Não nos queremos
alongar em demasia sobre este álbum, que se carrega com o peso doloroso de
tristeza e, admitamo-lo, alguma decepção. Preferimos manter o silêncio quando
tal acontece, mas Fred merece uma atenção sem limites, desgovernada, passional.
Afinal, este álbum é a pedra tumular, o selo, “la boucle” de uma das mais
feéricas e influentes séries da vida da banda desenhada [que caminho haveria para Mathieu, por exemplo?].
Marie-Ange Guillaume,
na sua nota de leitura que abre o livro, quer aproximar uma das invenções de
Fred, um barco que anda a rum, e agora a “locomotiva à pata”, com o poético
barco ébrio de Rimbaud. Todavia, estamos longe do rasgado e libérrimo aventurar
pelas paisagens inóspitas mas recompensadoras da imaginação selvagem, ou do
acto poético sem rede, já trilhados por Fred e as suas personagens. Estamos
longe desses caminhos trilhados. A invenção poética, figurativa, as loucuras de
composição, a lógica sublime e subtil da falta da lógica... parece ter
diminuído de ímpeto, de febril energia e de fulgurante presença até uma quase
imóvel sombra de si mesmo. Como se o acto criativo visse já a fímbria da sua
aniquilação e se aproximasse dela relutante e não heroicamente. Penetrar no
biografismo é um pecado crítico, mas a sua consideração, e até mesmo aquilo que
é matéria da obra de outros (veja-se Desoeuvré,
de Trondheim) cria o contexto pós-depressão que fez Fred regressar à sua série,
ao último livro cujas primeiras páginas já havia criado há muito, e que agora
resolveu terminar, mas criando no interior desta nova diegese uma espécie de
“buraco negro”, de “buraco de Einstein-Penrose” que faz levar o término das
viagens rocambolescas de Philémon à sua primeira aventura. Daí que a expressão
“la boucle est bouclé”, na continuidade do interesse pelo autor em expressões
feitas que se desmontam pela sua literalidade total, encontraria aqui uma
aplicabilidade absoluta.
Comovedor, é-o, de um
modo que Fred sabe como bem moldar. Mas onde antes sentíamos atravessar
paisagens cruéis mas ao mesmo tempo tocantes, profundas, e tão humanas que nos
torturava o seu grau de verdade, aqui temos antes uma melancolia de cansaço, de
admissão de falta de energia, de compreensão fatalista, e até mesmo de alguma
amargura. O objecto central de atenção, a locomotiva a patas, movida a fumos
subtis de imaginação, que mudam de cor conforme o ânimo, não é mais do que uma
triste e quase patética imagem do papel do autor, e muitas das frases ditas nos
diálogos entre o condutor da locomotiva e Philémon, e o seu companheiro Barthélémy,
e outros, são uma estratégia demasiado clara de tecer comentários com recados à
realidade externa do texto.
Recordemo-nos que a propósito da biografia do autor, faláramos da concepção tridimensional da banda
desenhada pela parte de Fred, particularmente dada a um consistente ainda que
mutante corpo na saga de Philémon. Já
nesse projecto editorial se davam sinais do então próximo livro da série, que
apenas se confirmaria como último quando foi lançado, e cuja irrevogabilidade
(verdadeira) seria selada com a morte de Fred. Não somos os únicos a dizê-lo, e
é difícil de não o dizer: este livro é o testamento de Fred. Por três ordens de
razão. A primeira é a mais superficial, porque pela força das circunstâncias e
banal na sua existência na finíssima película de azeite sobre água de uma vida
que chegou ao fim. Último livro, última obra, últimas imagens e palavras,
imediatamente os abutres da interpretação lacram-nas sob o signo da morte,
procurando ver nas suas sombras o contorno da morte vindoura. A segunda deve-se
às frases que pontuam os diálogos das personagens e que, as mais das vezes,
parecem servir de fórmulas pensadas para o exterior, para o círculo da criação,
não apenas da banda desenhada, mas em relação a todo o acto criativo, artístico…
A terceira relaciona-se com o carácter circular do livro.
A Lokoapattes é um
veículo que se movimento apenas com o combustível da imaginação, e até mesmo
numa dimensão paralela, à parte, que tocarás nas raias daquele reino do informe
onde todas as histórias, ideias, conceitos, imaginações se formam, de onde
partem, para onde retornam e onde se misturarão, com menores ou maiores
elementos dispersos. Uma das formas dessa imaginação são as histórias contadas
e oferecidas. É preciso alimentá-la sem cessar, para que o movimento também não
cesse. Depois de vários processos tentativos, Philémon resolver (re)contar o
início da sua primeira aventura, Le
Naufragé du “A”. E assim termina a aventura do presente livro, obrigando os
leitores a regressar ao início, e seguir de novo esse percurso, dessa forma
garantindo a locomoção, a louco-moção, da Lokoapattes, isto é, o movimento das
mãos dos loucos leitores que desejam revisitar tudo, que recomecem tudo.
É um testamento, não é
uma história. O ritmo da história que ainda se poderia contar é estranho,
demora a… demarrer, não há outro
verbo. A narrativa está tão atolada quanto a própria Lokoapattes na lama
material, fora do túnel imaginário que a transportaria. Tal como Le corbeau a baskets, também este livro
é provavelmente o mais autobiográfico de Fred, um espelho quase directo, se
virmos para além dos elementos de ficção, ou se o entendermos à la clef. O próprio Philémon faz uma
associação – por afinidade biológica, no interior da diegese – entre a
Lokoapattes e o Manu-Manu, encerrando tudo nos textos fechados para sempre de
Fred.
2 de agosto de 2013
Philémon, Le train où vont les choses. Fred (Dargaud)
Publicada por Pedro Moura à(s) 8:16 da tarde
Etiquetas: França-Bélgica, Mainstream
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