Como
se compreende pelo título, este é mais um livro dedicado quase
exclusivamente a um autor, no sentido de ser ele o cerne da atenção,
o centro da criação de todo um número de textos que são passíveis
de análises sob os mais diversos focos. Ora no caso do presente
volume, que colecciona 13 ensaios (o primeiro é uma introdução
pelo editor, o que leva a imaginar que a numeração do mesmo serve
somente para evitar aquele número), o foco é um campo tão
delimitado como possível de expandir nalguns aspectos, que é o da
literatura gótica, compreendida sobretudo por uma produção inglesa
dos séculos XVII a XIX. Porém, de imediato essa noção é aberta
para englobar produções subsequentes, inclusive cruzamentos
inter-genéricos e noutros meios, como o cinema e performance, uma
vez que não é apenas a banda desenhada e Moore e colaboradores a
ser estudada. E os estudos não se limitam àqueles títulos que
surgiriam como os mais óbvios (Swamp
Thing, From
Hell, A
Disease of Language,
The League of
Extraordinary Gentlemen)
mas igualmente a produção de super-heróis, os livros
"alternativos" (A
Small Killing),
ao romance (Voice of
the Fire). O caso
de The Bojeffries
Saga (que teve
recentemente uma reedição) é de extrema curiosidade, uma vez que
é, a um só tempo, uma fabricação sobre todo um conjunto de tropos
do gótico como uma subversão cómica do mesmo. Aliás, se se
apresenta alguma definição do gótico, também há visões
suficientemente distintas para não apresentar uma ideia demasiado
empedernida. As duas dimensões mais importantes, parece-nos, têm a
ver com o gótico apontar para uma ideia de alteridade
e excesso.
De certa forma, são dimensões coincidentes, mas se a primeira se
relaciona com processos de subjectivação, a segunda prende-se com
questões de estilo, isto é, textuais, superficiais se quiserem. Pensamos que qualquer leitor/espectador atento da obra de Moore
identificará de imediato a exactidão dessas palavras para a
discutir. Se existem outros autores que poderiam ser estudados sob
este foco (Gaiman, Mignola, Gabriel Delmas, Junji Ito), é Moore que
explora este território não apenas de uma forma mais engajada
cultural e historicamente, consciente mesmo, como de forma
reinventada e, o que é mais significativo e repetido pelos autores
dos ensaios, relançando-o no palco cultural. Quer dizer, Moore não
apenas seria o "mais" góticos dos escritores de banda
desenhada como seria responsável mesmo por uma vida mais
contemporânea e viva do gótico nesta arte.
Nalguns
casos, trata-se mesmo de ensaios de literatura comparada, elegendo-se
um conceito (o "duplo", o monstro, a desrazão, etc.) que
se lê, contrastiva ou complementariamente, num título de Moore e
numa obra de literatura (Mary Shelley, Le Fanu, Walpole, Stoker,
Lovecraft, etc.). No entanto, o volume encontra-se tentativamente
organizado de maneira a estruturar dimensões diferentes de analisar
e estudar o fenómeno: consideram-se aspectos políticos, sobre os
tropos, a questão da herança e adaptação, e finalmente uma quarta
parte dedicada à "arte, magia, sexo, outro". Se algumas
das interpretações não são de forma alguma coincidentes com as
nossas - em vez de de subsumir, por exemplo, os eventos fantásticos
à "nossa" realidade consensual e, logo, votar à loucura
algumas personagesn, como Gull, lemos "no interior da ficção"
a realidade da magia que ocorre de
facto - quase todos
os ensaios apresentam argumentos elaborados e debatidos.
