Alguns
leitores da trilogia - sem nome englobante, singular - de Charles
Burns sentiram-se algo desacorçoados com a falta de resolução e
recompensa emocionais no seu fecho. Essa interpretação não é, de
modo algum, errónea, e há um grau quase insuportável de apatia
depois do “progresso” da narrativa. A palavra mais certa até
seria aquela emoção que se conhecia nos primeiros séculos do
Cristianismo como “acédia”, e que era mesmo considerada,
primitivamente, como um pecado capital. Um estupor da alma e do
corpo, uma melancolia extrema que levava o indivíduo a um alheamento
de si mesmo. (Mais)
Todavia,
pensamos que é precisamente essa luz (mortiça, febril, melancólica,
apática) da acédia que ilumina o estranho mundo destes três
livros, que uma simplificação poderia dizer tratar-se da biografia
de um jovem chamado Doug, entrando na idade adulta de uma maneira
confusa e algo perdida, na década de 1970. Estudante de artes e com
desejos de se tornar um experimentalista interdisciplinar, Doug cria
textos de acordo com a técnica do “cut-up”, inventada por Brian
Gysin e popularizada por William S. Burroughs (que Doug cita,
demonstrando algum grau de hipsterness avant
la lettre),
que depois lê ao vivo, ao som de colagens sonoras que faz com
cassetes, e usando uma máscara de traços extremamente
simplificados, e usando o pseudónimo de Nitnit ou Johnny 23. Também
faz t-shirts em serigrafia, auto-retratos em Polaroids sempre usando
a máscara (selfies
artísticas antes desse nome), entre outras coisas. A sua relação
com uma namorada de longa data “normal” tornar-se-á
inevitavelmente obsoleta no momento em que se cruza com uma colega da
faculdade, Sarah, igualmente criativa, num daqueles clichés de
relações pós-adolescentes que Burns tão bem gosta de explorar em
toda a sua obra. Essas são as condições de início da intriga, mas
estamos obviamente a “torturar” a estrutura dos livros para
naturalizar esse enquadramento, uma vez que a trilogia não segue
essa linearidade de maneira tão simples.
Na
verdade, algo acontecerá a Doug que o parece lançar na cama e na
dependência de drogas, que o amolecem e prostam, levando a que o
relacionamento com Sarah, depois de uma intensidade e uma influência
mútua nos seus trabalhos artísticos, de se envolver com uma cena
musical emergente do hardcore
punk de
segunda geração, termine de uma forma algo brutal. Apenas a leitura
dos três volumes revelará o que constitui a crise (enfim, mais do
que uma gravidez indesejada por Doug, um escolho que se torna
esmagador e incompreensível, intelectual e emocional, para ele), o
espoletador da separação, e mesmo a coda desse relacionamento – o
terceiro volume providencia uma cena proléptica substancial que nos
faz ver Doug mais velho reencontrando-se com Sarah, mas sem que isso
signifique fruto algum, bem pelo contrário, é mesmo ocasião para o
relançar na apatia da qual havia emergido. Todavia, a estrutura
temporal está constantemente a avançar e recuar em duas ou três
linhas de tempo, e a sua re-organização cronológica, caso se a
operasse, desagregaria a eficácia da narrativa e o sentimento
desregrado de Doug.
Além
disso, e é na verdade esta a linha mais forte, pelo menos em termos
visuais, acompanhamos também uma outra aventura, a de uma
personagem, chamada Johnny, parecida com a da máscara de Doug, numa
paisagem fabulosa, decrépita e apocalíptica, um mundo de fantasia
negra. Muitos dos acontecimentos dessa história parecem espelhar os
de Doug, quase ponto por ponto. Alguns leitores tentam explicar a
razão de forma lógica e naturalizante, mas argumentaremos que isso
não é de todo nem linear nem sequer necessário.
Estes três livros devem ser lidos de facto como uma estrutura em
camadas, em várias acepções. Não apenas a estrutura narrativa se
espraia em vários níveis hipodiegéticos (histórias dentro da
história principal, como se costuma dizer), se escolhermos
integrá-los entre si de alguma forma, mas com a linearidade da
intriga central (a história de Doug) apresentada numa ordem
não-linear.
Mais,
temos também o facto de ser apresentada como um conjunto de três
livros separados. O facto de se tratar de uma trilogia terá menos a
ver com uma forma de organização da intriga narrativa – apesar do
autor procurar que essa escolha se reflicta nisso – do que uma
escolha deliberada em trabalhar para o resultado material e físico.
