Num
espaço de um ano, Karin Kukkonen, que tem já uma carreira
relativamente conhecida no campo dos estudos de banda desenhada
através de alguns dos seus brilhantes papers, e o seu
Metalepsis in Popular Culture, publicou dois livros que, sendo
bem distintos entre si, se unem pelo seu campo (trans)disciplinar. O
espaço de investigação de Kukkonen é informado pela narratologia
contemporânea, sobretudo onde ela tem vindo a ser inflectida pelos
contributos do cognitivismo.
Ambos,
parecem-nos, são estimáveis à sua maneira. Contemporary Comics
Storytelling (CCS)
é o mais teórico, fruto do trabalho académico de Kukkonen, logo
necessariamente mais denso e focado mas desenvolve de uma maneira
teoricamente sólida os pontos principais. Studying Comics and
Graphic Novels é mais próximo de um “manual”, desenvolvido
no seio de cursos introdutórios de nível universitário (ver
entrevista, abaixo), mas ainda assim entrega-se a algum grau de
complexidade teórico. Não o abordaremos em pormenor, dizendo apenas
que, a um só tempo, ele providencia close readings curtas mas
magníficas, sem ter vergonha de se aproximar de dimensões mais
complicadas. Um problema inerente a ambas as edições é o seu preço
(o segundo volume, que custa quase 30 Euros, não tem sequer 200
páginas), o que os torna proibitivos fora dos contextos educativos
(bibliotecas) em que se integrarão, o que pode ser visto como um
obstáculo compreensível, e que não conseguirá eliminar a ideia
generalizada, mas não totalmente errada, que as obras de Scott
McCloud continuarão a ser boas referências populares de introdução.
Seja como for, este segundo livro de Kukkonen vem unir-se a esforços
como aqueles dos livros de Ann Miller, Smith & Duncan, Magnussen
& Christiansen, entre alguns outros. (mais)
A
autora afasta-se claramente de discussões essencialistas,
considerando a banda desenhada como literatura, ou como parte da
literatura, preferindo focar-se nas formas como ela responde a
desafios relacionados com a literatura: “Textos, e as suas
características, a forma como eles se relacionam com os leitores, e
pela forma como participam nos diálogos culturais, convergem aqui.
Ver a banda desenhada como literatura significa considerar a forma
como estes aspectos interagem” (pg. 2). E na conclusão, Kukkonen
também sublinha este aspecto, “porque as suas estratégias
narrativas complexas permitem-lhes participar e reflectir os debates
culturais contemporâneos”. Em suma, alguma banda desenhada
“é literatura” (177). Também em Studying a autora advoga
uma mescla entre instrumentos advindos da análise literária e dos
estudos cognitivos que possam levar a uma visão concertada de “as
nossas interacções variadas com a página à nossa frente, a
complexidade das inferências feitas e refeitas, e os múltiplos
caminhos possíveis que podemos estabelecer na página” (pg. 149,
numa conclusão intitulada “A banda desenhada como literatura”).
O
primeiro capítulo de CCS intitula-se “Como analisar cognitivamente
a banda desenhada”, e utiliza uma estratégia muito curiosa:
partindo da famosa análise de Umberto Eco da primeira página de
Domingo de Steve Canyon, de Milton Caniff, no seu ensaio
seminal “Uma leitura de Steve Canyon” (1964, editado em
Portugal em Apocalípticos e Integrados), Kukkonen mostra como
algumas das ferramentas do cognitivismo podem ser utilizadas para
irem mais longe ainda, e até mesmo corrigir alguns dos pontos dessa
abordagem semiótica clássica. De uma certa forma, a autora vai para
além da consideração de toda a informação presente nas páginas
da banda desenhada como parte de um código dado, envolvendo-se com
as inferências que os leitores fazem a partir das pistas visuais,
verbais e estruturais. Depois dessa análise e bebendo de outras
fontes teóricas, a conclusão momentânea apresenta-se: “Apesar de
[os estudos de Teun can Dijk e Walyer Kintsch] separarem
analiticamente construção e integração, eles são bastante claros
sobre o facto de ambas interagirem através do processo de leitura:
as características textuais são necessárias para activar schemata
[uma padrão com o qual criamos categorias, como a dos géneros
literários, por exemplo], mas por sua vez os schemata determinam que
características textuais são processadas pelos leitores” (27).
Uma das consequências disso é que “os potenciais de sentidos
múltiplos e de complexidade cognitiva são parte integrante da nossa
entrega cognitiva com um texto, e não somente uma sua adição
excepcional” (38).
