O que
acontece quando cruzamos o que aparentemente é um género
convencional como a ficção científica, com uma intriga que usa e
abusa de explicações e momentos de exposição, um número
relativamente pequeno de personagens de maneira a criar uma estrutura
concentrada, e um estilo visual que parece todo devedor das mais
livres criações gráficas não-naturalistas? Não temos resposta
precisa, a não ser apresentar este livro. (Mais)
A
personagem principal deste livro, o seu “herói”, chama-se Mr.
Earth, e pertence a um “Concílio dos Senhores”, onde partilha
funções com os Mister Sea, Magma e Sky. Nesse sentido, parecem ser
assim uma espécie de deuses, ou Elementais, como ocorre em Swamp
Thing ou no episódio “Evergreen” de Adventure Time:
personagens que representam forças elementares de um mundo, e que o
observam a partir de uma posição de observadores benevolentes (à
la Vigia, da Marvel). Mas Mr. Earth gosta de passear não apenas pela
superfície do planeta como conhecer pessoalmente os seus povos e
culturas, falando com eles e, até certo ponto, guiando-os em prol de
uma comunicação inter-cutlrual que seja benéfica para todos. Para
essas travessias, ela usa o que chama de “Distance Mover”,
basicamente uma nave voadora com uma tecnologia muito estranha, que
recorda aquele ditame de Arthur C. Clarke de que uma tecnologia
suficientemente avançada parecerá magia. Apesar de serem dadas
algumas explicações “científicas”, é tudo tão fantástico
que faz aproximar o livro também da mais desabrida fantasia.
Apenas
acabamos por conhecer dois ou três povos, um deles mais “primitivo”,
de onde vem o seu companheiro nesta viagem, Mendel, outro mais
“avançado e cosmopolita” e, finalmente, uma nova cultura que
parece ameaçar o equilíbrio do planeta (chamada de “Ooze”), uma
vez que parece absorver tudo o que tocam. Todos e cada um destes
ingredientes narrativos parecem ser devedores, e até surripiados, a
todo um conjunto de referências precisas do mundo alargado da banda
desenhada mainstream (super-heróis e ficção científica).
Por
outro lado, há uma claríssima dimensão alegórica em uso
permanente no livro, já que Mendel, sendo um aspirante a artista de
uma civilização “menor”, procura ter acesso aos centros de
produção, para apenas ser visto com soberba por esse centro. É
possível ler nessa linha alguma espécie de comentário de Kyle face
ao mundo da arte? Será até mesmo autobiográfico? Mas não é
apenas aí que a alegoria funcionará, já a “vinha” pela qual os
“avançados” comunicam é uma espécie de internet que os absorve
em demasia, tal qual como no nosso mundo. E há outros pormenores
igualmente.
Porém,
quer o aspecto dos clichés quer o da alegoria são transtornados na
sua “naturalidade” por serem veiculados por esta abordagem tão
ultra-estilizada de Patrick Kyle. O autor canadiano é um dos
fundadores da Wowee Zonk, publicação colectiva que
mencionámos brevemente quando se discutiu o trabalho de Deforge,
outro autor costumeiro da Koyama. Aliás, os autores desse pequeno
selo alternativo pauta-se exactamente nessa família de autores
contemporâneos que criam banda desenhada vindo de um mundo muito
informado pela cultura popular de uma maneira descontraída, e onde
as dicotomias comercial-alternativo até nem sequer são muito
importantes, mas que se descartam totalmente das roupagens
naturalistas, focadas na figura humana anatómica, cores ilusórias e
efeitos de realismo, mas antes por algo que parece viver num total
prazer da geometrização, cores contrastantes, composições livres.
