Uma
vez que a entrevista com Ian Hague ficou muito longa e, esperamos
nós, informativa, e termos de providenciar uma review
em inglês deste mesmo livro noutro lugar, remetemos a essas
extensões alguns dos outros aspectos em relação ao livro que as
origina. Comics and the Senses
é um livro, a um só tempo, empolgante, pertinente, corajoso mas
também intrigante, e até, talvez, excessivo. Não significa que
seja desnecessário, mas é um gesto que provocará algum
estranhamento e até controvérsia. (mais)
Se bem que a esmagadora maioria das descrições da banda desenhada se fique pela coordenação das imagens e dos textos (ou imagens enquanto texto, a textualidade da banda desenhada, etc., não se referindo somente à matéria verbal), enquanto arte material ela é, desde sempre, multimodal. Aliás, as questões da materialidade e da multimodalidade têm sido cada vez mais debatidas em toda uma série de formas artísticas (da literatura ao cinema), inclusive a banda desenhada. De uma forma sumária, podemos dizer que a multimodalidade da banda desenhada se apresenta de duas formas: a representacional e a material. Pela primeira referimos-nos a todas as formas como, através das suas especificidades formais, a banda desenhada consegue transmitir uma ideia de modos aos quais não tem acesso ou que não emprega ela mesma. Afinal, é através das imagens, icónicas e simbólicas, que se representam modos como o som, ou o movimento. Isso terá ainda associações a uma outra inflexão destas noções, que é o da multisensorialidade. Se nós nos apercebemos que um determinado objecto numa banda desenhada é pesado, perfumado, pungente, azedo, horrísono, etc., não é porque tenhamos acesso às (hipotéticas, ficcionais, imaginadas, representadas) sensações, mas porque as imagens, e por vezes alguns textos (o caso clássico das onomatopeias para os sons), representam essas sensações. Isto é aquela dimensão que o Ian Hague chama de “sinestesia, ou a estimulação de um sentido através de outro (o que pode ocorrer fisiológica, psicológica ou retoricamente)” (pg. 21).
Mas
por outro lado, para além dessa questão da representação, podemos
pensar nos vários modos como uma banda desenhada, enquanto existente
e objectual, joga com os nossos sentidos reais. Pensem nesta
situação: quantas vezes estamos a ler um livro, imaginemos com mais
de 100 páginas, e à medida que lemos e sentimos (usualmente) no
lado direito o número de páginas a diminuir, essa sensação
exacerba a excitação de chegarmos ao fim? Ou, para quem segue
edições que utilizam serigrafia, sente aumentado o prazer da
leitura por sentir os cheiros particulares dessa técnica numa nova
publicação? Ou gosta de ouvir o som grave de uma página que vira
pela primeiríssima vez num álbum recente, ou a espinha a
espreguiçar-se pela primeira vez? Ou, mais recentemente, sente a
importância histórica e a sua redenção ao ler alguns dos
clássicos da banda desenhada de imprensa norte-americana nas edições
desmesuradas da Sunday Press? Ou pelo contrário, sente alguma
segurança e descontração no manuseamento despreocupado de uma
revistinha barata? “A banda desenhada é polissémica não apenas
nos seus conteúdos visuais, mas em toda a sua fisicalidade”,
escreve Hague (22).
Um
outro aspecto importante, fulcral mesmo, é que este aspecto está
sempre presente. “A materialidade não se encontra numa posição
de 'ligada/desligada' na sua importância. Está sempre 'ligada',
apesar de alguns elementos puderem ser mais ou menos proeminentes
conforme a situação, tanto espacial como temporal”, afirma o
autor. Esses elementos a que se refere haviam sido discutidos por
Ernesto Priego: texto, espaço, habitat e interface físico (isto é,
o corpo humano), e são codeterminativos entre si (23). Nunca existe
um acto de leitura sem um desses elementos. Isto tem uma importância
em relação à discussão da “digitalização” da banda
desenhada – dos processos de criação, fabrico, transporte,
divulgação, e, claro está, o próprio acto de leitura. Em vez de
entendermos a leitura digital como necessariamente mais “pobre”,
temos é de analisar quais são as diferenças efectivas, antes de
entrarmos em juízos de valor generalistas. E é simplesmente errado
falar-se de “desmaterialização”. Nesse campo em particular, mas
sempre abrindo-o a outras ligações possíveis, Hague discute vários
títulos, como Robot 13 ou a versão digital de Scott
Pilgrim, ou o livro sensível ao calor Keep Our Secrets,
de Jordan Crane, e como eles abrem “um uso da tangibilidade que vai
além do visual. Por isso, ao passo que a tactilidade é um
elemento fundamental da leitura da banda desenhada, esta não é uma
razão para a tomarmos como um dado adquirido” (117).
