26 de maio de 2014

Kaze Tachinu/O vento ergue-se. Filme de Hideo Miyazaki.

O último filme de Miyazaki corre o risco se de tornar a coroa do realizador, acarretando todos os riscos que a “última obra” pode trazer, dominando toda a carreira de um autor, colorindo-a com essa última ideia, subsumindo todos os outros passos a essa “chegada”. É um fenómeno inevitável, o de colorir com a morte de um artista a sua última criação, a sua última semana, as suas últimas palavras, mesmo que elas tenham sido feitas, como é o caso deste filme, no pleno convívio com as forças de vida que sempre o animaram. Pois Miyazaki está vivo, naturalmente. (Mais)
Pelas notícias que têm circulado, parece ser este o filme de maior sucesso comercial, doméstica e internacionalmente, do realizador, o que se compreende para já – factor crucial – por incluir espectadores adultos. O tom de Vento é de facto algo sombrio, em contraste com as suas obras anteriores, é certo, mas Miyazaki sempre oscilou, com os seus filmes, em relação ao intervalo etário dos seus espectadores. Se Totoro e Ponyo são filmes dirigidos sobretudo a crianças mais pequenas, e Mononoke a adolescentes, talvez este título seja aquele que mais procura falar a um público maduro, deixando de lado quase na totalidade aqueles elementos que poderiam seduzir os espectadores mais jovens. E a maturidade a que Vento obriga não é apenas em termos emocionais, mas mesmo políticos. De resto, isto não é nem muito diferente de outras obras saídas dos estúdios Ghibli (pense-se em Grave of the Fireflies ou The Yamadas, de Isao Takahata, ou From up on the Poppy Hill, de Goro Miyazaki, o filho de Miyazaki), e mais vale nem sequer pensar noutros projectos, como os de Mamoru Hosoda ou Satoshi Kon. Mais ainda, essa aparente surpresa no tom é remeter à (ainda resistente) equação de “animação” a “para crianças”.

As notícias daquele sucesso a nível comercial, mas também crítico, e a sua aliança a um tema mais complexo que os demais títulos levam a que, também de modo inevitável e natural, as hipérboles tenham já começado a circular, e “o mais maravilhoso filme de animação alguma vez feito” é um apodo repetido em vários locais. No entanto, sem debilitar as qualidades narrativas, técnicas e temáticas que o filme possa ter, apenas num panorama largamente informado pela história da animação, contemplando quer as longas metragens famosas, as de culto e a intensíssima produção de curtas-metragens, é que se poderia discutir seriamente sequer essa possibilidade de hierarquias. Mesmo tendo em conta os temas filosóficos necessariamente cerzidos na textura do filme, discuti-los sem conhecer os filmes de Piotr Kamler, René Laloux, Ari Folman, ou até Richard Linklater é simplesmente não discutir, e apenas pronunciar uma boutade vazia. Falar dessa superioridade por uma informação apenas contida pela animação das televisões mais normalizadas, ou a produção norte-americana (Disney, Pixar, Dreamworks, Blue Sky), é revelar uma total falta de seriedade no juízo final.

O filme é uma espécie de biografia transfigurada de Jiro Horikoshi, o engenheiro aéro que terá desenhado o famoso caça japonês “Zero” (para ser mais exacto, o Mitsubishi A6M Zero e variações), o qual, depois de um curto período em que eram os melhores jactos nos céus e em combate aéreo na 2º Guerra Mundial, seria reduzido infamemente a uma bomba dirigida (a primeira “smart bomb” da história?) pelos Kamikaze. Esta última palavra significa precisamente “vento divino”, e une-se de uma forma simbólica e poética com o título do filme, ele mesmo retirado de um verso de Paul Valèry repetidamente citado no filme: “Le vent se lève!... Il faut tenter de vivre!” A questão é tentar compreender se Miyazaki tenta resgatar essa metáfora do vento de um panorama militarista, imperial e horrendo para a parte das intenções do engenheiro, ou se antes opera um apagamento dessa outra dimensão histórica.