Segundo
a interpretação de Benoît Crucifix, em du9, devemos olhar para a
distinção editorial e material entre Black
Hole,
publicado numa série de 12 comic
books,
e esta trilogia, em três álbuns de formato franco-belga (que o
jovem investigador nos recorda seguir as regras antigas de papel
baço, lombada colorida em tecido, etc., apontando a um período
pretérito específico), como sinal não apenas de uma escolha de
organização diegética, de espessura literária e de serialização,
mas também de inscrição, ora numa lógica de mercado “deslocada”
(os álbuns à la “48CC” não são usuais nos Estados Unidos, mas
recordemos usos anteriores por Burns desta forma com
El
Borbah,
Big
Baby,
etc.) ora numa de valência estética. De facto, a efemeridade,
temporalidade, e modo de incutir as questões irresolvidas a cada
episódio nos livros não obedecem àquele ritmo mais usual nos
Estados Unidos, pautados ora pelos cliffhangers
mensais dos comics
books ora
pela monumentalidade e coerência fechada de uma graphic
novel.
Se bem que se pode imaginar que a Pantheon possa vir a publicar no
futuro um só volume reunindo todo este estranho romance, o ritmo
interno da sua intriga, os espaços intersticiais do seu significado
têm uma relação intrínseca com estas “interrupções” -
físicas e temporais – providenciadas pela existência dos álbuns.
Mas é um compromisso de mesclas, já que Burns não apresenta
unidades relativamente satisfatórias como Hergé, mas tampouco torna
cada livro num troço autónomo interrompido pelos cliffhangers,
os quais revelam sempre de alguma maneira o título do volume
seguinte.
Além do mais, este termo, “álbum”, vem também
trazer uma outra dimensão interpretativa adicional ao projecto de
Burns, e que tem uma correspondência nas suas opções formais. Se a
sua origem etimológica o associa ao “branco” (albus,
album)
progressivamente iria ser empregue em relação a livros em branco,
onde se coleccionariam assinaturas, memórias, fotografias, recortes
e finalmente imagens ilustradas, organizadas de acordo com princípios
temáticos e, mais tarde, já sob o signo do campo da banda desenhada
(antes do nome), narrativos. São vários os momentos em que a obra
parece apresentar pranchas em “grelha” que coleccionam imagens
sem linearidade narrativa e/ou intriga, mas que de uma maneira ou
outra densificam as ligações dos vários “níveis” ou “mundos”,
ou criam rimas internas a cada um deles, ou explicitam a forma como
as personagens re-organizam os elementos que lhes ocupam as vidas
(como aquela página em que se mostram várias imagens coligidas por
Sarah, mas ao mesmo tempo informa os processos de construção do
próprio Burns e cujas primeiras páginas de cada álbum mimam “sem
imagem”, com vinhetas apenas coloridas, perfazendo um qualquer
padrão). Nesse papel estão as guardas iniciais de vinhetas com
cores, aquelas que surgem espalhadas ao longo da história, as
vinhetas negras com texto narrativo sem outra imagem, etc. Além do
mais, as variadíssimas referências a artistas visuais (Lucas
Samaras, Louise Bourgeois, etc.) e às bandas desenhadas referidas
(toda aquela banda desenhada romântica produzida por Simon e Kirby
nos anos 1950, mas aqui reformulada de várias maneiras, o livro de
Nitnit
que Doug lê na convalescença) permitem que as vinhetas funcionem
por vezes com um duplo grau de profundidade visual, confundindo-se a
vinheta-enquanto-janela com a vinheta-enquanto-reformulação da
imagem que as personagens manipulam e vêem.
O
equilíbrio entre essas referências, as disciplinas das artes
visuais e da banda desenhada, discutidas como tal de um modo ao outro
por Doug e os seus amigos, e a própria escolha em Burns empregar o
seu conhecido estilo mas citar, na história de Johnny, uma “linha
mais clara”, são a forma desta trilogia lidar com um “arquivo”.
Esta questão de entrada no arquivo exigiria uma maior explicação
teórica, que tentaremos discutir, a solo e em conjunto com Benoît
Crucifix, noutras paragens. Talvez neste momento seja suficiente
dizer que esse passeio implica sempre uma escolha activa por um
conjunto mais ou menos disponível de estilos armazenados na cultura,
e que possuirá desde logo um “excesso” de significado. Cruzando
esta noção com aquela da “hibridação gráfica” (discutida, em
termos distintos, por Thierry Smolderen e Thierry Groensteen), tal
significaria que a flutuação, no interior de um mesmo trabalho, de
dois ou mais estilos reconhecíveis como tal não apenas assinalaria
um desejo em diferenciar essas partes em termos narrativos (ou mesmo
simbólicos, assuma isso o que assumir), mas como modo de criar redes
intertextuais (intervisuais) além do próprio projecto.
