São muitos os pensadores do político que apontam para o modo
como os poderes instituídos, ou a hegemonia, exerce esse seu poder de forma
insidiosa e praticamente absoluta por legislar igualmente sobre o possível
espaço de dissensão dos seus próprios discursos. Isto é, sendo eles mesmos que
criam as regras de quem pode falar, quando pode falar, como pode falar e sob
que condições, não é de surpreender que todo e qualquer discurso que esteja
fora desse campo de possibilidade seja visto como “não-discurso”. E há várias
maneiras de o entender, apelidando-o de “radical”, “mal-educado”, “não conforme
as regras da discussão democrática”, “insatisfeitos permanentes”, “desinteressados
em contribuir de forma positiva ou construtiva”, “bota-abaixo”, e por aí fora. Mas
se se apenas podem discutir os discursos principais e legais através das suas
próprias regras, como se esperará alguma vez que possa haver um discurso
verdadeiramente anti-hegemónico? (Mais)
Contemporaneamente, talvez seja Jacques Ranciére quem
explorou esta questão de uma forma clara e produtiva em termos da filosofia do
político, quando distingue a “política propriamente dita” do que ele chama de “polícia”,
a qual ele define, “por princípio, uma ordem dos corpos que define a
distribuição entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que
fazem com que a esses corpos sejam indicados exclusivamente um lugar e a um
papel específicos. É uma ordem do visível e do dizível que faz com que certa
actividade seja visível e outra não, que certa palavra seja entendida como
discurso e outra como ruído” (La mésentente. Politique
et Philosophie). A polícia é portanto o exercício da política num
sentido estrito e institucionalizado, com que a maioria dos cidadãos acaba por
se sentir insatisfeito e até mesmo apático, o que resulta no esboroamente
progressivo da democracia parlamentar e representativa, ao passo que a política
propriamente dita é “o conflito sobre a existência de uma cena comum, sobre a
existência e a qualidade daqueles que se fazem presentes” (esta tradução pode
estar algo mal-amanhada). Por outras palavras, a política propriamente dita é a
conquista mesmo de um (novo?) espaço de discursividade política, a da
emergência de uma nova subjectividade política, a auto-criação de um sujeito
político.
Sobre os 4 primeiros números da Buraco, já havíamos falado, e remetemos a essas considerações para
compreender em que medida é que um projecto que aparentemente tinha surgido
como uma quase concentrada vontade de “voltar à banda desenhada” de um grupo de
artistas do Porto e convidados, acabou por se associar a movimentos de
contornos explícitos de acção política propriamente dita, que foram alargando o
espaço possível da voz e acção naquela cidade. Se todo e qualquer gesto
criativo é sempre desde logo político, existem alguns porém que o são de forma
mais explícita porque engajados em pormenores ou referências claras. Esse é o
caso de Buraco.
Neste último projecto, a qualidade mutante em termos formais
continua. Este número consiste tão-somente num “mix and match book”, em que
várias imagens de rostos se encontram divididos em três lamelas recombináveis,
criando-se uma multiplicidade de novos rostos recombináveis. A singularidade deste
livro é que os rostos que compõem o livro são colhidos entre toda uma série de
personalidades públicas portuguesas (um caso de um estrangeiro, mas até pelas suas aquisições, cidadão certamente honorário),
sobretudo de agentes políticos do dito “arco da governação”, mas passando ainda
por agentes financeiros, desportistas, apresentadores de televisão e outras
personalidades famosas. Além disso, o colectivo resolveu colocar pelo meio
rostos de alguns animais, do porco à raposa, passando pelo tubarão e o morcego.
Cada lamela, do lado do verso, apresenta uma pequeníssima biografia, uma
descrição e uma citação da personalidade.
O que é que a combinação dos rostos permite dizer? Uma ideia
feita: a de que são todos “o mesmo”, provindo de um mesmo fundo, quiçá
lodacento, informe, pouco singularizado, e que não obstante poderem ocupar vários
espectros políticos e de interesses corporativos específicos, acabam por “remar
na mesma direcção”. Será correcta essa visão, essa perspectiva? Não, de forma
alguma. Mesmo que se queira entender que a responsabilização primeira do estado
actual do país – financeira, política, cultural e estruturalmente – é atribuível
de facto a quem exerceu funções governativas e efectivas, ou seja os partidos “do
arco da governação”, existirá seguramente uma quota-parte de bloqueios, defesos
de interesses, entraves e pressões que estariam nas mãos de outros poderes,
digamos, de uma “esquerda alargada”, que não se encontra representada nestas personalidades.