De acordo com o realizador, o seu interesse pelo foco a nível humano no trabalho de Horiskoshi surgiu quando se deparou com uma frase do engenheiro em relação ao uso dos seus aviões: “tudo o que eu queria era criar algo de belo”. É então a suposta “perversão” da sua visão criativa pelos interesses bélicos que importava analisar, e o filme então segue o engenheiro na sua “visão” - literalmente, como veremos -, nas inevitáveis negociações com os poderes políticos e militares, o preço humano pessoal da sua carreira e o que terá coroado o seu trabalho.

A cena de abertura do filme, com o pequeno Jiro sonhando voar do telhado de sua casa num estranho aeroplano branco, leve, quase de papel (ou feito de “sonhos”) une-se às máquinas voadoras que víramos em Nausicaa, Laputa, e acima de tudo Porco Rosso, onde o nada diluído fascínio de Miyazaki por aviões de combate é demonstrado. E é preciso não esquecer que, sendo o realizador um homem do seu tempo (nasceu em 1945), e apesar da sua posição pacifista – bastas vezes confirmada e até expressa por algumas das suas personagens -, não deixa esse seu fascínio pelo Zero de estar intimamente relacionada com a propaganda desse mesmo avião como um símbolo do Japão. Destrinçar a belicidade e imperialismo desse mesmo Japão focando o seu engenho e dedicação técnicos é um exercício, no mínimo, complicado. A quem serve essa tarefa? O que se ganha com ela? Há um momento na narrativa Horiskoshi retira as armas do avião para que este fique mais leve. Mas uma vez que não se trata de uma “biopic” estritamente falando, não sabemos se esse gesto corresponde ou não à realidade histórica. A questão continua a ser a mesma: em que medida é que essa destrinça ajuda à construção intelectual, criativa e ética da personagem e do mundo que quererá representar? Na verdade, a suposta ideia de que Vento é o menos “mágico” dos filmes de Miyazaki – afinal não existem espíritos, hokai, criaturas fantásticas, fantasmas, travessias para outros mundos maravilhosos, factores de futurologia utópica ou universos paralelos e pejados de magia – e o mais “realista” pode não corresponder totalmente à verdade. Talvez o que se passa é que este filme costura de uma forma muito subtil a parte da fantasia que é intrínseca à vida à ideia de vigília.

Na cena de abertura que citámos, e em vários momentos do filme, temos acesso aos sonhos do protagonista, assim como a cenas de fantasias, sonhos lúcidos, visões e projecções. Elas não são algo que interrompe a vida do engenheiro, tal como não são de forma alguma interrupções nas nossas vidas. Como é discutido por pensadores de várias disciplinas há muito, de Aristóteles a Freud e Zizek, a fantasia é parte da vida no sentido em que é ela quem cria, quem subjectiva o desejo. No fundo, Miyazaki não constrói a sua personagem de uma maneira totalmente alheia ou desatenta ao propósito militar do projecto em que está envolvido. Jiro sabe-o, mas é quase como se se fechasse num mundo próprio, quase autista, e por isso temos acesso aos seus sonhos, recorrentemente, e a vigília é interrompida por cenas de fantasia. Tratar-se-ia de um acto de auto-censura, de auto-cegueira?

Não percebendo nada de aviões, nem da sua construção técnica, nem dos processos financeiros e políticos em que se integram, poderemos mesmo crer que o desejo de criação de um avião desta natureza poderia sequer ter lugar no exterior de uma condição de possibilidade militar? Poder-se-á pensar na maravilha de um mecanismo de um canhão Krupp sem imaginar que o seu propósito é ser disparado? Pode-se ficar fascinado com o mecanismo que envolve o urânio da Little Boy sem imaginar que ela tombe dos céus?

Por outro lado, porém, a forma como as crítica têm surgido em relação a Miyazaki, e a sua escolha em criar uma espécie de elogio ao designer de um avião particularmente mortífero, não surgirão por estarem “do lado errado da história”? Isto é, dos vencidos? Se fosse um elogio do Spitfire, que diferença haveria? Apenas por estar ao serviço dos “bons”, e mais, dos “vencedores”, a questão ética mudaria de figura?