Regressamos
portanto à questão principal (?) da trilogia X'Ed
Out/The
Hive
e Sugar
Skull:
qual a relação entre as histórias de Doug e a da Johnny/Nitnit?
Seria possível avançar uma explicação “naturalista”
propondo-se que as aventuras de Johnny naquele universo estranho e
maravilhoso não seriam senão fruto das alucinações provocadas
pelas drogas e/ou alucinações febris de Doug. É certo. Também, se
tivermos em conta o pormenor, brevíssimo, de que Doug lê um livro
de Nitnit,
poder-se-ia optar antes por pensar tratar-se tão-somente de uma
narrativa que Doug leria no interior daquela que lhe conta a vida (os
tais níveis hipodiegéticos).
Mas
porque não inverter esta equação? Afinal, se consideramos que, com
a excepção de uma cena ambivalente no terceiro volume, todos eles
abrem e fecham com a “linha” de Nitnit, não poderíamos antes
pensar que é a história “realista” o pesadelo – a falta de
consolo e direcção, a angústia da vida diária, a “ameaça” da
gravidez de Sarah – que assola a personagem “pura”? Uma
consideração mais cuidadosa da distribuição das “linhas
narrativas” revelarão que a de Nitnit tem menor “tempo de
antena” que a de Doug (num cômputo primário, falaríamos
respectivamente de 18 pranchas de Nitnit vs. 33 de Doug no primeiro
volume, 18 vs. 33 no segundo, 22 vs. 38 no terceiro, quase sempre
com a do primeiro abrindo e fechando os álbuns, e apenas nos dois
últimos intercalando pequenos episódios), mas isso não é um
factor suficiente para tomar quaisquer decisões em relação a
primazias e/ou nivelações.
Então
consideraríamos esta trilogia como sendo a tentativa de Nitnit de
encontrar sentido no mundo a que chega misteriosamente, e a de Doug o
seu pesadelo. Como se a vida deste “anti-Tintin”, como alguém
lhe chamou (e há toda uma série de pistas que ajudam a essa
interpretação, desde o gato negro invertendo Milou, a caverna de
Moulinsart, o ovo repetindo o padrão dos cogumelos da Ilha
misteriosa,
o companheiro ecoando um estranho Haddock, a sexualidade demasiado
presente e orgânica, “corrigindo” a sua ausência na obra de
Hergé, etc.) ligeiramente deslocado nos géneros fosse ela-mesma a
pureza verdadeira e própria do “mundo da bedê”, ensombrada
pelo desejo – contemporâneo, pós-moderno, desconstrutivista –
de o aproximar da nossa
realidade.
Tal
como Jocher Gerner havia reinterpretado Tintin
en Amérique
de forma “redutora-formal” em T.N.T.
en Amérique,
talvez Burns faça aqui uma espécie de revisitação
(não chega propriamente a ser um détournement,
tampouco uma homenagem). Porém, Burns fá-lo sem que “o
espaço-estado da banda desenhada [seja] alargada”, como escreve
Gert Meesters em relação a Gerner; apesar da ambiguidade
organizativa das narrativas em Burns, a trilogia pertence ainda em
larga medida a um certo grau normativo da banda desenhada. E mesmo
que o autor negue, em entrevistas, que se trate de um trabalho “em
resposta a Tintin”,
e seja apenas uma reacção a um substrato de imagens que ficaram com
o autor durante a vida, esse substrato ganhou a consistência de uma
obsessão que mancha este projecto de forma inevitável.
Além
dos três livros, também se deverão considerar a existência de uma
série de outros trabalhos de Burns que estabelecem associações
directas, materiais, temáticas e pseudo-narrativas, com a trilogia.
A Dernier Cri publicou um livro em serigrafia que remonta e reordena
algumas das imagens da trilogia, e apresenta texto escrito na
linguagem encriptada que Burns inventou para o mundo de Nitnit/Johnny
(um crítico lê essas paisagens como uma projecção distorcida e
monstruosa do Marrocos de Burroughs, imbuído numa atmosfera de
alucinações regadas a estupefacientes, álcool, pesadelos e
“perversões” da “natureza” - quer dizer, um mergulho em
naturezas bem diferentes; surgindo uma linguagem, o vírus da
linguagem, como escreveu Burroughs, o grau de “ruído” aumenta).