Mas o colectivo do Buraco não é uma
entidade de quem se possa exigir algum tipo de equilíbrio “objectivo”, de “consensualidade”
ou mesmo de “idoneidade política”. Isso seria esperar que fizessem precisamente
o jogo que os discursos oficiais exigem para que “possam falar”. Bem pelo contrário,
este é um fortíssimo e subjectivo “j’accuse” a que todo e qualquer cidadão tem direito,
quanto mais numa situação em que se é confrontado com espaços cada vez mais
apertados de possibilidade de discurso. Basta ver que a praça pública apenas
admite os discursos de sempre, das pessoas de sempre, com os instrumentos de
sempre, numa ilusão de “democratização e variedade de opinião”.
São os passos progressivos do colonialismo dos instrumentos
demoliberais sobre o nosso tempo livre que vão fundando, cada vez mais, a
sociedade de controlo preconizada por Foucault e Deleuze. Que resistência é possível?
A fuga do jogo. O não-discurso lúdico. O desrespeito pela regra através da “gazeta”
e da galhofa.
Num pequeno mas incisivo texto em Como se faz um povo, Silvina Rodrigues Lopes faz duras críticas a
uma certa forma de filosofar sobre o “espírito português” a partir de exemplos
literários e quase nefelibatas, em vez de perseguir experiências de um
quotidiano mais sofrido, ao rés-do-chão. Discutindo sobretudo José Gil, Lopes
escreve o seguinte: “Claro que os governos respondem às reivindicações que não
satisfazem desvalorizando a força que as sustenta: essa desvalorização oscila
entre o considerá-las subversivas e considerá-las inexistentes ou quase. Mas
isso não implica a sua conversão em ‘não-acção’, em ‘brincadeira de crianças’,
em ‘acção não-performativa’ [tudo termos de J. Gil]. Chama-se propaganda,
manipulação da informação, etc.” (“Portugal sem destino”). Buraco 6 é seguramente um desses discursos estranhos de
reivindicação – mas de quê, com estas “brincadeiras” de trocas de rostos? – que
cairá na sua própria inexistência enquanto discurso, pequena palermice ou inépcia
rapidamente esquecida – será que daqui a dez anos nos recordaremos de algumas
destas personalidades, “moscas de um dia”? A “simples” colecção de rostos,
mesmo que eles se troquem, acabam por tornar as acusações possíveis –
corrupção, prepotência política, representação de poderes alheios à maioria da
população, interesses corporativos, distracção, e mesmo estupidez – numa espécie
de papa informe, enfraquecendo os argumentos a utilizar. Mais, o cruzamento com
os animais, alguns dos quais com leituras simbólicas clássicas, pode ser visto
como escolha óbvia, até mesmo um cliché, e potencialmente ofensiva e grosseira,
tirando mais um furo nas tais “regras do discurso”. No entanto, sobre este
último ponto, arriscar-nos-íamos a colocar-nos ao lado de Luís Cília que, na
sua canção “Ofensa à lagosta”, que ao comparar a besta humana a esse crustáceo,
não pretende ofender o animal ao coloca-lo lado a lado a criatura tão reles.
Presumimos que o mesmo pedido de desculpas possa ser feito em relação à fauna
apresentada neste livro, que não tem quaisquer responsabilidades pela “classe”
(já o havíamos dito que esta é uma palavra despropositada neste caso em
particular) política…
Essa “papa” ainda se torna mais significativa pela promessa
que a capa faz, mas não explora no seu interior, por misturar objectos heteróclitos
que parecem fugir à regra das escolha do interior: a coroa da Virgem Santa, os
olhos de um famoso palhaço (literal, não figurativo), e a barba de um rosto de
pedra (uma estátua, Adamastor?). Até que ponto seria possível estudar o informe
dessa “classe” de sujeitos no interior pelo vastíssimo território de
referências culturais portuguesas? Aumentaria ou diminuiria o humor? De resto,
pensamos ter já dito esta ideia numa ocasião anterior, a de que a grande justificação
pela qual o humor político é pobre em Portugal (existe, afinal, mais fortuna em
fazer anúncios publicitários ou abandonar-se em jocosidades medíocres) se deve
particularmente ao facto de que os próprios políticos se prestam às suas
próprias caricaturas. Talvez seja essa a razão pela qual esta Buraco não faz
qualquer gesto de humor: não existem intervenções textuais que não os “factos”,
não existe manipulação das imagens (com excepção do seu corte), não existe
nenhuma contextualização específica que convide a uma interpretação específica.