O
“particular problema ou conjunto de
desafios de interpretação” que a autora decide discutir nos três
capítulos principais de CCS,
ou os conceitos-chave, são
a intertextualidade, os mundos fictícios [storyworlds],
e as mentes ficcionais. E os textos que ela escolhe para cada
um desses quadros analíticos são todos séries de comic books
mainstream norte-americanos contemporâneos, a saber, e
respectivamente aos conceitos-chave: Fables, de Bill
Willingham e uma série de artistas, Tom Strong, de Alan Moore
et al., e 100 Bullets, de Brian Azzarello e Eduardo Risso. Na
verdade, a cada passo a autora refere-se a todas as séries para
falar de um ponto similar que está a analisar, mas são cada um
desses casos de estudo analisados sobretudo sob o foco daquelas
noções citadas. Uma das primeiras dimensões que se salienta no
estudo delas é que é menos importante a contextualização
histórica, editorial, autoral, dos títulos eleitos - por exemplo,
integrando Fables numa fase pós-Gaiman da Vertigo, e
encontrando no ponto de partida da série uma herança quase directa
de The Sandman - do que uma concentração quase absoluta nos
princípios analíticos eleitos. Aliás, como escreve a própria
autora, já na conclusão, ela segue “vias de inquirição que são
conduzidas por um problema particular ou por um conjunto de desafios
interpretativos” (177), seguindo dessa forma as noções de David
Bordwell de uma “pesquisa a meio-caminho” [middle-range].
O
capítulo que se centra na série Fables intitula-se “Textual
Traditions in Comics. Fables, Genre, and Intertextuality.”
Nele, a autora estuda a forma como as histórias, os “arcos
narrativos”, sobre as personagens de contos de fada vivendo na Nova
Iorque contemporânea, não apenas citam a matéria textual e muitas
vezes imagética desse género em particular, como o cruzam com
outros domínios, do policial à high fantasy, narrativas de
guerra ou horror. O que isso permite é que a leitura se venha ligar
à controversa “memória cultural” (controversa porque levanta
toda uma série de questões críticas complexas), a qual é segundo
Kukkonen “um agregado de textos e as suas representações mentais
que podem ser relacionadas a uma comunidade particular e as suas
atitudes e ideologias” (58). A autora aqui bebe das pesquisas de
Jan Assmann, mas ela própria já havia escrito largamente sobre este
aspecto em “Popular Cultural Memory” (além deste livro se basear
na dissertação de doutoramento da autora, ela já havia publicado
papers com partes da investigação); e mais uma vez volta à
questão de como os schemata criam não apenas expectativas,
como nos fazem contínua e sistematicamente reconstruir os géneros
(comparamos e expandimo-los a cada texto novo) como nos permitem
integrá-las nas nossas conversas do dia-a-dia (v. pgs. 67-69).
O
capítulo que lida com Tom Strong explora a ficcionalidade, os
mundos ficcionais e a imaginação. O cerne aí é que a “mimese
tem duas dimensões, preferencialidade e experiencialidade, e o mundo
ficcional não deveria apenas referir-se à nossa realidade mas
também ser experienciada como real. Em segundo lugar, as nossas
mentes parecem ser bem capazes de processar qualquer coisa como sendo
apenas possível no interior de um domínio limitado, precisamente
como um mundo ficcional” (89). Tant pis para os
ainda-platónicos que insistem nos perigos da ficção, aqueles que
vêm relações causais e imediadas entre a leitura de um texto e a
vida real, como se uma ilusão total fosse possível.
Bem
pelo contrário, a ficção mostra dessa maneira a sua utilidade
mental, psicológica e até de sobrevivência. “Uma das razões
pelas quais a literatura, de acordo com esta visão, melhora a
'aptidão' é que a ficção 'abrange os sistemas emocionais
desligando os sustemas de acção' [uma citação de L. Tooby e J.
Cosmides, do crucial ensaio “The Psychological Foundations of
Culture”]. A literatura ajudaria os humanos a praticar as suas
capacidades de resolução de problemas ao provocarem inferências e
construirem o modelo mental do mundo ficcional, e a praticar as suas
capacidades empáticas de interpretação-da-mente através da
compreensão das mentes ficcionais” (94).