Ora,
se a “leitura não é apenas um simples acto de recepção, [mas]
uma extensão do leitor num espaço metafísico; um processo
cognitivo através do qual o sentido é impresso em informação
sensória de acordo com os códigos através dos quais essa leitura
tem lugar” (28), o que importa é estudar as próprias condições
de possibilidade desse mesmo acto: metafísico, sim, mas
físico apesar de tudo. Isto vai permitir duas coisas a Hague
e a quem aprender algo com esta lição: em primeiro lugar, vai
permitir “negarmos a neutralidade da perspectiva ideal da relação
leitor-texto” (38), isto é, irmos além de uma ideia, algo ingénua
se fora de uma consciência crítica, de que todo e qualquer acto de
leitura de um determinado “mesmo” texto será idêntico de leitor
para leitor; em segundo lugar, traz de novo os “papéis
epistemológicos e afectivos na nossa compreensão do meio” (58),
complexificando o acto de leitura.
Este
mundo da relação entre a banda desenhada e as sensações reais vai
muito mais longe, e é precisamente isso o que Ian Hague investiga.
Desde experiências de banda desenhada comestível às várias
interacções entre esta arte e som real (dos audio
cartoons às versões “expandidas”
permitidas por plataformas digitais aos discos ou pautas integradas
nas histórias), passando pelas tarefas envolvidas na factura de um
livro que contribuem para os vários prazeres que a sua leitura
implica, são várias as dimensões que o investigador explora.
Abordando alguns elementos bastante familiares e comuns e outros mais
originais, o seu propósito central é colocar em crise – para
levar a uma discussão mais consolidada e profunda – a ideia da
banda desenhada ser “um meio puramente visual” e,
consequentemente, “acentuar como os elementos não-visuais são tão
fundamentais como activos na produção de sentido no seio deste
meio” (145). Com esse fito em mente, Comics
and the Senses é a um só tempo um
livro que opta pela simplicidade e por uma variegada abertura.
Simples
no sentido em que o autor estrutura o seu livro a partir dos cinco
sentidos “clássicos” (visão, audição, tacto, gosto e
olfacto), suspendendo outro tipo de abordagens mais sofisticadas e
complexas, mas também menos familiares junto ao grande público
(talvez a propriocepção, a perceção de temperatura, o equilíbrio,
a “certeza que vamos vomitar” ou a “vontade de fazer xixi”
possam, de uma forma ou outra, serem exemplos fáceis de entender que
possam levar a outras descrições). São esses sentidos que são
estudados, ainda que ele mencione outros (temperatura, por exemplo).
Mas abertura no sentido em que ele escava cada um deles com pormenor,
atenção para exemplos variados, e uma argumentação sólida sobre
cada passo.
O
estudo ou emprego da noção de “sensualidade” - num estrito
sentido de associação aos sentidos – em relação ao acto da
leitura não é de forma alguma novo, e já foi estudado, sobretudo
no que diz respeito à literatura, de formas bem diversas. Pense-se,
ainda que não se trate de um estudo, na maravilhosa abertura de Se
numa noite de Inverno um viajante de
Calvino, em que todo o corpo e disposição física, emocional e
mental do leitor é abordada “antes” da narrativa começar
(escrevemo-lo entre aspas pois é uma ilusão). No que diz respeito à
banda desenhada, entre vários nomes percursores desse tema (mas que
jamais estudaram a fundo), um passo decisivo neste campo é o artigo
de Pascal Lefèvre, “Como recuperar a sensualidade na análise
teórica da banda desenhada”, cuja versão original data de 1994, e
seria publicado em português em 2000, na Quadrado
(vol. 3, no. 2). E a especificidade dos sentidos foi também alvo de
um longo estudo, em italiano, por Marco Pellitteri, com Sense
of Comics. La grafica dei cinque sensi nel fumetto (Castelvecchi:
1998), que depois daria origem a uma série de artigos e
desenvolvimentos em várias línguas. Curiosamente, e apesar de
podermos dizer que o livro de Pellitteri se confina sobretudo à
discussão dos sentidos enquanto representados,
e não lida com a corporalidade, a materialidade dos sentidos
directamente, como Ian Hague, este último não cita este estudo.
