O
último filme de Miyazaki corre o risco se de tornar a coroa do
realizador, acarretando todos os riscos que a “última obra” pode
trazer, dominando toda a carreira de um autor, colorindo-a com essa
última ideia, subsumindo todos os outros passos a essa “chegada”.
É um fenómeno inevitável, o de colorir com a morte de um artista a
sua última criação, a sua última semana, as suas últimas
palavras, mesmo que elas tenham sido feitas, como é o caso deste
filme, no pleno convívio com as forças de vida que sempre o
animaram. Pois Miyazaki está vivo, naturalmente. (Mais)
Pelas
notícias que têm circulado, parece ser este o filme de maior
sucesso comercial, doméstica e internacionalmente, do realizador, o
que se compreende para já – factor crucial – por incluir
espectadores adultos. O tom de Vento
é de facto algo sombrio, em contraste com as suas obras anteriores,
é certo, mas Miyazaki sempre oscilou, com os seus filmes, em relação
ao intervalo etário dos seus espectadores. Se Totoro
e Ponyo
são filmes dirigidos sobretudo a crianças mais pequenas, e Mononoke
a adolescentes, talvez este título seja aquele que mais procura
falar a um público maduro, deixando de lado quase na totalidade
aqueles elementos que poderiam seduzir os espectadores mais jovens. E
a maturidade a que Vento
obriga não é apenas em termos emocionais, mas mesmo políticos. De
resto, isto não é nem muito diferente de outras obras saídas dos
estúdios Ghibli (pense-se em Grave
of the Fireflies
ou The
Yamadas,
de Isao Takahata, ou From
up on the Poppy Hill,
de Goro Miyazaki, o filho de Miyazaki), e mais vale nem sequer pensar
noutros projectos, como os de Mamoru
Hosoda
ou Satoshi Kon. Mais ainda, essa aparente surpresa no tom é remeter
à (ainda resistente) equação de “animação” a “para
crianças”.
As
notícias daquele sucesso a nível comercial, mas também crítico, e
a sua aliança a um tema mais complexo que os demais títulos levam a
que, também de modo inevitável e natural, as hipérboles tenham já
começado a circular, e “o mais maravilhoso filme de animação
alguma vez feito” é um apodo repetido em vários locais. No
entanto, sem debilitar as qualidades narrativas, técnicas e
temáticas que o filme possa ter, apenas num panorama largamente
informado pela história da animação, contemplando quer as longas
metragens famosas, as de culto e a intensíssima produção de
curtas-metragens, é que se poderia discutir seriamente sequer essa
possibilidade de hierarquias. Mesmo tendo em conta os temas
filosóficos necessariamente cerzidos na textura do filme,
discuti-los sem conhecer os filmes de Piotr
Kamler,
René Laloux, Ari Folman, ou até Richard Linklater é simplesmente
não discutir, e apenas pronunciar uma boutade
vazia. Falar dessa superioridade por uma informação apenas contida
pela animação das televisões mais normalizadas, ou a produção
norte-americana (Disney, Pixar, Dreamworks, Blue Sky), é revelar uma
total falta de seriedade no juízo final.
O
filme é uma espécie de biografia transfigurada de Jiro
Horikoshi, o engenheiro aéro que terá desenhado o famoso caça
japonês “Zero” (para
ser mais exacto, o Mitsubishi
A6M Zero e variações),
o qual, depois de um curto período em que eram os melhores jactos
nos céus e em combate aéreo na 2º Guerra Mundial, seria reduzido
infamemente a uma bomba dirigida (a primeira “smart bomb” da
história?) pelos Kamikaze. Esta última palavra significa
precisamente “vento divino”, e une-se de uma forma simbólica e
poética com o título do filme, ele mesmo retirado de um verso de
Paul Valèry repetidamente citado no filme: “Le
vent se lève!... Il faut tenter de vivre!”
A questão é tentar compreender se Miyazaki tenta resgatar essa
metáfora do vento de um panorama militarista, imperial e horrendo
para a parte das intenções do engenheiro, ou se antes opera um
apagamento dessa outra dimensão histórica.
