15 de agosto de 2013

Susceptible. Geneviève Castrée (Drawn & Quarterly)

Tendo em conta o modo como esta jovem autora tinha apresentado uma fiada de feéricas histórias, de narrativas enigmáticas, com uma abordagem colorida forte e aberta ao não-naturalismo para melhor explorar temas surreais, não foi sem alguma surpresa depararmo-nos com um seu projecto alongado e plenamente integrado em géneros mais contidos.
É possível que Susceptible possa ser descrito como um livro autobiográfico, mas sem querer assumir esse pacto de modo imediato ou claro. Em vez de “Geneviève”, a personagem principal, a criança e depois adolescente, é tratada por “Goglu”, mas deixa-se em aberto se seria a alcunha ou diminutivo familiar, etc. Além do mais, se recorrermos a informações extratextuais, poderíamos dizer que existem parecenças físicas entre a autora e a personagem (mas também com todas as personagens femininas que a autora tem colocado nas suas histórias curtas, e se olhássemos para o trabalho de Hellen Jo, veríamos fortíssimas semelhanças entre as personagens de ambas as autoras, cujas características parecem ser de facto partilhadas com os rostos das autoras respectivas, mas não há nada de comum entre os rostos das autoras numa comparação directa, o que nos deve alertar para os perigos destas “transposições” estilísticas dos desenhos).
Não se tratará de auto-ficção, tampouco, género para o qual seria necessária uma clara inscrição da parte do autor. Se a autobiografia é já em si mesmo um género “híbrido”, “impuro”, complexo, talvez possamos aqui compreender uma integração do livro menos no género propriamente dito do que numa “dimensão” ou “modo autobiográfico”, como o é compreendido por teóricos como Lawrence Buell ou Leigh Gilmore. Aliás, de acordo com esta última, num seu estudo de casos-limite que coloca em causa uma ideia agora ultrapassada de autobiografia (a história dos “grandes homens”, representativos de todo o género humano), e a complicada questão da relação entre esses textos e a verdade jurídica, aprendemos as seguintes palavras, aplicáveis sem esforço neste projecto de Castrée: “No encontro imaginário com tais juízos [de verdade, de importância histórica, etc.], muitos escritores procuram outras bases que não as do testemunho explícito para a auto-representação. Ao desviarem-se do centro da autobiografia na direcção dos seus limites externos, transformam delimitações em oportunidades”.  
Um dos pontos a desfavor dessas inscrições é que, estruturalmente, no que diz respeito à narrativa, não estamos perante uma linha contínua e ininterrupta. Bem pelo contrário, a autora opta por apresentar sucessivos capítulos ou episódios, a maioria deles com títulos próprios (“fogo em casa 1”, “nós aguentamos”, “adeus”, etc.), alguns dos quais esgotando-se numa página, outros expandindo-se por uma mão-cheia delas, e sem que existam elos de ligação causal ou declarados entre as partes. Quer dizer, caberá ao leitor, por uma razão lógica de cronologia e de associação às personagens centrais a assunção de que se trata de “uma mesma história”, e não apenas de anedotas desconexas, contribuindo cada uma delas para a imagem em progressiva construção – como é próprio de uma narrativa de vida – de Goglu. Já no que diz respeito à linguagem ou estruturas mais tipificadas da banda desenhada, notamos como a autora tenta cumprir os arranjos mais clássicos de vinhetas regulares, ou oscila entre várias estratégias, mas o seu maior conforto está em desenhar as personagens em espaços “soltos”, sem delimitações, e deixando-as flutuar na mancha de composição (um pouco à Chester Brown, mas sem as molduras). Com excepção da capa, todos os desenhos são a preto-e-branco, com linhas suaves e aguadas, como se a rememoração (adivinhada, projectada) obrigasse a essa ilusão, abandonando a mais costumeira abordagem multicolor e vívida da autora. A sequência inicial, que vai desdobrando uma muito curiosa, exacta e belíssima metáfora visual – a da relação entre as qualidades inatas e as adquiridas do seu humano mostrando a relação física entre o corpo da menina e umas plantas crescendo e enleando-se no seu corpo – é talvez a parte mais próxima de trabalhos que conhecíamos anteriormente (espalhados em títulos tais como Drawn & Quarterly Showcase, Kramer’s Ergot, The Drama, etc.).
Filha de uma mãe québecoise (de quem herda o – um dos – sotaque “alveolar” do francês canadiano, como se pode comprovar ao escutar os seus projectos musicais em nome próprio ou sob outras designações, Woelv, Ô Paon – mais: poderíamos arriscar-nos a querer ler a sua caligrafia, de letras enroladas sobre si mesmas como fios de telefones antigos ou gavinhas, sem interrupções, como “traduzindo” essa musicalidade?) e de um pai anglófono da Columbia Britânica, e com uma família alargadíssima brevemente mencionada, o enquadramento familiar expande desde logo uma ideia do Canadá cosmopolita e urbano que poderá ser criado pelas leituras de outros autores de banda desenhada mais famosos (Chester Brown, Seth, Julie Doucet, ou mesmo o imigrante Joe Matt). Adiante, falaremos de uma das dimensões como isso impacta o tecido social do livro.
