outro exemplo é uma composição gráfica que ilustra uma lenda sobre uma bodhisattva caridosa (em Boxers) idêntica à da lenda do Bom Samaritano, tal como contada pelo próprio Jesus (em Saints), como se pretendesse demonstrar um fundo de verdade igual entre as duas expressões religiosas diferentes [idem].
A violência agravada entre as duas partes não pode ser diminuída, em termos históricos. As missões católicas estavam nas mãos sobretudo de missionários franceses, e faziam parte do seu número padres intolerantes para com as tradições, crenças e rituais chineses, que desconheciam totalmente. Mas do ponto de vista chinês, a incompreensão não era menor.
Eis um exemplo, dado por Gernet. “Quanto as Irmãs de Caridade começaram a recompensar as pessoas que lhes trouxessem crianças órfãs, a população entendia isto como uma confirmação da crença tradicional de que os cristãos se entregavam a práticas mágicas usando os olhos e corações das crianças”. Os sucessivos mal-entendidos, os acordos totalmente desequilibrados e ruinosos que levavam a China a pagar oficialmente às potências estrangeiras indemnizações aos países cujos missionários ou cidadãos eram apanhados nas refregas, e as centenas de escaramuças violentas e represálias sangrentas dos poderes oficiais foi criando um clima cada vez mais impossível de resolver, e é ele que atravessa este livro, presente na forma como uma e outra parte falam da oposta, criando um retrato de matizes variados. Apenas a título de exemplo visual, mostramos uma imagem de propaganda anti-ocidental e anti-cristã do final do século XIX em que se traduz a expressão “ferir o porco” (Cristo) e “decapitar as ovelhas” (os cristãos); outra expressão típica, e que Yang integra repetidamente na diegese, é chamar os ocidentais de “demónios” os chineses cristãos de “demónios secundários”.

Tudo isto tem a ver com a dimensão genérica da ficção historiográfica. Já a do realismo mágico tem a ver com as “visões” dos protagonistas. No caso do Pequeno Bao, a sua assunção da filosofia e rituais do kung fu, aliados ao seu profundo arrebatamento pelas populares “óperas” fazem com que, quando ele sente o poder da justiça do seu país a tomarem conta da sua pessoa, ele seja fisicamente possuído pelo espírito de deuses ou personagens antigos (no caso de Bao, é o fundador-imperador da China, Chin Shih-huang), todos eles nas suas representações "operáticas". A todos os seus companheiros acontece o mesmo, e tudo nos leva a crer que algumas das outras pessoas “vêem” este fenómeno. Estra tradução das crenças dos boxers e dos factos das suas conquistas-relâmpagos em “factos visuais” confundem história e ficção, factos e fantasia, de uma forma que não torna a consideração da “verdade histórica” mais obscura, mas antes mais matizada de acordo com as vozes e, arriscamo-nos a dizer, a Weltanschauung de cada participante. No caso da jovem chinesa cristã, a dimensão mágica é mais limitada, ou pelo menos ela é-o limitada apenas a Vibiana: numa primeira fase ela
entra em contacto com um texugo ancestral que depois é substituído – de uma forma tão brutal como igualmente mágica – por Joana d’Arc, que passa a ser o motivo da protagonista. O desequilíbrio ente Boxer e Saints do “acesso” à dimensão mágica é corroborado por uma escolha cromática: no primeiro livro tudo é representado a cores (se bem que haja uma preferência por cores esbatidas e ocres na maioria do texto, e apontamentos de cores mais garridas em presenças-chave, a analisar cuidadosamente), e no segundo tudo está representado a cinzentos, sendo reservado o um amarelo “dourado” para toda a intervenção “divina”. Significará isto, por exemplo, “verdade” no primeiro caso e no segundo um sublime salvamento em relação à vida severa do real? Pensamos que este quadro de interpretação é possível, mas não único, seguramente.
Como dissemos ao início, apesar de todo este complexo tecido histórico como contexto e fundo das narrativas, e a escolha dos protagonistas para criar um espaço intervalar onde as tensões mútuas corroboram ou contrastam entre os volumes, para que resulte uma leitura matizada desse mesmo fundo, Gene Luen Yang fá-lo através de uma estrutura de grande legibilidade. De resto, confirmada pela dimensão visual, bastante clássica e convencional, não num sentido de detrimento, mas bem pelo contrário, como confirmação dessa superfície de veludo. Estamos seguros que as leituras deste livro levantaram complexas questões a explorar em toda uma série de quadros disciplinares, que libertarão a riqueza das interpretações possíveis.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

3 comentários:

viquetor disse...

Caro Pedro, como vai?
Meu nome é Victor, sou um dos editores da Revista Antílope, publicação independente daqui de São Paulo/Brasil, que une quadrinhos (de diversas espécies, estilos e formas) a textos teóricos (ensaios, artigos) SOBRE quadrinhos. Para esta nossa primeira edição, entrevistamos o argentino Kioskerman.

A Antílope surgiu porque aqui no Brasil ainda sentimos falta de uma crítica de quadrinhos (a vossa Banda Desenhada) que se faça de modo mais aprofundado – como você pratica no LerBD, que seguimos há muito.

Adoraria enviar a você um exemplar. Sendo nós uma revista de crítica, pode ficar estranho sermos criticados, mas alguém deve fazê-lo.

Se você tiver interesse, por gentileza entre em contato através do meu email: gasparicanela@gmail.com

Estamos ainda implementando o site oficial da Antílope, mas por ora você pode acessar nossa fanpage no facebook: www.facebook.com/AntilopePress

Um abraço e obrigado pela atenção!

Pedro Moura disse...

Oi, Victor,
Já respondi!
Obrigado!
Pedro M

SAM disse...

Interessante esta referência. Tenho uma certa impress~qoq ue vou dar uma olhada. Obrigado pela sugestão.