Estranhamente,
apesar da promessa e premissa conduzir a essa dimensão, a discussão
sobre a prática de magia de Moore não é analisada
transversalmente, nem Promethea
se torna texto central de nenhum dos ensaios. Independentemente dos
sistemas de crenças e práticas sociais dos estudiosos, uma falta de
confronto com essa dimensão - real para Moore e real nas suas obras
- é algo como uma oportunidade perdida. É o ensaio de Christopher
Murray (de resto, autor de estudos sobre o uso da banda desenhada
enquanto instrumento de propaganda política) que directamente debate
a noção de "Ideaspace" que Moore discute em vários
títulos, inclusive a League.
**
Drawing
From Life. Memory and Subjectivity in Comic Art.
Jane Tolmie, ed. (University Press of Mississippi).
Uma
vez que o género da autobiografia se parece ter consolidado nos
últimos anos como aquele mais imediatamente pronto a analisar com
todos os instrumentos académicos empregues no campo literário e dos
estudos culturais, não é surpresa alguma que seja ele a receber
maior atenção crítica e variações nas abordagens. Esta é uma
colecção de ensaios, todos eles pertinentes, mas que acabam por
focar os suspeitos do costume: Bechdel, Spiegelman, Chris Ware, e
Satrapi. Gaiman também se encontra nesta lista, mas é um estudo que
finalmente se centra nos primeiros livros que criou com Dave McKean
(Signal to Noise
sendo o texto principal), mais significativos em termos pessoais,
emocionais e próximos dos géneros centrais destes estudos do que a
obra-prima da fantasia que lhe trouxe fama internacional. Ainda
assim, há espaço para regressar a “clássicos obscuros” como
The Cage de Martin Vaughn-James (num ensaio de Jan Baetens), Lynda
Barry e a “nouvelle manga”, semi-inventada por Boilet. O foco
está previsto desde logo no título completo da obra, mas há um
foco particular, que é o da “corporização” (embodiment)
das experiências mnemónicas. A amálgama nascida dos estudos de J.
Butler, G. Whitlock, e H. Chute convergem aqui para criar um panorama
teoricamente sólido para análises textuais que se não reinventam
as próprias premissas teóricas, demonstram a pertinência do seu
papel.
Parte
do centro nevrálgico das pesquisas aqui reunidas terão a ver com o
facto de que o que informa as narrativas escolhidas não é apenas um
agenciamento da memória humana, mas a sua transformação numa
plataforma de inquirição sobre a subjectividade própria e a
negociação com o mundo ou a história. Se nalguns casos (Spiegelman
e Satrapi) há necessariamente um diálogo imediato com um tecido
colectivo, mesmo esses, e os outros, procuram auscultar as formas
como os indivíduos são afectados por situações extremas, a que
podemos chamar de traumas, com todas as suas consequências
psicológicas, emotivas mas também políticas. Tolmie, na
introdução, parte de um confronto directo das obras (e análises
textuais específicas) de Lynda Barry, One!
Hundred! Demons!,
e de Debbie Drechsler, Daddy's
Girl,
encontrando em ambas, que tratam do abuso sexual de que foram vítimas
na sua infância-adolescência, uma tensão polarizada: a escolha
pela não-visibilidade de Barry e a obscenidade directa de Dreschler.
De uma forma ou outra, “[os textos dessas artistas] sublinham
trauma recorrentes e quotidianos, traumas de desigualdade de género,
traumas que tem lugar no lar e que têm lugar a cada dia. Num certo
sentido, estes textos são sobre aquelas coisas completamente
vulgares e se há coisa completamente vulgar é a impossibilidade de
destrinçar corpo e espírito [mind], palavra e imagem, emoção e
política” (xvi).
