Tendo em conta o modo
como esta jovem autora tinha apresentado uma fiada de feéricas histórias, de
narrativas enigmáticas, com uma abordagem colorida forte e aberta ao
não-naturalismo para melhor explorar temas surreais, não foi sem alguma
surpresa depararmo-nos com um seu projecto alongado e plenamente integrado em
géneros mais contidos.
É possível que Susceptible possa ser descrito como um
livro autobiográfico, mas sem querer assumir esse pacto de modo imediato ou
claro. Em vez de “Geneviève”, a personagem principal, a criança e depois
adolescente, é tratada por “Goglu”, mas deixa-se em aberto se seria a alcunha
ou diminutivo familiar, etc. Além do mais, se recorrermos a informações extratextuais,
poderíamos dizer que existem parecenças físicas entre a autora e a personagem
(mas também com todas as personagens femininas que a autora tem colocado nas
suas histórias curtas, e se olhássemos para o trabalho de Hellen Jo, veríamos
fortíssimas semelhanças entre as personagens de ambas as autoras, cujas
características parecem ser de facto partilhadas com os rostos das autoras
respectivas, mas não há nada de comum entre os rostos das autoras numa
comparação directa, o que nos deve alertar para os perigos destas “transposições”
estilísticas dos desenhos).
Não se tratará de
auto-ficção, tampouco, género para o qual seria necessária uma clara inscrição
da parte do autor. Se a autobiografia é já em si mesmo um género “híbrido”, “impuro”,
complexo, talvez possamos aqui compreender uma integração do livro menos no
género propriamente dito do que numa “dimensão” ou “modo autobiográfico”, como
o é compreendido por teóricos como Lawrence Buell ou Leigh Gilmore. Aliás, de
acordo com esta última, num seu estudo de casos-limite que coloca em causa uma
ideia agora ultrapassada de autobiografia (a história dos “grandes homens”,
representativos de todo o género
humano), e a complicada questão da relação entre esses textos e a verdade
jurídica, aprendemos as seguintes palavras, aplicáveis sem esforço neste
projecto de Castrée: “No encontro imaginário com tais juízos [de verdade, de
importância histórica, etc.], muitos escritores procuram outras bases que não
as do testemunho explícito para a auto-representação. Ao desviarem-se do centro
da autobiografia na direcção dos seus limites externos, transformam delimitações
em oportunidades”.
Um dos pontos a
desfavor dessas inscrições é que, estruturalmente, no que diz respeito à narrativa,
não estamos perante uma linha contínua e ininterrupta. Bem pelo contrário, a
autora opta por apresentar sucessivos capítulos ou episódios, a maioria deles
com títulos próprios (“fogo em casa 1”, “nós aguentamos”, “adeus”, etc.),
alguns dos quais esgotando-se numa página, outros expandindo-se por uma
mão-cheia delas, e sem que existam elos de ligação causal ou declarados entre
as partes. Quer dizer, caberá ao leitor, por uma razão lógica de cronologia e
de associação às personagens centrais a assunção de que se trata de “uma mesma
história”, e não apenas de anedotas desconexas, contribuindo cada uma delas
para a imagem em progressiva construção
– como é próprio de uma narrativa de vida – de Goglu. Já no que diz respeito à
linguagem ou estruturas mais tipificadas da banda desenhada, notamos como a
autora tenta cumprir os arranjos mais clássicos de vinhetas regulares, ou
oscila entre várias estratégias, mas o seu maior conforto está em desenhar as
personagens em espaços “soltos”, sem delimitações, e deixando-as flutuar na
mancha de composição (um pouco à Chester Brown, mas sem as molduras). Com excepção
da capa, todos os desenhos são a preto-e-branco, com linhas suaves e aguadas,
como se a rememoração (adivinhada, projectada) obrigasse a essa ilusão,
abandonando a mais costumeira abordagem multicolor e vívida da autora. A
sequência inicial, que vai desdobrando uma muito curiosa, exacta e belíssima
metáfora visual – a da relação entre as qualidades inatas e as adquiridas do
seu humano mostrando a relação física entre o corpo da menina e umas plantas
crescendo e enleando-se no seu corpo – é talvez a parte mais próxima de
trabalhos que conhecíamos anteriormente (espalhados em títulos tais como Drawn & Quarterly Showcase, Kramer’s Ergot, The Drama, etc.).
Filha de uma mãe québecoise (de quem herda o – um dos – sotaque
“alveolar” do francês canadiano, como se pode comprovar ao escutar os seus
projectos musicais em nome próprio ou sob outras designações, Woelv, Ô Paon – mais:
poderíamos arriscar-nos a querer ler a sua caligrafia, de letras enroladas
sobre si mesmas como fios de telefones antigos ou gavinhas, sem interrupções,
como “traduzindo” essa musicalidade?) e de um pai anglófono da Columbia
Britânica, e com uma família alargadíssima brevemente mencionada, o
enquadramento familiar expande desde logo uma ideia do Canadá cosmopolita e
urbano que poderá ser criado pelas leituras de outros autores de banda
desenhada mais famosos (Chester Brown, Seth, Julie Doucet, ou mesmo o imigrante
Joe Matt). Adiante, falaremos de uma das dimensões como isso impacta o tecido
social do livro.