No entanto, existem de facto dimensões que parecem totalmente colocadas de lado pelo realizador, sendo o imperalismo japonês – um regime particularmente belicoso, facínora, racista e violento para com todos os povos colonizados – a face ausente que mais se sente. Assim como a das vítimas imediatamente relacionadas com este episódio especial da sua história. Há uma conversa entre Jiro Horiskoshi e Gianni Caproni, o seu ídolo de infância e a quem recorre através dos sonhos, em que se debate a existência das pirâmides, como símbolo de uma complexa equação entre a herança histórica de um determinado tipo de beleza e o preço humano horroroso que lhe está associado. Suspendamos agora a ideia algo desarticulada de que as pirâmides egípcias haviam sido construídas por mão-de-obra escrava, o que não é totalmente exacto. Mas será este um bom argumento? A ideia de uma injustiça histórica, que estaria integrada num plano mental e social radicalmente diferente do contemporâneo, servirá para justificar as injustiças presentes? O trabalho coreano escravo que foi empregue no fabrico e montagem dos Zeros não surge jamais no filme, mas está-lhe associado indelevelmente. Talvez, de uma forma oblíqua, esta conversa em torno das pirâmides quisesse aflorar o assunto de uma maneira mais ou menos subtil, elegante, pouco violenta. É possível. Todavia, as pirâmides eram um projecto colectivo e religioso, e a entrega humana a ele providenciava desde logo uma recompensa transcendente àqueles que pertenciam a essa visão mundo. Aqueles envolvidos no fabrico dos Zeros não partilhavam esse desejo, nem partilhariam essa glória, e os engenheiros talvez não vejam que a beleza de que falam não é instrumentalizada pelo seu fim bélico: ela é constituída nele mesmo.

Quase todos os filmes de Miyazaki são claríssimos nas suas lições profundas sobre a falta de inteligência e os custos humanos (e ecológicos, também, esta é sempre uma dimensão permanente) que os actos de guerra implicam. Logo, ver em Vento uma apologia da guerra é tresler de uma forma desonesta o mesmo. Além disso, o seu envolvimento directo quando da estreia do filme, com uma carta que escreveu contra a proposta revisão da constituição pelo governo actual, que proporia a expansão dos gastos e esforços militares, apenas reforça essa posição. Não obstante, há algo de sub-desenvolvido na posição da personagem, precisamente a crença que uma abordagem positiva das suas projecções de fantasia, a entrada do sonho em vida, o seu desejo expresso, é quase suficiente para redimir o seu uso efectivo e o custo histórico.

O filme – que tem cerca de duas horas – tem um ritmo e velocidade bem mais lentos do que o usual (sobretudo Mononoke e Chihiro), mas não apenas há episódios belíssimos de melodrama (a relação entre o protagonista e a sua mulher Naoko, cuja doença não lhe promete grande vida) como existem momentos de grande intensidade visual, sobretudo nos momentos de destruição (um incêndio, aviões desfazendo-se, nuvens quebrando), revendo a indestrinçável equação que mencionámos repetidas vezes. Essas cenas são terríveis no seu sentido ou escala humanos mas sublimes no plano visual. Um outro aspecto visual muito conseguido é a representação dos fumos dos cigarros (a cena em que Horiskoshi fuma dentro do quarto com a mulher, tuberculosa, deitada, pode parecer “cruel”, mas é simplesmente autêntica e em conformidade com as noções e comportamentos históricos), que não é mais do um outro movimento não humano explorado, não tanto como contraste, mas como eco das fantasias que se vão formando e evolando. Além disso, são precisamente todas as cenas em que vemos os céus pejados de máquinas voadoras, quer nas cenas reais quer nos sonhos e visões de Jiro, mas sobretudo estas últimas, que criam momentos “cristal” absolutamente magníficos.

A dimensão sonora é também, parece-nos, curiosa. Alguns dos efeitos, sobretudo aqueles que estariam representando sons naturais (o tremor de terra, o barulho dos ventos vários, do ar contra as asas dos aviões, etc.) são notoriamente feitos por sons humanos, não procurando uma ilusão, mas antes aqueles sons que produzimos quase naturalmente com a boca quando os queremos imitar. Há aqui duas conclusões a tirar: por um lado, isso incute não apenas um lado antropomórfico aos próprios sons e aos objectos que os produzem (em última análise, a própria natureza) como um lado orgânico, natural, vivo. Neste aspecto, é apenas uma confirmação de um tema recorrente do realizador japonês, já apontado, que se prende com o seu sentimento ecológico. A magia aqui vive num extremo tal que apaga essa mesma impressão de magia. Por outro lado, aqueles sons também podem associar-se às brincadeiras das crianças (ou adultos) imitando esses objectos, sublinhando assim a performance e ludicidade possíveis na leitura... uma continuação, portanto, da tal ideia da fantasia como parte integrante da realidade.