Um
outro ponto forte na análise da autora é, quando discute a questão
dos multiversos na banda desenhada – que não são algo de estranho
como o é ainda no campo da literatura, isto é, é um uso desviante
de uma certa norma -, a distinção emocional que ocorre quando nos
confrontamos com versões diferentes na superfície – no caso, um
Tom Strong com outro nome e uniforme, até outro corpo – ou com
escolhas na vida da personagem – Tom Stone não se apaixona por
Dhalua no seu mundo alternativo. Não só as divergências dos
acontecimentos é mais aceitável que a das emoções (103), como as
“respostas emocionais [dos leitores] são bem mais difíceis de
afectar em cenários alternativos do que o contorno básico do mundo”
(104). À guisa de conclusão, o que isto significa é que, nesta
banda desenhada, e noutras, “a metaficção”, em vez de surgir
como algo que nos afasta de uma entrada no mundo ficcional, como
ocorre na literatura e no cinema, são fenómenos de afastamento e
concentração no tecido textual, “é reconciliada com a imersão
do leitor” (110).
Finalmente,
o capítulo que aborda 100 Bullets é conduzido pelos
conceitos das “mentes ficcionais”, “caracterização” e, mais
importantemente, pelas consequências “éticas” envolvidas nessa
história. Como
se sabe, o início ou premissa central dessa série é a de colocar
personagens, aparentemente mundanas, face a uma escolha tremenda. No
entanto, “[e]m vez de apenas apresentar as opções claramente
circunscritas do exercício mental, 100 Bullets apresenta aos
leitores um opulento conjunto de pistas das mentes ficcionais das
personagens, das suas experiências, e um sentido de imediaticidade
sobre os temas maiores envolvidos” (130).
Baseando-se
nos estudos de Lakoff e Johnson (e o fundacional volume Metaphors
We Live By), a autora explora como esta série em particular
responde de formas judiciosas e particulares às metáforas
conceptuais (quadros latos a partir de uma metáfora que depois
ganham várias expressões específicas) ou “mapeamentos
metafóricos convencionais”, surgem então o conjunto seguinte: a
vida social é uma transacção económica, a vida social é um jogo,
a vida social é uma guerra (é uma convenção escrever as metáforas
conceptuais em maiúsculas, para as distinguir das expressões
metafóricas da linguagem (veja-se a nota 9, pg. 203; e a introdução
do livro citado). “Ao longo da série, os leitores podem esperar
que as metáforas conceptuais sejam representadas, e 100 Bullets
começa a empregar esta expectativa como uma estratégia para
aumentar a tensão da narrativa” (149). Quem a leu até ao fim,
sabe como rapidamente as construções no início, os “casos”,
foram encaixando numa história mais unificada, e como essas mesmas
questões iniciais aumentam de intensidade e nível.
As
análises de Kukkonen não a impedem de abordar outras dimensões,
como “a violência gratuita, o sexismo e o niilismo” das séries,
sobretudo 100 Bullets, mas esse não é o seu propósito
central em CCS. Bebendo de Contigency, Irony, and
Solidarity, de Richard
Rorty, a autor cita: “a sua ‘utopia liberal’ seria habitada por
pessoas que 'combinam compromissos com um sentido de contingência
desse mesmo compromisso'. Nenhuma das nossas escolhas morais são
baseadas em valores morais maiores e absolutos; eles são
contingentes ao nosso próprio ambiente cultural e social” (175).
Existem também várias questões que cada um dos pontos levanta, mas
teríamos de os abordar um a um e entender quais as suas limitações,
sobretudo no que diz respeito à aplicabilidade a obras que vivem na
margem da narrativa e das estruturas narrativas mais usuais.
CCS
é um livro que, acima de tudo, tem de ser lido e “aplicado”, não
apenas no sentido de o transformar numa caixa de ferramentas prontas
a utilizar, ou uma sebenta de ideias, mas antes um conjunto de
questões que nos podem guiar a ler outros textos e tentar
compreender até que ponto é que podem ser, esses mesmos
instrumentos, testados, expandidos, corrigidos ou criticados, com
outras dimensões e desafios. Em termos gerais, todavia, é nossa
impressão que um dos objectivos centrais da autora é conseguido ao
longo da sua argumentação. A da valorização da leitura como parte
integrante do desenvolvimento humano, cognitivo e imaginativo, sendo
duas faces da mesma moeda. O nosso confronto, acompanhamento e até
entrega emocional a estas personagens torna-nos seres mais ricos e
complexos. Desta forma, “as mentes ficcionais não são apenas um
elemento importante da experiência da ficção; são também uma
chave com a qual analisamos a sua dimensão ética” (176).
Como
noutras ocasiões anteriores, a autora dedicou algum tempo a
responder a uma simples entrevista, que poderão encontrar aqui.
Nota
final: agradecimentos a ambas as editoras, pelas ofertas dos livros
respectivos, e à autora pela disponibilidade.
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