Façamos o seguinte exercício. Pensemos naquelas personagens de aspecto plástico máximo, filhas da transposição das técnicas de animação para o papel - Disney, Fleischer, entre outros. Foquemo-nos naquelas partes dos seus corpos que parecem ser modulares: os tubos dos membros, as azeitonas dos narizes, as ovais líquidas dos olhos, os pedúnculos - ora grossos ora meramente uma linha - que servem de orelhas, caudas, as formas cilíndricas ou arredondadas que servem de extremidades, as pequenas adições que passam por bigodes, pêlos, cabelos, rugas. Acrescentemos itens de roupa, chapéus, óculos, ou outros. Coloquem-se esses elementos numa tômbola, e produzam-se as mais diversas combinações, como se se tratasse de um jogo de espelhos moventes. Imaginemos ainda que todas essas combinações ganham a tridimensionalidade de bonecos (em PVC novo, brilhante, maleável) mas são submetidos a um mecanismo de aquecimento intenso, que os faz derreter e derreter as cores - até ali separadas por filamentos negros e densos - em manchas autónomas. Os tais filamentos erguem-se agora em estruturas esvaziadas, mas que também se torcem em torno dos seus próprios eixos, deslocados e impossíveis. A todos os momentos, não estamos seguros do que estamos a ver, mas há como que uma impressão de persistência retiniana e de memória cultural que nos faz, ao mesmo tempo, pensar que estamos a olhar para algo familiar. Existem momentos em que tudo isto se estilhaça ao seu mínimo contorno, contra uma negrura quase absoluta, outros em que tudo se remistura numa ofuscante paisagem de cores.
Tommi Musturi opera como uma espécie de xamã do grafismo, obrigando-nos a observar formas cambiantes que desligadas de qualquer propósito ou estruturação narrativa, nos faz ainda pensar estarmos a “ler” uma história comum, de que nos lembramos incompletamente. O que se passa em Beating é uma espécie de Unheimlich gráfico.
O livro, no que diz respeito a edição e design, comporta-se como toda uma série de livros afectos às áreas das artes contemporâneas, que tomam a ideia de arquivo não em termos de uma organização linear, explícita ou categorizável, mas antes de pilha que procure intensificar o conjunto. É Beating uma colectânea? Um catálogo? Um best of? Uma colecção? Um portfólio? Uma máquina de alucinação e de recrudescimento gráfico através da concatenação de trabalhos anteriores? É possível que haja uma organização cronológica de alguns trabalhos, começando nos mais recuados aos mais recentes, mas não há qualquer indicação certeira para que possamos saber. Um brevíssimo prefácio lança-nos as informações do que compõe o livro - posters, livros a solo, fanzines, colaborações, capas, objectos para exposições -, assim como nos indica locais, organizações, editoras, etc., mas não há forma de ligarmos ponto por ponto as imagens às circunstâncias. Temos de apelar ou para conhecimentos prévios - por exemplo, já havíamos falado de duas publicações antes, aqui retomadas integralmente, com pequenas diferenças de cor - para cartografar tudo. Mas talvez o desejo de Musturi seja precisamente fazer-nos abandonar nesta espécie de oceano sem fronteiras, onde as coisas se misturam, territorial, matérica, técnica e disciplinarmente. Não há que saber, há que nadar.
O autor demonstra através deste volume que oscila, apreciando-o, entre toda a espécie de formas de criação de imagens. Teremos aqui uma variedade assombrosa de materiais riscadores e suportes, e para além do desenho existe trabalho em serigrafia e manipulação digital; existe trabalho “límpido” e “sujo”; existem abordagens minimalistas no que diz respeito ao trabalho de linha e mancha de cor e outras mais próximas de explosões cromáticas psicadélicas, se não mesmo “ácidas”, como escreveu Marcos Farrajota. Em termos figurativos também encontraremos uma diversidade assinalável, desde criaturas o mais estilizadas possível, ora geométricas e “achatadas” a plasticamente maleáveis, a seres mais moldados em termos anatómicos e em texturas realistas (sem nunca chegar a ser “naturalista” propriamente dito). Existem galerias de retratos de personagens que nunca entrarão em história alguma, paisagens compósitas que não servirão nada a não ser a si mesmas, exercícios aparentemente sem nexo de riscos e travessias de linhas e formas desconexas, figuras isoladas e desenhos sobre figuras reais (uma pantera?). E apenas momentaneamente criará a ilusão de que estas imagens surgem por processos mecânicos ou mágicos. Pois a mão está lá. Desenho, desenho, desenho, como ondas sucessivas a bater contra as rochas dos olhos dos leitores. O acto de folhear o livro é a única tentativa de navegar, de cartografar, de controlar esta orgia gráfica.
Encontraremos aqui linhas arranhadas à la Gary Panter até às superfícies lisas de um Cadelo, aquela forma anímica das figuras pseudo-animadas à la Jim Woodring (que já João Ramalho Santos muito acertadamente convocara quando falou de Caminhando com Samuel) até à pura raiva expressiva tardo-adolescente de rabiscos nos cadernos de liceu, ao passo que em termos de imaginário não há nada que não possa ser encontrado, das hípérboles de acção à Frazetta às revistinhas baratas de banda desenhada coloridas dos anos 1970, da poster art do psicadelismo ao Onde está o Wally? Até existe um caso de uma imagem que nos faz recordar uma versão “horror” da famosa série de Ibáñez, 13 rue del percebe. Julgamos que em nenhum dos casos haverá necessariamente uma ligação directa, “fonte” ou “influência”, atenção. Simplesmente Musturi tem uma capacidade inata de ligar-se directamente à fonte comum, enérgica, abstracta, mística, de todas essas potencialidades, e daí captar estas diferenciações de resultados. Este livro não pode ser lido, nem visto, nem sequer degustado, mas sim aberto obsessiva e repetidamente, esperando que a aparente violência do embate com tantas imagens nos faça aproximar cada vez mais do coração profundo deste oceano.
Nota final: esta edição contou ainda com a co-produção da Bries e da portuguesa Mmmnnnrrrg, agradecendo a esta última o livro. Utilizámos as imagens disponibilizadas pelos editores.
17 de agosto de 2013
Beating. Tommi Musturi (Huuda Huuda/La Cinquième Couche)
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:12 da manhã
Etiquetas: Antologias, Finlândia, Territórios contíguos
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