Tolmie
compreende as diferenças entre as matérias narrativas e abordagens
plásticas dos autores abordados, mas encontra uma característica
comum em todos eles nas práticas de “auto-retrato [rendering]
e refabricação e representação da memória (xx). Ora serão essas
práticas que pautarão as questões, diversas elas mesmas e com
resultados diversos, colocadas pelos autores de cada ensaio,
procurando a forma como a “morte do autor” pode ter levado a
apagamentos críticos do corpo e contextualização emocional de quem
fala, como os afectos têm lugar através de várias estratégias
estéticas, e como a construção da subjectividade se imiscui nos
discursos colectivos da história, da política e da sociedade. São
particularmente eficientes, digamos assim, os estudos de Lopamudra
Basu e Davida Pines em torno da forma como In
the Shadow of No Towers
de Art Spiegelman e American
Widow
de Alissa Torres e Sungyoon Choi criam espaços controversos de vozes
singulares, individuais e personalizadas contrastando com os
discursos oficiais que tentam apagar precisamente as diferenças
individuais em nome de uma grande narrativa homogénea (neste caso
sobre o 11 de Setembro, mas que é teorizável noutros contextos).
Um
dos pontos mais importantes desta antologia, parece-nos, é aquele
apontado pelo estudo de Alisia Chase, num estudo comparatista da
história da arte, que se concentra em projectos autobiográficos
femininos. Para além do que a autora tem a dizer sobre os textos
particulares (Kelso, Doucet, Gloeckner, entre outras), é o seu
contraponto com a esfera das artes visuais e performativas
norte-americanas, na sua passagem do modernismo para o pós-modernismo
(décadas de 1970-1980) que sublinha as “crises específicas”
desta arte. Ao passo que, exemplos de Chase, a performance “Interior
Scroll” de Caroleee Schneeman, de 1975, seria um passo decisivo e
chocante contra o discurso dominante da arte monumental e minimal dos
grandes artistas (masculinos) da época (Judd, Stella, Motherwell), a
emergência do campo autobiográfico na banda desenhada, mesmo que
tenha sido desenvolvido mais tardiamente do que outras esferas
artísticas, aceitava desde logo o pessoal, o subjectivo, o emocional
e até mesmo o irresolvido como elementos próprios, e não alheios,
àquilo que poderia fazer esses mesmos textos constituir-se enquanto
artísticos. Bem diverso na negociação lenta e até dolorosa que
teve de ocorrer no campo das artes galerísticas e museográficas.
Quer dizer, e para citar o texto lido por Schneeman na performance,
eram precisamente “a tralha pessoal, a persistência dos
sentimentos e a indulgência dos diários” que, em vez de serem um
entrave ao crescimento artístico da banda desenhada, constituíam a
sua força maior. E é isso o que é analisado por Chase.
**
Para
quem tem acompanhado a produção de artigos, ensaios e estudos de
Groensteen, não é de surpreender que o seu contínuo foco na obra e
recepção de Rodolphe Töpffer viesse a ser alvo de um volume. Uma
vez que o autor, tal como muitos dos outros ensaístas europeus, vão
escrevendo pequenas abordagens tópicas para as mais variadas
publicações e conferências, o corolário de os reunir e dar-lhes
alguma coesão não se faz esperar. Assim sendo, poder-se-ia dizer
que não haveria muito de novo neste volume já que em grande parte
este livro reúne aqueles escritos que já haviam estado presentes em
Töpffer, l'invention de la bande dessinée, co-escrito com
Benoît Peeters (1994), com algumas excepções, quer em termos de
redução – as partes de Peeters estarão a ser refeitas num volume
deste mesmo autor – quer em termos de acrescento – os ensaios
analíticos.
