Não deixa de ser
sintomático que as obras que acabam por ter um explícito valor de inscrição político da Chili Com Carne encontrem
o seu lugar privilegiado na colecção Low Cost (povoada anteriormente por Boring Europa e Kassumai). Dizemo-lo dessa forma sublinhada, uma vez que
acreditando que todo e qualquer gesto artístico e expressivo tem sempre uma
leitura política, esta sua dimensão pode ser feita de forma velada,
ingenuamente inócua, ou de forma confrontacional, como pensamos poder ler este
gesto editorial, mais do que as histórias que o compõem. O cerne da colecção está
relacionado com a ideia de viagem, e até com o género líquido e múltiplo da “banda
desenhada de viagem”, que mistura a escrita diarística, a observação
etnológica, o relatório de observações ora superficiais ora mais profundas, a interrogação
do si e do outro, até a um ponto em que menos interessa talvez o espaço
visitado do que a oportunidade de que essa deslocação permite para uma
inquirição sobre a identidade e as suas implicações políticas. (Mais)
Esta antologia reúne relatos de dez artistas, dizendo
respeito a episódios das suas vidas passados em lugares que não os seus
“berços” respectivos, quer estes sejam Portugal ou não (Christina Casnellie é
norte-americana, Amanda Baeza é chilena-portuguesa, David Campos nasceu em
França), o que abre desde logo as tais questões de identidade “nacional”. Até
que ponto é que podemos, mesmo assim, encontrar neste grupo tão diverso um
retrato diversificado do “ser português” (o qual pode admitir, como não?, pessoas
de outras nacionalidades)? Muitas das experiências destes autores são
relativamente simples e parte de um grão de privilégio cultural. Afinal de
contas, a esmagadora maioria destas pessoas tem logo à partida uma actividade –
precisamente aquela que lhes permite se expressarem, de uma forma mais ou menos
original, mais ou menos criativa, mais ou menos dominante, através desta
disciplina artística da banda desenhada – que os afasta de uma vivência mais
socialmente atreita à experiência clássica do “emigrante”. Passar uns meses em residência
artística nos anos 2010s não é o mesmo que ser passado para Espanha e depois
para a França dos bidonville, fazer
trabalho voluntário numa ONG num país africano não é o mesmo que ir bulir para
as ex-colónias nos anos 1960. A cada experiência o seu peso e o seu papel na
sociedade a que pertencem, sem moralidades ou hierarquias de valor, mas sem
esquecer os “confortos” dos nossos tempos (desconhecemos que relação existirá,
se é que existe, com o romance de J. Franzen).
Alguns partem em trabalho profissional, outros em trabalho
académico, outros para estudar, outras talvez para uma breve visita. Não deixam
todos eles, porém, de participar numa esfera de actividade a que se pode chamar
“precária”, que se pode parecer uma promessa de mobilidade invejável,
adaptabilidade contemporânea e flexibilidade inteligente – uma das razões pelas
quais se sublinha a “independência” dos “trabalhadores independentes” – é na
outra face da moeda, se moeda houver,
profundamente desconcertante, desconfiada, descontínua e desconfortável. A
visão da cultura como excedentária ou
mesmo supérflua – e a da banda desenhada
ainda mais, de uma forma exacerbada, como se nem merecesse esse papel -, não é
mais do que uma das criações de dissimetria do capitalismo moderno, que olha
para algumas funções sociais como mais importantes que outras, numa espécie de
pirâmide de utilidades e mesmidade que apenas confirma a prepotência dos
instrumentos que mesuram. Essa decisão de nomenclaturas e subsequentes inscrições
jurídicas e fiscais não esconde a função disciplinadora e de construção de
subjectividade que segue. Mesmo negando-a ou diminuindo o seu valor, essa
atitude demonstra a total instrumentalização da cultura (pense-se na forma como
se tem vindo a construir a imagem de Joana Vasconcelos enquanto “artista do
regime” em detrimento do espaço de divulgação ou discussão de sejam quais forem
outros praticantes das artes). Uma forma de resistência desse papel é
precisamente, e faláramos sobre isto a propósito da Buraco, associando a arte a discussões onde as dimensões políticas
(propriamente ditas) estão patentes.