De
acordo com o realizador, o seu interesse pelo foco a nível humano no
trabalho de Horiskoshi surgiu quando se deparou com uma frase do
engenheiro em relação ao uso dos seus aviões: “tudo o que eu
queria era criar algo de belo”. É então a suposta “perversão”
da sua visão criativa pelos interesses bélicos que importava
analisar, e o filme então segue o engenheiro na sua “visão” -
literalmente, como veremos -, nas inevitáveis negociações com os
poderes políticos e militares, o preço humano pessoal da sua
carreira e o que terá coroado o seu trabalho.
A
cena de abertura do filme, com o pequeno Jiro sonhando voar do
telhado de sua casa num estranho aeroplano branco, leve, quase de
papel (ou feito de “sonhos”) une-se às máquinas voadoras que
víramos em Nausicaa, Laputa, e acima de tudo Porco
Rosso, onde o nada diluído fascínio de Miyazaki por aviões de
combate é demonstrado. E é preciso não esquecer que, sendo o
realizador um homem do seu tempo (nasceu em 1945), e apesar da sua
posição pacifista – bastas vezes confirmada e até expressa por
algumas das suas personagens -, não deixa esse seu fascínio pelo
Zero de estar intimamente relacionada com a propaganda desse mesmo
avião como um símbolo do Japão. Destrinçar a belicidade e
imperialismo desse mesmo Japão focando o seu engenho e dedicação
técnicos é um exercício, no mínimo, complicado. A quem serve essa
tarefa? O que se ganha com ela? Há um momento na narrativa
Horiskoshi retira as armas do avião para que este fique mais leve.
Mas uma vez que não se trata de uma “biopic” estritamente
falando, não sabemos se esse gesto corresponde ou não à realidade
histórica. A questão continua a ser a mesma: em que medida é que
essa destrinça ajuda à construção intelectual, criativa e ética
da personagem e do mundo que quererá representar? Na verdade, a
suposta ideia de que Vento é o menos “mágico” dos filmes
de Miyazaki – afinal não existem espíritos, hokai,
criaturas fantásticas, fantasmas, travessias para outros mundos
maravilhosos, factores de futurologia utópica ou universos paralelos
e pejados de magia – e o mais “realista” pode não corresponder
totalmente à verdade. Talvez o que se passa é que este filme
costura de uma forma muito subtil a parte da fantasia que é
intrínseca à vida à ideia de vigília.
Na
cena de abertura que citámos, e em vários momentos do filme, temos
acesso aos sonhos do protagonista, assim como a cenas de fantasias,
sonhos lúcidos, visões e projecções. Elas não são algo que
interrompe a vida do engenheiro, tal como não são de forma alguma
interrupções nas nossas vidas. Como é discutido por pensadores de
várias disciplinas há muito, de Aristóteles a Freud e Zizek, a
fantasia é parte da vida no sentido em que é ela quem cria, quem
subjectiva o desejo. No fundo, Miyazaki não constrói a sua
personagem de uma maneira totalmente alheia ou desatenta ao propósito
militar do projecto em que está envolvido. Jiro sabe-o, mas é quase
como se se fechasse num mundo próprio, quase autista, e por isso
temos acesso aos seus sonhos, recorrentemente, e a vigília é
interrompida por cenas de fantasia. Tratar-se-ia de um acto de
auto-censura, de auto-cegueira?
Não
percebendo nada de aviões, nem da sua construção técnica, nem dos
processos financeiros e políticos em que se integram, poderemos
mesmo crer que o desejo de criação de um avião desta natureza
poderia sequer ter lugar no exterior de uma condição de
possibilidade militar? Poder-se-á pensar na maravilha de um
mecanismo de um canhão Krupp sem imaginar que o seu propósito é
ser disparado? Pode-se ficar fascinado com o mecanismo que envolve o
urânio da Little Boy sem imaginar que ela tombe dos céus?
Por
outro lado, porém, a forma como as crítica têm surgido em relação
a Miyazaki, e a sua escolha em criar uma espécie de elogio ao
designer de um avião particularmente mortífero, não surgirão por
estarem “do lado errado da história”? Isto é, dos vencidos? Se
fosse um elogio do Spitfire, que diferença haveria? Apenas por estar
ao serviço dos “bons”, e mais, dos “vencedores”, a questão
ética mudaria de figura?
No
entanto, existem de facto dimensões que parecem totalmente colocadas
de lado pelo realizador, sendo o imperalismo japonês – um regime
particularmente belicoso, facínora, racista e violento para com
todos os povos colonizados – a face ausente que mais se sente.