Enfim, um jogo gráfico totalmente absorto nessa mesma dimensão de
papel, e não na sua tentativa de espelhar a realidade. Une-se assim
a outros autores de uma geração imediatamente anteriores, como Marc
Bell ou Ron René Jr. [ou toda aquela constelação de autores que mencionámos a propósito dos "art-comics"]
Já
nos tínhamos deparado com outra publicação do autor, ainda que não
no Lerbd. Structures, do que nos foi dado a entender,
tratavam-se de uma colecção de desenhos soltos, como diz o título
de “estruturas” nas quais o autor jogava estranhas combinações
entre formas abstractas em silhuetas, negras e densas, com trabalhos
de linhas, por vezes em cores diferentes. Se Kyle tem outros
trabalhos que parecem mais convencionais, essa abordagem
abstracizante parece ter-se cruzado com personagens, narrativa,
causalidade em Distance Mover, para criar este objecto de uma
natureza híbrida.
Nenhuma
das páginas se apresenta com algum tipo de composição ortogonal.
Não existem vinhetas nem quaisquer outras estratégias que ajudem a
compreender a divisão das acções e multiplicação gráfica das
personagens a não ser aquelas informações que apenas a sua leitura
permitem. Mas ainda assim os protocolos de leitura, como os apelidara
Renaud Chavanne, mantêm-se de formas bastante claras e legíveis,
senão mesmo regulares. Na verdade, não há qualquer estranheza.
Se
nos permitem uma breve comparação pouco elegante, é o mesmo que
sucede na leitura dos romances de José Saramago, em que a sua opção,
relativamente simples, de abdicar de toda a pontuação que não o
ponto e a vírgula, apenas cria uma pátina breve de obstaculização.
No momento em que se penetra esse filtro, tudo o resto é fluido e
convergente no propósito narrativo. O mesmo ocorre com Distance
Mover. Um rápido folheamento do livro poderá dar a impressão
de que estaríamos fora uma narrativa demasiado fragmentada,
construída com metalepses irresolúveis, blocos de sensação que
apenas uma distante relação coalesceria num sentido, mas isso não
é de todo o caso. Podemos dizer mesmo que a história é “normal”,
segundo todos os trâmites expectáveis da narratologia mais
“natural”.
Originalmente,
a saga de Mr. Earth e Mendel foi publicada em 12 mini-comics,
sempre impresso a duas cores (diferentes de número para número), e
com capas lindíssimas. A sua compilação em um só volume leva a
que haja uma obrigatória escolha por apenas duas cores perenes, dois
tons de azul, um cinzento-prateado e um cinzento-dourado (tons muito
subtis), quase sempre oscilando entre desenhos a mancha e desenhos a
linha, havendo ainda alguns momentos em que se criam efeitos de trama
e textura, em separadores e oscilações na intriga. Há um momento
em que o “distance mover” entra em condição crítica e se usa
um efeito de movimento inesperado. E há uma outra ou outra página
em que parece que a cor é mais “puxada” ou intensa, mas pode
tratar-se apenas de uma ilusão de impressão. Seja como for, estes
usos não procuram seguir nenhuma regra semiótica em particular. As
personagens podem oscilar entre essas cores numa mesma página (sem
que isso signifique apenas um apoio à decisão da ordem da leitura),
ou mantê-las durante páginas.
Em
termos de imaginário, Distance
Mover
parece estar próximo de um Les
derniers jours d'un immortel,
de F. Vehlmann e Gwen de Bonneval, o Prophet
de B. Graham et al., ou trabalho conjunto de João Machado e AndréPereira, ou até o recente Supreme:
Blue Rose
de Warren Ellis e Tula Lotay. Quer dizer, o enquadramento da ficção
científica serve para criar atmosferas tão distantes que o
maravilhoso ganha um papel proeminente, e é precisamente a
experiência da estranheza que importa explorar, o que não significa
que isso não tenha repercussões na função alegórica que toda a
ficção científica tem enquanto reflectora do nosso tempo,
sociedade e relação com a tecnologia e ontologia humana.
O
resultado da leitura de Distance
Mover
é então um misto de frisson
em ler uma intriga quase policial e super-heróica de alguma leveza,
com pequenos apontamentos muito contundentes em relação à
realidade, mas ao mesmo tempo sublinha-se uma possibilidade,
curiosíssima, de explorar formas artísticas bem distintas de o
expressar.