É da responsabilidade (manual!) do leitor entender que significados emergirão
da sua manipulação.
Existiriam vários comentários a fazer em relação à forma
como cada uma destas personalidades em particular, mas individualizá-las era,
no fundo, dar-lhes uma importância desmedida ao papel que a longo prazo terão
em relação ao país e à nossa cultura (que não é uma e uma, mas múltipla e
sempre transformando-se). Gastar tempo a dar-lhes importância é, lá está, aceitar
que sejam elas mesmas a impor as regras do jogo. A melhor subversão a isso é,
então, jogar com o livro, apenas, despreocupadamente, como um brinquedo, com
rostos divertidos e algo tolos.
2 comentários:
Olá Pedro,
Assim à primeira vista este é realmente um objecto heteróclito à BD: inclina-se para lados opostos à mesma, quer pelos aspectos mais óbvios, quer, talvez, pelos mais laterais àquilo que eventualmente interessará à BD que habitualmente costume encontrar no teu blogue, não obviamente, por critérios de classificação, mas pelo caracter menos subtil (também a mim me falta aqui subtileza :-) desta obra. Livros como este, contrariamente ao que se propõem, repetem o diálogo com as mesmas personagens com as quais convivemos no dia-a-dia através dos mass media e que perpetuam a moldagem/orientação da opinião publica pela produção ideológica de um tecido social virtual que estabelece entre as classes trabalhadoras uma aceitação das suas condições e do seu papel na sociedade. Este tipo de livros, na questão da escolha e manipulação dos personagens concretos, não difere, na minha opinião, dos movimentos opostos de propaganda, pois parece-me que, desde logo, travam ex ante quaisquer intenções de mera discussão a que se propõem, iludindo a profunda contradição entre a difusão e a real partilha entre as populações de uma correcta representatividade, em amplitude e identificação, dos seus líderes políticos, empresariais e espirituais e dos seus valores (morais) representativos. Mais que escolher os mesmos responsáveis à esquerda e à direita, discutir a política com arte não será questionar a presença recorrente de determinados "tribunos" e a gritante ausência de outros? Serão os politicos realmente importantes? Aparentemente não conseguimos fugir a essa armadilha, recordo que quando foi feita uma sondagem perguntando à opinião pública portuguesa quais eram as personalidades mais influentes nos 40 anos do 25 de Abril, à excepção do CR7, as respostas só encontraram nomes de politicos. Nem um escritor, um cantor, um empresário? Está o diálogo assim tão condicionado que quando assim dialogamos falamos da arte?
Obrigado e Abraços,
José
Caro José,
Pois é isso mesmo o que encontro muitas vezes nos gestos mais interessantes: é de certa forma esquecer estas personagens e avançar para outras realidades que mais interessam. Ao entender uma realidade em que cada vez mais as pessoas pautam as suas opiniões, inclusive político-partidárias, através de "notícias da hora" no Facebook, ou afunilam o seu conhecimento sobre a cultura artística e literária pelo "tempo de antena" nos meios de comunicação mais corriqueiros, e a redução do património nacional - não numa óptica "nacionalista" ou "patriótica" mas "identitária" - ao apoio à selecção e a uma meia-dúzia de cromos, sinto cada vez mais uma espécie de soberba, quase inevitável. De facto, que importa o Pedro Costa, o Emanuel Nunes, o M.S. Lourenço, se temos o Rolando para todo o serviço? E como o esforço intelectual é substituído por "bater punho", não nos admiremos, de facto...
Abraços,
Pedro
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