Assim como a das vítimas imediatamente relacionadas com este
episódio especial da sua história. Há uma conversa entre Jiro
Horiskoshi e Gianni Caproni, o seu ídolo de infância e a quem
recorre através dos sonhos, em que se debate a existência das
pirâmides, como símbolo de uma complexa equação entre a herança
histórica de um determinado tipo de beleza e o preço humano
horroroso que lhe está associado. Suspendamos agora a ideia algo
desarticulada de que as pirâmides egípcias haviam sido construídas
por mão-de-obra escrava, o que não é totalmente exacto. Mas será
este um bom argumento? A ideia de uma injustiça histórica, que
estaria integrada num plano mental e social radicalmente diferente do
contemporâneo, servirá para justificar as injustiças presentes? O
trabalho coreano escravo que foi empregue no fabrico e montagem dos
Zeros não surge jamais no filme, mas está-lhe associado
indelevelmente. Talvez, de uma forma oblíqua, esta conversa em torno
das pirâmides quisesse aflorar o assunto de uma maneira mais ou
menos subtil, elegante, pouco violenta. É possível. Todavia, as
pirâmides eram um projecto colectivo e religioso, e a entrega humana
a ele providenciava desde logo uma recompensa transcendente àqueles
que pertenciam a essa visão mundo. Aqueles envolvidos no fabrico dos
Zeros não partilhavam esse desejo, nem partilhariam essa glória, e
os engenheiros talvez não vejam que a beleza de que falam não é
instrumentalizada pelo seu fim bélico: ela é constituída nele
mesmo.
Quase
todos os filmes de Miyazaki são claríssimos nas suas lições
profundas sobre a falta de inteligência e os custos humanos (e
ecológicos, também, esta é sempre uma dimensão permanente) que os
actos de guerra implicam. Logo, ver em Vento
uma apologia da guerra é tresler de uma forma desonesta o mesmo.
Além disso, o seu envolvimento directo quando da estreia do filme,
com uma carta que escreveu contra a proposta revisão da constituição
pelo governo actual, que proporia a expansão dos gastos e esforços
militares, apenas reforça essa posição. Não obstante, há algo de
sub-desenvolvido na posição da personagem, precisamente a crença
que uma abordagem positiva das suas projecções de fantasia, a
entrada do sonho em vida, o seu desejo expresso, é quase suficiente
para redimir o seu uso efectivo e o custo histórico.
O
filme – que tem cerca de duas horas – tem um ritmo e velocidade
bem mais lentos do que o usual (sobretudo Mononoke
e Chihiro),
mas não apenas há episódios belíssimos de melodrama (a relação
entre o protagonista e a sua mulher Naoko, cuja doença não lhe
promete grande vida) como existem momentos de grande intensidade
visual, sobretudo nos momentos de destruição (um incêndio, aviões
desfazendo-se, nuvens quebrando), revendo a indestrinçável equação
que mencionámos repetidas vezes. Essas cenas são terríveis no seu
sentido ou escala humanos mas sublimes no plano visual. Um outro
aspecto visual muito conseguido é a representação dos fumos dos
cigarros (a cena em que Horiskoshi fuma dentro do quarto com a
mulher, tuberculosa, deitada, pode parecer “cruel”, mas é
simplesmente autêntica e em conformidade com as noções e
comportamentos históricos), que não é mais do um outro movimento
não humano explorado, não tanto como contraste, mas como eco das
fantasias que se vão formando e evolando. Além disso, são
precisamente todas as cenas em que vemos os céus pejados de máquinas
voadoras, quer nas cenas reais quer nos sonhos e visões de Jiro, mas
sobretudo estas últimas, que criam momentos “cristal”
absolutamente magníficos.
A
dimensão sonora é também, parece-nos, curiosa. Alguns dos efeitos,
sobretudo aqueles que estariam representando sons naturais (o tremor
de terra, o barulho dos ventos vários, do ar contra as asas dos
aviões, etc.) são notoriamente feitos por sons humanos, não
procurando uma ilusão, mas antes aqueles sons que produzimos quase
naturalmente com a boca quando os queremos imitar. Há aqui duas
conclusões a tirar: por um lado, isso incute não apenas um lado
antropomórfico aos próprios sons e aos objectos que os produzem (em
última análise, a própria natureza) como um lado orgânico,
natural, vivo. Neste aspecto, é apenas uma confirmação de um tema
recorrente do realizador japonês, já apontado, que se prende com o
seu sentimento ecológico. A magia aqui vive num extremo tal que
apaga essa mesma impressão de magia. Por outro lado, aqueles sons
também podem associar-se às brincadeiras das crianças (ou adultos)
imitando esses objectos, sublinhando assim a performance e ludicidade
possíveis na leitura... uma continuação, portanto, da tal ideia da
fantasia como parte integrante da realidade.