8 comentários:
Olá Pedro,
Lendo a tua entrada e olhando assim de repente para as vinhetas, não pude evitar mudar o título deste livro para Distance Madness.
Desde logo, pela estruturação da narrativa como a apresentas e pelo recurso a um conjunto alargado de referências à cultura pop, só em aparência contraditoriamente utilizados neste tipo de registos "alternativo", coisa para a qual já me tinhas "educado" :-) na tua última entrada para o DeForge.
Não tendo lido esta obra, é claro que só por intuição faço esta aproximação ao Gary Panter, provavelmente desl(f)ocada. No entanto, socorrendo-me do ensaio do John Carlin ao Cola Madness, a grande descoberta que encontramos neste tipo de abordagens não será outra senão a de iluminar os símbolos e rituais da nossa ancestralidade e a forma como os distorcemos na modernidade e a dificuldade em combinar a perenidade dos mesmos ao nosso desregramento ontológico? Numa interpretação/tradução livre, não servem estas ficções científicas para evidenciar "não daquilo que alcançámos, mas do que não soubemos aproveitar"?
Como sempre, muito obrigado pelo teu blogue, prolífico e sempre brilhante.
Aquele Abraço,
José
Olá, José.
Recordar o Gary Panter aqui faz todo o sentido, de facto, uma vez que temos aí uma espécie de figura tutelar dos "art-comics". Quanto a querer ver nestas abordagens gráficas "símbolos e rituais ancestrais" parece-me algo vago e perigoso se não houver um enquadramento cuidadoso, caso contrário, reduzimos os símbolos a objectos "universais" totalmente descontextualizados das suas culturas e pensamos que, por hipótese no seu exemplo mais significativo, a suástica significa o mesmo na Creta antiga, no actual Budismo na Ásia oriental, no tecido cultural dos Navajo e para os neo-Nazis. Ainda ontem revi um filme em que numa caverna na América do Sul, num pseudo-ritual xamânico, se via um Yin-Yang pintado na parede.
Dito isto, não deixa de se poder ver nesta espécie de imediaticidade das marcas destes autores (Kyle, Panter) um tipo de rapidez desejada para "prender" rapidamente intuições, sem dúvida. Nesse sentido, são sim uma "história do que poderia ter sido". Mas não poderíamos pensar também que é uma "história que é"? Afinal, estamos a lê-las, não?
Pedro
Olá Pedro, mais esta vez :-).
Realmente, tens razão, referir aqui o Panter foi como relacionar uma obra de um poeta português contemporâneo e a influência do Fernando Pessoa no seu trabalho :-DDD.
Talvez não tenha sido muito claro no meu comentário ou talvez não esteja a atingir o alcance do teu, mas ainda assim parece-me que concordamos que, pelo menos graficamente, existem símbolos que atravessam as culturas e que depois, exactamente como tu dizes, assumem contornos próprios de cada sociedade, e que, quem sabe por tentativa e erro, vão sobrevivendo através do que se calhar estava a tentar colar a um desregrado darwinismo ontológico, que, percebo, é uma parte perigosa deste tipo de lógicas, mas que podemos discutir, desde que saibamos à partida que ao tentarmos ir por esse caminho poderemos estar completamente errados, o que eu, sem medos, mas com alguma vergonha, assumo.
Achei curiosa a tua perplexidade relativamente ao filme que viste. Referes um símbolo que terá a sua origem há quase três mil anos atrás. Talvez a presença desse símbolo nesse filme e da pesquisa que terá sido ou não feita pelo seu argumentista não combine com a explicação aqui pretendida, mas é muito comum defender uma presença ancestral dos chineses na américa nativa. Depois o que cada um faz com os símbolos de que se apropria... e assim as cruzes se vão reproduzindo, mas não repetindo. No fim de contas, perdoa a piada mas nunca resisto, saturnália é quando um homem quiser.