Sendo as relações
imediatas e influentes sobre a jovem Goglu o mais importante, em alguns
aspectos os episódios revisitados recordarão um tom geral idêntico ao de Phoebe
Gloeckner, mas sem que haja a presença de episódios brutais, traumáticos ou de
miséria dessa outra autora. Sem querer impor hierarquias nas experiências de
vida, claro, e não negando os aspectos de pobreza que são mostrados em Susceptible, estamos ainda assim num
contexto relativamente “seguro”. Se bem que o consumo de drogas “leves” e os
vários parceiros amorosos da mãe, as festas a que leva a filha, e depois mais
tarde alguns dos abusos verbais e emocionais quer da parte da mãe quer da parte
do namorado, sejam tudo factores possivelmente escusados mas a que Goglu é
exposta, e o próprio comportamento de Goglu na adolescência siga um caminho expectável
de risco (bebedeiras, drogas, etc.), ponham em causa essa consideração de “segurança”…
Enfim, são pequenos traumas, pressões que moem, mas não necessariamente
catastróficas, e são eles os limites éticos que são colocados no centro da
narrativa. E na verdade, são as relações pessoais, sobretudo com a mãe e o
namorado desta (os nomes parecem ser retirados de uma obra alegórica: Amer e
Amère). Mesmo a forma como se abordam os dois momentos maiores de crises emocionais,
físicos e psicológicos – um aborto e uma tentativa de suicídio – eles acabam
por não ganhar uma dimensão esmagadora, mas antes integram-se nesta narrativa
de vida como mais uma experiência que serviria para a consolidação da
personalidade independente da protagonista e mais uma peça para a sua partida
do lar materno. Ou seja, na economia da narrativa elas não assumem um papel
preponderante em relação a outros, não se procuram nenhum melodrama (o que não
implica ter consequências a nível de representação política, sexual, etc.). Se
lêssemos estas informações de uma forma exclusiva e redutoramente biografista,
poderíamos reler algumas histórias anteriores de Castrée, que parecem rondar o
tema da sexualidade e maternidade, à luz desta informações, mas há riscos nessa
tomada de posição.
Apesar de toda relação
ao enquadramento nacional, a paisagem do livro de Castrée é a uma escala
intimamente humana. Quase todos os enquadramentos das imagens têm sempre a
figura humana no seu centro, a corpo inteiro ou em variações de planos
americanos (nesse aspecto Castrée revela uma forte influência de Julie Doucet,
se bem que sem o atravancamento gráfico dessa outra artista), e é muito raro
que existam momentos de contemplação das paisagens naturais ou urbanas, apesar
da importância que os vários espaços, as suas travessias, as mudanças, implicam
na narrativa. A própria nota de apresentação do livro fala de “uma exploração trans-canadiana
da identidade”, mas essa dimensão não ocupa um lugar de destaque explícito. Uma mudança para um subúrbio,
por exemplo, levanta de imediato questões sociais: a imigração, a
gentrificação, o racismo, etc., mas apenas testemunhamos a pequena Goglu a
desempacotar os seus livros e brinquedos. Tendo em conta a expansão do país, as
políticas intricadas de espaço, solo, etnias, idiomas, separatismos, e cujas
feridas da história ainda não estão totalmente saradas, não nos deve
surpreender que essas questões de memória cultural colectiva estejam “ausentes”
em Susceptible, pois não estão
(sobretudo sob a forma de livros, revistas e filmes que agora pertencerão a um
conjunto nostálgico de referências), mas devemos antes estar atentos em como
elas se expressam através da escala familiar ou das experiências pessoais de
Goglu (para uma experiência paisagisticamente oposta, veja-se o filme One Week, de Michael McGowan).
O livro é uma
experiência tranquila – ou talvez de uma tensão contínua que não chega a
explodir, pois não precisa de explodir para semear a sua intensidade. É também
uma tradução exacta de alguns dos sentimentos ao se crescer em oposição às
ideias que os pais nutrem em relação aos seus filhos, sobretudo quando essas
ideias são cozidas na ignorância e no egoísmo, na surdez e indiferença para com
as personalidades dos filhos. Não se tratando de um trabalho de testemunho
jurídico, não precisamos “do outro lado”. Deve-nos satisfazer esta construção
narrativa da pessoa (verdadeira ou ficcional, ou mesclada). Com efeito, independentemente
da inscrição de género de Susceptible
(na autobiografia, auto-ficção ou ficção total, etc.), não pode haver dúvida de
que estamos perante um importante exercício de construção de identidade (que
incorpora necessariamente o próprio acto, ou pelo menos a promessa, de criação textual
que lemos), recordando-nos uma frase de Michel Foucault, que tanto alertou para
a necessidade do desaparecimento do autor para que pudéssemos, enquanto
leitores, enfrentarmos os textos de modo directo e sem grilhões preconcebidos. Diz o filósofo que “on écrit pour être autre que ce qu’on est”.
Sem comentários:
Enviar um comentário