Sendo as relações imediatas e influentes sobre a jovem Goglu o mais importante, em alguns aspectos os episódios revisitados recordarão um tom geral idêntico ao de Phoebe Gloeckner, mas sem que haja a presença de episódios brutais, traumáticos ou de miséria dessa outra autora. Sem querer impor hierarquias nas experiências de vida, claro, e não negando os aspectos de pobreza que são mostrados em Susceptible, estamos ainda assim num contexto relativamente “seguro”. Se bem que o consumo de drogas “leves” e os vários parceiros amorosos da mãe, as festas a que leva a filha, e depois mais tarde alguns dos abusos verbais e emocionais quer da parte da mãe quer da parte do namorado, sejam tudo factores possivelmente escusados mas a que Goglu é exposta, e o próprio comportamento de Goglu na adolescência siga um caminho expectável de risco (bebedeiras, drogas, etc.), ponham em causa essa consideração de “segurança”… Enfim, são pequenos traumas, pressões que moem, mas não necessariamente catastróficas, e são eles os limites éticos que são colocados no centro da narrativa. E na verdade, são as relações pessoais, sobretudo com a mãe e o namorado desta (os nomes parecem ser retirados de uma obra alegórica: Amer e Amère). Mesmo a forma como se abordam os dois momentos maiores de crises emocionais, físicos e psicológicos – um aborto e uma tentativa de suicídio – eles acabam por não ganhar uma dimensão esmagadora, mas antes integram-se nesta narrativa de vida como mais uma experiência que serviria para a consolidação da personalidade independente da protagonista e mais uma peça para a sua partida do lar materno. Ou seja, na economia da narrativa elas não assumem um papel preponderante em relação a outros, não se procuram nenhum melodrama (o que não implica ter consequências a nível de representação política, sexual, etc.). Se lêssemos estas informações de uma forma exclusiva e redutoramente biografista, poderíamos reler algumas histórias anteriores de Castrée, que parecem rondar o tema da sexualidade e maternidade, à luz desta informações, mas há riscos nessa tomada de posição.
Apesar de toda relação ao enquadramento nacional, a paisagem do livro de Castrée é a uma escala intimamente humana. Quase todos os enquadramentos das imagens têm sempre a figura humana no seu centro, a corpo inteiro ou em variações de planos americanos (nesse aspecto Castrée revela uma forte influência de Julie Doucet, se bem que sem o atravancamento gráfico dessa outra artista), e é muito raro que existam momentos de contemplação das paisagens naturais ou urbanas, apesar da importância que os vários espaços, as suas travessias, as mudanças, implicam na narrativa. A própria nota de apresentação do livro fala de “uma exploração trans-canadiana da identidade”, mas essa dimensão não ocupa um lugar de destaque explícito. Uma mudança para um subúrbio, por exemplo, levanta de imediato questões sociais: a imigração, a gentrificação, o racismo, etc., mas apenas testemunhamos a pequena Goglu a desempacotar os seus livros e brinquedos. Tendo em conta a expansão do país, as políticas intricadas de espaço, solo, etnias, idiomas, separatismos, e cujas feridas da história ainda não estão totalmente saradas, não nos deve surpreender que essas questões de memória cultural colectiva estejam “ausentes” em Susceptible, pois não estão (sobretudo sob a forma de livros, revistas e filmes que agora pertencerão a um conjunto nostálgico de referências), mas devemos antes estar atentos em como elas se expressam através da escala familiar ou das experiências pessoais de Goglu (para uma experiência paisagisticamente oposta, veja-se o filme One Week, de Michael McGowan).
O livro é uma experiência tranquila – ou talvez de uma tensão contínua que não chega a explodir, pois não precisa de explodir para semear a sua intensidade. É também uma tradução exacta de alguns dos sentimentos ao se crescer em oposição às ideias que os pais nutrem em relação aos seus filhos, sobretudo quando essas ideias são cozidas na ignorância e no egoísmo, na surdez e indiferença para com as personalidades dos filhos. Não se tratando de um trabalho de testemunho jurídico, não precisamos “do outro lado”. Deve-nos satisfazer esta construção narrativa da pessoa (verdadeira ou ficcional, ou mesclada). Com efeito, independentemente da inscrição de género de Susceptible (na autobiografia, auto-ficção ou ficção total, etc.), não pode haver dúvida de que estamos perante um importante exercício de construção de identidade (que incorpora necessariamente o próprio acto, ou pelo menos a promessa, de criação textual que lemos), recordando-nos uma frase de Michel Foucault, que tanto alertou para a necessidade do desaparecimento do autor para que pudéssemos, enquanto leitores, enfrentarmos os textos de modo directo e sem grilhões preconcebidos. Diz o filósofo que “on écrit pour être autre que ce qu’on est”.

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