Outro Abraço,
José
Só posso concordar no ponto em que existirão formas gráficas que, pela sua simplicidade, imitação de padrões da natureza (mesmo aquela interna aos seres humanos, cf. as teorias de um David Lewis Williams, mesmo descontando as partes menos sérias), ou convergência, são similares, mas usualmente apenas superficialmente, e não no papel especificamente cultural que terão nas suas diferentes contextualizações. Sobre a hipótese de migrações antigas, elas não são impossíveis mas difíceis de destrinçar e, seja como for, algo perigosas de depois generalizar como tendo sido de grande sucesso, repetidas e influentes. Senão caímos no relativismo anti-cultural de um Giorgio A. Tsoukalos...
Mas eu não estou a dizer que não existem coincidências entre esses símbolos. Apenas que a razão disso é... aliens.
P
Thor Heyerdahl e Kontiki são um habitante e um lugar do 3º calhau a contar do sol, só para dar um exemplo. As descobertas de fósseis humanos com mais de 12 mil anos feitas por Peter Wilhelm Lund no Brasil demonstram que essas mesmas viagens intercontinentais já são realizadas há milhares de anos, milhares de vezes, pelo que não te estava a falar de de cientologia ou de astronautas antigos e, já agora, não fica bem por estas alturas gozar com gentes de origens gregas :-DDD.
Mesmo que dos exemplos que dei não (te/me) seja possível generalizar, poderemos imaginar/teorizar quantas tentativas foram feitas ao longo de muitos séculos de história e que deixaram a sua marca no mundo. A maior parte das vezes a história da humanidade é presumidamente feita por personalidades e poderes que disputam os créditos da sua influência à acção anónima e repetida da espécie humana. Como percebes, partilho da opinião de que o universalismo é fonte de multiculturalidade.
José
I stand corrected, Sir.
Havia-me esquecido do dito "modelo difusionista" (tive de ir descobrir outra vez; obrigado Wikipédia). De facto, li há uns anos um artigo muito interessante sobre os vários modelos diferenciados da expansão dos seres humanos e das suas tecnologias, e que havia uma cada vez maior "preferência" pela ideia unitária da "Eva africana" da qual todos descenderíamos, etc. Acho que até falavam em "hipótese Benetton". Se bem que muitas hipóteses alternativas, como as do homem chinês (o "Homem de Pequim") viriam a ser postas em causa pelos estudos com base genética (conheço estas coisas, diga-se de passagem, graças a trabalhos de divulgação científica, como os de Alice Roberts, já que de ciência percebo puto).
E de facto se houve factores de comunicação entre todos os seres humanos em todo o mundo, foi mesmo a santíssima trindade das Armas, Germes e Aço (cf. Jared Diamond).
Ha, isto dava para conversas infindas, regadas a café! Se aconselhares algum livro ou documentário, por favor...
Pedro
P.S. Espero que não te tenhas ofendido com a brincadeira sobre o Tsoukalos. Não estava a implicar nada da tua parte, mas simplesmente a brincar. Este livro do Kyle, se vier a ser descoberto no futuro, ao lado de um "Naruto" ou "Tintin", como virá a ser lido? Aliens?
Regarding o teu P. S. por favor não te cortes nas bocas aos meus comentários, o esprit é o sal e a pimenta das conversas. Sempre te agradeci a generosidade que revelas nas respostas plenas de disponibilidade que dás aos comentadores no teu blogue e se aqui e ali vou pontuando as minhas frases com smiles rídiculos, para além da sua intenção mais óbvia óbvia, é na verdade uma forma de admitir a minha ignorância relativa.
Quanto ao futuro, esperemos que quem vier a abrir a caixa negra deste planeta tenha a sorte de encontrar outros títulos, ou que encontrando estes, pelo menos responda em vez com a pergunta: Emigrantes?
Obrigado, mais um abraço.
José
Pensado dessa forma, funciona de modo espectacular... Emigrantes!
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