E curiosamente, parte dessa natureza de sensibilidade à
precariedade global moderna torna todos estes observadores particularmente
atentos precisamente às outras precariedades com que se cruzam, sejam elas
financeiras, sociais ou mesmo históricas (sobretudo no caso de Tiago Baptista).
São esses os diálogos e trânsitos explorados e devolvidos ao ponto de partida.
Mas são apenas queixumes que se apresentam aqui?
Tratar-se-ão de observações de uma espécie de antropologia de trazer por casa
(com a excepção de Daniel Lopes, antropólogo de formação académica e profissão)?
Meras impressões que todos temos quando nos vemos a habitar fora do ninho? Os
exercícios quotidianos das descobertas das diferenças e, ao mesmo tempo afinal,
dos traços identitários que tinham sido até esse momento invisíveis para nós
mesmos? É mesmo verdade que só descobrimos sermos (conforme o caso) portugueses
quando estamos no estrangeiro, europeus quando fora da Europa, ocidentais
quando noutros blocos, “brancos” quando rodeados de outras cores, “a-normais”
quando as nossas normas se diluem e evaporam?
Num texto que já havíamos citado do crítico de cinema Serge
Daney (“La fonction critique”), este afirmara que deveremos estar atentos para que a fortíssima,
decalcada presença do autor não deve ofuscar o facto de que por trás dele ou
dela “e da sua rica subjectividade [“excesso de subjectividade”, acrescenta à
frente] existe sempre, em última análise, uma classe que fala”. Sem denegrir de
forma alguma os artistas aqui presentes – alguns dos quais revestindo-se de
formas visuais/estruturais de grande conquista, como Amanda Baeza, Tiago
Baptista, José Smith Vargas, Francisco Sousa Lobo, outros ganhando mais força
na concentração narrativa, como David Campos, Casnellie, outros ainda pela
forma como criam estruturas quase de cristal em que as observações se desdobram
em associações cultural e politicamente intensas, como Daniel Lopes – é mais
interessante e significativo o gesto conjunto que as histórias individuais em
si mesmas (e presumimos que este projecto possa ainda ser continuado com outros
artistas). Não saberíamos identificar que tipo de “classe” seria esta, de
acordo com Daney, mas sente-se uma espécie de voz comunitária, não homogénea,
mas que partilha uma direcção.
Ainda Daney, ao discutir a
possibilidade de interpretar um dado filme de forma política, uma “leitura
dupla” (no seu caso, lendo-se a época histórica da representação do texto e a
época histórica da sua produção), uma leitura dupla que é não apenas inevitável
mas igualmente necessária, permite uma maneira – talvez porque dessa forma respondendo
à ideologia patente da sua época-de-produção - , de distinguir um artista reaccionário
de um progressivo e de um revolucionário. Para Daney, o primeiro nega essa
leitura dupla (“não há nada político no meu texto”, diria o artista), o segundo
aproveita-a somente, e o terceiro assume a sua total responsabilidade. Os
autores destas histórias a vermelho, nada inocente, seguramente, poderão usar
diferentes intensidades dessa leitura dupla. Podemos lê-las como pequenos
apontamentos autobiográficos ou impressões do “lá fora”, mas perder-se-ia parte
do seu poder colectivo. Mas é na sua conjunção, e no seu gesto editorial total,
que percebemos a responsabilidade assumida na identificação do desconforto
apontado.
3 comentários:
Nevermind, acabei de ler o "Buraco" anterior...
Olá,
Ando a tentar escrever-te, mas todos os teus endereços têm falhado, os emails voltam atrás.
Escreve-me para o email uma mensagem pessoal para que possa responder.
Em todo o caso, obrigado por tentares assinalar as distracções (neste caso, acho eu, inexistente), é sempre bem-vindo!
Pedro
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