Este
livro é composto por seis histórias que nascem de um trabalho
curioso de colaboração, ou melhor dizendo, de exercícios de canto
de responsorial. Contam-se seis artistas, todas elas trabalhando,
quase exclusivamente, com lápis (grafite, colorido ou outro) sobre
papel. Mulheres de várias nacionalidades, algumas das quais já
tivemos oportunidade de ler no passado, os “ecos” que criam são
transnacionais: Joanna Hellgren é sueca, Amanda Vähämäki é
finlandesa, Noémie Marsily é belga, Joanna Lorho é francesa,
assim como Julie Delporte ainda que esta tenha trabalhado no Canadá
sobretudo, e Aisha Franz é alemã. O livro está dividido em três
partes, estando cada uma delas composta por duas histórias, criadas
aparentemente por cada duas artistas ao mesmo tempo, com elementos
narrativos ou temáticos idênticos. (Mais)
Cada
par de histórias parece poder ser descrita, de uma forma ou outra,
da mesma maneira, existindo uma premissa comum que depois encontra
desenvolvimentos e pormenores discretos, já para não falar do
“traço” necessariamente distinto, mesmo que os seus instrumentos
sejam também próximos entre si. Cada parte dupla é aliás
precedida de uma página dupla, com uma fotografia – provavelmente
de uma paisagem, urbana aqui, florestal ali, partilhada – e uma
frase que descreve as narrativas.
Hellgren
e Vähämäki, unidas por preocupações “do norte”, mostram duas
protagonistas presas a uma rotina algo esmagadora das suas vidas (uma
trintona presa a um emprego odioso e que a aliena, e uma namorada que
não parece partilhar as mesmas preocupações profundas dela, a
outra uma bibliotecária com três filhos, a aguardar o fim-de-semana
em que estará “livre”), num clima igualmente desolador, e que
encontram uma possível saída no reino do maravilhoso. Se ambas
atravessam a fronteira da fantasia, ou se se tratam de alucinações,
sonhos ou projecções, não é claro, mas tampouco é importante
para a realização dos seus desejos imediatos. A esmagadora maioria
das páginas de Hellgren apresenta uma incontornável e quase marcial
grelha, o que corresponde ao ritmo empedernido da vida da
protagonista. Vähämäki, como é sua assinatura, deixa que os
traços da grafite, o seu pó leve, “contamine” aquelas áreas
que esperaríamos limpas, como se quisesse mostrar uma espécie de
cansaço, sentido pela mulher, esborratando todo o ambiente em que
ela se encerra.
Marsily
e Delporte mostram duas personagens escrevendo-se mutuamente. Marsily
assume a personagem de Bernadette, que escreve uma carta a Julie. É
uma personagem feminina, sem dúvida, mas Marsily representa-a como
um caranguejo-eremita, primeiro de um tamanho idêntico ao de um ser
humano mas depois ocupando todo o interior de uma casa, que arranca
das fundações e leva na sua fuga final. Ela escreve a carta numa
máquina de escrever, mas a autora quase reduz a história ao
silêncio, apenas algumas palavras são trocadas pela protagonista em
resposta ao gato, ou interrompendo o que parece ser o permanente
sopro do vento com outras onomatopeias, a do piano, a da máquina, a
do ruído do trânsito que atravessa a floresta. Quanto à
protagonista de Delporte, que se dirige a Bernadette, espalha as suas
sensações, sentimentos e impressões por uma espécie de “escrita”
diarística feita de fragmentos (característica da sua obra), também
coloridos, mas todos eles como gesto de saudades para com a amiga. Se
Marsily usa uma abordagem cheia de toda a página, com cores
não-naturais e vincadas no papel (notam-se algumas pressões aqui e
ali que incutem às figuras uma presença menos diáfana e
passageira), Delporte usa uma figuração mais sumária, desgarrada,
à la patchwork, e em que as letras são desenhadas com cores
diferentes e de uma forma quase infantil, a um só tempo transmitindo
vergonha de se estender em demasia nas palavras mas dizendo-as de um
modo decidido.
Franz
e Lorho criam duas histórias separadas, mas em que ambas envolvem
duas raparigas que visitam a casa da avó, à beira-mar. A de Franz é
uma adulta que revisita essa casa, tendo a avó morrido há muito. A
de Lorho é uma criança, passando o Verão com a avó, e parece
ocorrer um terrível acidente qualquer (talvez com o pai). Essas
estadas, mesmo que temporárias, irão permitir um cruzamento
fantástico a outro mundo de experiência, de forma a que cada
protagonista se cruze com um fantasma. No caso da primeira, visita-se
o passado, no da segunda é o fantasma (do pai?) que salva a menina
das águas turbulentas do mar, e depois ela quem o salva a ele de
águas ainda mais túrbidas. Franz cria estrutura de composições
tanto regulares como irregulares, algumas com escolhas geométricas
inusitadas mas de grande elegância, em que os intervalos entre
vinhetas são negros como caixilhos, e no interior das quais as
personagens estilizadas elaboram cândidos movimentos. Lorho, por sua
vez, “abandona” as personagens nas páginas sem divisão de
vinhetas senão o branco entre os desenhos, mas cria formas fluidas
perfeitas que acompanham as ondas dos espaços e dos sonhos
atravessados pela menina.
Os
ecos que atravessam estas páginas – cada uma delas em torno da
trintena - podem ser então entendidos a um nível apenas narrativo,
entre cada par de histórias, mas também ao nível da materialidade
dos desenhos e dos gestos, apenas um instrumento aparentemente
simples dando continuidade e rasto gráfico aos movimentos dos pulsos
e dedos. Todavia, também se unem num maior conjunto, não tanto
pelos lápis, não tanto pela grafite, nem pelo facto de serem
autoras, mas por focarem em vidas de protagonistas que, casadas ou
divorciadas, amantes ou solitárias, jovens ou vividas, apaixonadas
ou desencantadas, saudosas ou autónomas, encontram nessas suas
experiências de solidão uma espécie de passagem entre mundos, que
se poderiam chamar de vigília e sonho, ou realidade e fantasia.
Isso, porém, não é negar de forma alguma a parte que cabe à
fantasia ou ao sonho de moldar a vida, sobretudo no que diz respeito
às pulsões e desejos que tanto a animam. Mas é talvez um modo de
dar a entender que, tal como a Eco da mitologia grega, onde antes
existia uma profusão de histórias e uma voz incessante, resta
apenas um traço, melancólico e desacelerado, de algo que é já
pretérito.
Nesse
conjunto de alguma melancolia, porém, restam sempre as sombras que
se lêem e a beleza que devolvem.
Nota
final: as imagens usadas foram colhidas da internet, sobretudo da
própria editora.
Sem comentários:
Enviar um comentário