Ainda
em relação aos sons, um dado que talvez seja importante é a voz da
personagem principal. Apesar de ter um ar muito jovem, quase
inocente, em contraste com muitos dos outros homens adultos que o
rodeiam, Horikoshi tem uma voz madura, algo desfasada do seu corpo.
Transmite alguma gravidade que não é “visível” no seu rosto,
mas antes no seu comportamento calmo e ponderado. A voz, aprendemos,
é de Hideaki
Anno
, realizador de Evangelion.
Existe desde logo aqui uma linha de fuga intertextual que importaria,
decerto, explorar por quem conhecesse melhor as implicações dessa
associação.
E
por falar em intertextualidade, ela é fortíssima no “capítulo
europeu”, quando Horikoshi se retira para uma espécie de termas
algures na Europa. A ideia é que muito provavelmente será Davos, a
pequena cidade onde se encontra o sanatório d'A
Montanha Mágica
de Thomas Mann. Recordemo-nos que Castorp, o protagonista desse
romance, é também um engenheiro que, na sua visita a Davos, se
entregará a uma protelada introspecção. É debatível se a
personagem alemã com que Horikoshi se cruza e com quem debate, algo
obliquamente, temas sobre responsabilidade, etc. no filme,
corresponderá a algum dos interlocutores de Castorp, ou se ela deve
ser lida “simbolicamente” como um papel presente na (então)
Alemanha nazi, ou se simplesmente dever ser confrontada como uma
personagem a título próprio, no mecanismo interno do filme. Estamos
em crer que por mais interessantes que sejam as “interpretações
finais” intertextuais e simbólicas, a sua leitura no seio da
narrativa propriamente dita de Vento
será a mais frutífera, em última análise.
O
filme não se abstém totalmente das implicações políticas e da
responsabilidade na violência perpetrada pelo Japão, mas uma vez
que os temas são tratados quase lateralmente, e há antes uma
concentração na ideia da criatividade independente do homem,
desconectada com as suas consequências, Vento surge como um
filme paradoxal, mas complexo, sem dúvida, e que terá ainda muito
que debater em relação à ideia “testamental” que deixa: a de
que uma “obra” terá sempre um uso aberto e polivalente.
À
luz daqueles exercícios de desconstrução radical de uma narrativa
que nos é apresentada, proporíamos uma leitura paralela do filme. A
de que a sua mulher, Naoko, não existe realmente. Quando Horikoshi e
Naoko se conhecem, a viagem de comboio é interrompida mesmo antes de
chegarem a Tóquio pelo terramoto de Kanto de 1923. Horikoshi leva a
ama de Naoko às costas, salvando-a. Depois acompanha Naoko que fica
com a família e regressa ao local onde está a ama, que é lavada
por outros criados. Mais tarde, quando tenta visitar de novo a
família, descobre que a casa ardeu. Passados alguns anos, são
entregues a Horikoshi alguns dos pertences que havia deixado com a
família, mas não consegue alcançar a pessoa a tempo; no ecrã,
vemos a ama, de costas, a dissolver-se no ar. Talvez seja apenas uma
opção narrativa, a de criar dificuldades no encontro, para depois
aumentar a sua felicidade do cruzamento, quase fortuito, nas termas
europeias, e a dissolução da ama seria apenas um efeito dramático,
que não deve ser lido literalmente. Todavia, se lêssemos toda a
relação como fruto de uma projecção fantasmática, mais uma vez
seguindo a ideia da visibilidade actual dos sonhos e fantasias do
protagonista, veríamos que esses planos, usualmente distintos,
encontram aqui uma mistura particularmente interrogante de todo o
projecto narrativo de O vento ergue-se. Filme
que não deixará de fazer perguntas durante muito tempo.
1 comentário:
belíssimo texto. creio que partilhamos o mesmo fascínio racional pelo autor :-)
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