Ainda em relação aos sons, um dado que talvez seja importante é a voz da personagem principal. Apesar de ter um ar muito jovem, quase inocente, em contraste com muitos dos outros homens adultos que o rodeiam, Horikoshi tem uma voz madura, algo desfasada do seu corpo. Transmite alguma gravidade que não é “visível” no seu rosto, mas antes no seu comportamento calmo e ponderado. A voz, aprendemos, é de Hideaki Anno , realizador de Evangelion. Existe desde logo aqui uma linha de fuga intertextual que importaria, decerto, explorar por quem conhecesse melhor as implicações dessa associação.

E por falar em intertextualidade, ela é fortíssima no “capítulo europeu”, quando Horikoshi se retira para uma espécie de termas algures na Europa. A ideia é que muito provavelmente será Davos, a pequena cidade onde se encontra o sanatório d'A Montanha Mágica de Thomas Mann. Recordemo-nos que Castorp, o protagonista desse romance, é também um engenheiro que, na sua visita a Davos, se entregará a uma protelada introspecção. É debatível se a personagem alemã com que Horikoshi se cruza e com quem debate, algo obliquamente, temas sobre responsabilidade, etc. no filme, corresponderá a algum dos interlocutores de Castorp, ou se ela deve ser lida “simbolicamente” como um papel presente na (então) Alemanha nazi, ou se simplesmente dever ser confrontada como uma personagem a título próprio, no mecanismo interno do filme. Estamos em crer que por mais interessantes que sejam as “interpretações finais” intertextuais e simbólicas, a sua leitura no seio da narrativa propriamente dita de Vento será a mais frutífera, em última análise.

O filme não se abstém totalmente das implicações políticas e da responsabilidade na violência perpetrada pelo Japão, mas uma vez que os temas são tratados quase lateralmente, e há antes uma concentração na ideia da criatividade independente do homem, desconectada com as suas consequências, Vento surge como um filme paradoxal, mas complexo, sem dúvida, e que terá ainda muito que debater em relação à ideia “testamental” que deixa: a de que uma “obra” terá sempre um uso aberto e polivalente.


À luz daqueles exercícios de desconstrução radical de uma narrativa que nos é apresentada, proporíamos uma leitura paralela do filme. A de que a sua mulher, Naoko, não existe realmente. Quando Horikoshi e Naoko se conhecem, a viagem de comboio é interrompida mesmo antes de chegarem a Tóquio pelo terramoto de Kanto de 1923. Horikoshi leva a ama de Naoko às costas, salvando-a. Depois acompanha Naoko que fica com a família e regressa ao local onde está a ama, que é lavada por outros criados. Mais tarde, quando tenta visitar de novo a família, descobre que a casa ardeu. Passados alguns anos, são entregues a Horikoshi alguns dos pertences que havia deixado com a família, mas não consegue alcançar a pessoa a tempo; no ecrã, vemos a ama, de costas, a dissolver-se no ar. Talvez seja apenas uma opção narrativa, a de criar dificuldades no encontro, para depois aumentar a sua felicidade do cruzamento, quase fortuito, nas termas europeias, e a dissolução da ama seria apenas um efeito dramático, que não deve ser lido literalmente. Todavia, se lêssemos toda a relação como fruto de uma projecção fantasmática, mais uma vez seguindo a ideia da visibilidade actual dos sonhos e fantasias do protagonista, veríamos que esses planos, usualmente distintos, encontram aqui uma mistura particularmente interrogante de todo o projecto narrativo de O vento ergue-se. Filme que não deixará de fazer perguntas durante muito tempo.

1 comentário:

Maria disse...

belíssimo texto. creio que partilhamos o mesmo fascínio racional pelo autor :-)