Veja-se a entrevista para um aspecto importante da necessidade de
abordar este assunto, sobretudo no que diz respeito a uma (ainda)
falta de diálogo internacional entre as teorias da banda desenhada
que vão sendo desenvolvidas.
Se
há alguns mais aspectos que se poderiam discutir mais criticamente
tem a ver com, por um lado, a por vezes falta de entendimento em que
medida é que estes aspectos estudados por Hague são diferentes
daqueles verificados noutros meios (por exemplo, questões de design
de livros em termos gerais), e a dificuldade que será criar
instrumentos críticos que sejam sempre empregues para tomar em conta
a experiência sensorial da banda desenhada. Isto é, duvidamos (nós
não o procuraremos integrar sistematicamente, a menos que seja
significativo de um modo especial) que a crítica da banda desenhada
passe a debater a temperatura, o som ou o cheiro dos livros, por
exemplo (mas esta forma de discutir é demasiado anedótica para ser
tomada a sério, no fundo). Por outro lado, existem dimensões que
talvez pudessem ir mais longe, como a questão da performatividade
dos mundos ficcionais da banda desenhada (que poderiam debater desde
as adaptações às brincadeiras de crianças com bonecos até mesmo
ao cosplay,
desde o mais inócuo – nas “convenções” - ao mais politizado
– as máscaras de V nas demonstrações), ou a “localização”
das sensações. Existirão seguramente diferenças fundamentais,
sensórias,
com um “mesmo livro”, entre um leitor britânico, alto e
espadaúdo, jovem e atraente, fleumático, inteligente, no clima
cinzento, e um outro português, baixinho e peludo, com problemas de
costas e de visão, e abafado pelo calor? Isso alterará a leitura de
seja que livro for, mas em que medida é que 1. aproxima ou afasta do
texto em si, 2. poderá ajudar à inflexão da consideração crítica
sobre esse mesmo texto? Na entrevista, abordam-se todas estas
perguntas, que se abrem a infinitas desdobragens de sexo e
sexualidade, idade e classe social, etnia e nível cultural, etc.
Seja
como for, Hague não
está argumentar que todos
os sentidos estejam a ser estimulados em toda
a sua potencialidade em todos
os exemplos. Nem todas as bandas desenhadas se podem comer! O autor não procura qualquer tipo de generalização
aplicada universalmente, nem procura criar noções aplicáveis de
uma forma essencial. Há uma selecção de instrumentos, exemplos e
facetas muito judiciosa, que não procura qualquer tipo de exaustão
(na entrevista, falamos de mais exemplos estudados por Hague assim
como das inevitáveis “ausências” que não são críticas, mas
podem servir para entabular um diálogo). O objectivo principal do
autor é por demais atingido, e é claro: “Ao passo que o modo
ocular-cêntrico dos estudos de banda desenhada implicam uma
interacção sem corpo [disembodied]
entre ideias, ideias transmitidas da banda desenhada para o leitor,
os vários aspectos das bandas desenhadas que aqui estudámos frisam
o facto de que a leitura da banda desenhada é na verdade uma
experiência
obviamente física que tem lugar em múltiplas modalidades sensórias
simultaneamente” (144).
Poderão
então encontrar a nossa conversa com Ian Hague aqui.
Nota
final: os nossos agradecimentos a Jan Baetens pela intermediação da
obtenção deste livro, à editora, pela oferta do mesmo, a Marco
Pellitteri e Pascal Lefèvre, por alguma troca de impressões, e a
Ian Hague, pela disponibilidade e simpatia de sempre.
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