Este
volume tem um papel muito claro, que é o de precisamente compreender
o que é que se alterou na recepção da obra de Töpffer nos últimos
20 anos. Para além do cartaz de Angoulême de 2012, assinado por
Spiegelman, e que é transformado em ponto de partida para
Groensteen, em que la boucle est bouclée com a obra de
Töpffer acessível via tablet, a presença do autor genovês saiu
dos dicionários literários para um perfil mais público do seu
papel e importância no desenvolvimento de uma arte moderna que viria
a ser conhecida por banda desenhada. Afinal de contas, as
reedições, as exposições, as criações de mais prémios e obras
de referência, o próprio desenvolvimento exponencial dos estudos de
banda desenhada, sobretudo a sua dimensão verdadeiramente histórica
– isto é, para além do mero levantamento arquivístico,
necessário, sem dúvida, mas que nada tem a ver com o trabalho
redentor e integrador da história – tem feito com que a figura de
Töpffer se torne uma referência incontornável na mesma medida que
outras figuras levantadas enquanto, não apenas “canónicas”, mas
sobretudo nevrálgicas (Outcault, Pinheiro, Hergé, Spiegelman,
etc.). Os dois livros monumentais preparados por David Kunzle (os
ensaios e a obra de Töpffer) não são alheios a esse processo,
sobretudo no mundo anglófono.
O
livro está dividido em cinco partes. A primeira parte centra-se na
“ruptura simbólica” que a obra de Töpffer provocou na história
da narração por imagens. Se não é totalmente impossível nutrir
um interesse transhistórico por todo e qualquer tipo de produção
de ciclos, séries ou sequências de imagens que possam construir um
tecido narrativo na história humana (das pinturas rupestres a murais
a azulejaria cristã às estampas de Hogarth), uma mais atenta
preocupação histórica terá de compreender as alterações
profundas em termos sociais, económicos, culturais e até mesmo
questões de circulação mediática para que progressivamente os
“álbuns em estampas” contribuíram. Desta forma, Groensteen cria
um percurso desde a “hipótese Lascaux”, passando por ciclos
medievais (as Cantigas de Santa Maria são abordadas), a
caricatura inglesa do século XVIII, a estamparia popular europeia, a
obra de Hogarth, até chegar mesmo à obra do pai de Rodolphe, Adam
Töpffer, e tentar compreender o que é que o “pai da banda
desenhada” trouxe de fundamentalmente diferente e produtivo na
linguagem futura.
A
segunda parte, relativamente curta, é composta por análises
textuais, questões técnicas e de definição desta nova forma de
arte, não apenas concentrando-se na obra de Töpffer, mas procurando
linhas de associação com outros autores e na fortuna da circulação
dos livros. A terceira parte aborda de uma forma mais específica a
“poética töpfferiana”, desde a legibilidade do traço a
estratégias de mise en page, da criação de personagens à
sua formação psicológica, e depois progressivamente
concentrando-se na narratologia e comicidade do autor.
A
quarta parte centra-se sobre os seus herdeiros, quer imediatos e hoje
talvez algo obscuros (alguns anónimos, outros usando pseudónimos
inidentificáveis, e Gabriel Liquier, Henri Hébert, A. Meylan,
etc.), quer aqueles que contribuíram de forma decisiva à emergência
popular desta forma, como Cham, Gustave Doré, Nadar, Christophe e
outros, quer ainda os mais recentes, encontrando-se aqui um
importante arco compreensivo, que tanto abarcará autores que ainda
cultivam um traço rápido, de esquisso mas de observação social
aguda, como o caso de Wolinski, como abordagens mais “intelectuais”
e “frias”, estando Chris Ware num lugar de destaque. Este é
talvez o grande coração da obra, e que demonstra o modo como a obra
de Töpffer, não sendo totalmente isolada na “invenção” da
banda desenhada, merece um lugar de destaque crucial, por ter sido,
digamos, a bateria que inflectiu todos os instrumentos que viriam a
tornar-se, não essenciais, mas produtivos desta nova
forma de arte.
Tal
como no volume de 1994, este também reúne os escritos teóricos de
Töpffer, que perfazem a quinta parte do livro, nomeadamente o
“Ensaio sobre fisiognomia” (apresentando em fac-simile), o
“Reflexões a propósito de um programa”, verdadeiro manifesto de
uma nova forma de arte, a correspondência com Cham, entre outras
peças.
Nota
final: agradecimentos a todas as editoras, pelas ofertas dos livros
respectivos. Imagens colhidas da internet.
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