Na revista The
Believer,
para a qual Burns é assíduo colaborador, criando os retratos nas
capas, o autor deu início a “Random Access”, uma tira mensal a
que Burns chamou de “sketchbooks” e pode ser lida como material
em excesso ou paralelo aos livros, e que serviu de base a esse outro
trabalho. E finalmente, um bom número de “capas falsas” para as
aventuras de Nitnit, publicadas um pouco por todo o lado. Todos esses
outros textos menores são como que “excrescências” ou
“metástases” da trilogia. Isto poderá soar cru demais, mas é
feito à luz das temáticas de Burns.
Mais,
e influenciados pela leitura de um artigo de Marcus A. Doel em Comic Book Geographies,
denso e implacável, e que argumenta pelo fim de se considerar a
banda desenhada de uma forma organizada (“sequencial”), e
explodindo-a enquanto estrutura livre e aberta conforme as artes,
iríamos mesmo ao ponto de entender a relação entre as duas
“narrativas” de uma forma bem mais complexa. Não se trataria
tanto de as imaginar como eventualmente reconciliáveis numa
estrutura maior de significação, como se viessem a ser, ambas,
peças de uma estrutura maior, em que as partes em falta seriam
recuperáveis. Não. Elas seriam aquilo que Deleuze e Guattari
chamaram de “objectos parciais, tijolos que foram estilhaçados em
bocados”. Não são mais “fragmentos que, como peças de uma
estátua antiga, apenas esperam por que a última peça seja
descoberta, para que possam ser novamente coladas de forma a criar
uma unidade que é precisamente a mesma que a unidade original”.
Isso é um mito no qual não cremos mais. (O
Anti-Édipo).
Não há nenhum Todo, Doug não terá a sua solução, o seu fim, a
sua anagnórise, Nitnit não saberá quem se encontra do outro lado.
Burns
penetra em vários arquivos ao mesmo tempo com esta série de livros
e neles perde-se com caminhos múltiplos: não apenas a tal memória
de leitura e impacto dos álbuns de Hergé, mas também as várias
referências artísticas de que se foi alimentando e cita
explicitamente aqui através das suas personagens, assim como ainda
da sua própria obra de banda desenhada, que já envolve cultura
popular, subculturas jovens da década de 1970, body
horror,
e uma sensibilidade muito Lynchiana, em que a mais pacata das vidas
suburbanas convive com o mais perturbante dos maravilhosos numa
simbiose orgânica,
que apenas a distância dos leitores, externos à sua vivência, e
apercebem não poder ser lógica nem natural. Porém, no interior do
universo diegético, eles estão lado a lado, mesmo que os separe
somente uma camada fina (uma parede demolida, uma noite de febre, um
breve delírio). Recordar as estruturas irreconciliáveis de Lost
Highway
ou Mullholland
Drive não
é de todo um exercício displicente, já que que ocorre nesta
trilogia uma mesma relação entre as “histórias”. A sua força,
e o nosso prazer, resolver nas tentativas de resolução múltiplas
que permitem, não numa “narrativa unitária” eventual. Há uma
indeterminação que é protegida, não dissolvida através de
explicações cabais.
Nota:
agradecimentos a K.T., pelo empréstimo dos livros, e a Benoît
Crucifix, pela troca de ideias e pelas fotos dos volumes.
3 comentários:
Olá Pedro,
Mais uma grande entrada que nos obriga a visitar o mundo numa leitura de dez minutos e a acelerar furiosamente de Sófocles até Burns, passando pelo Eça :-). Talvez já tenha referido que, de todos os filmes dos meus tempos de cimema, é o Lost Highway que recordo com mais nostalgia quando, ao estilo "Cinema Paradiso", ou, mais prosaicamente ou não, à César Monteiro, aguardava pelos espectadores no final da sessão só para escutar em surdina as conclusões que a lógica nos obriga a retirar quando assumimos um comportamento pré-formatado como o de assistir numa sala à projecção de uma história que supostamente terá sempre úma trilogia: princípio, meio e fim.
Realmente não conseguimos escapar a essa armadilha por mais avisados, de criar ligações mesmo que seja por identificação de oposições. O meu ódio de estimação anda pelo "solteiro" e o "ateu". Parecem coisas do foro do direito potestativo: a opção de alguns - ex: religião, matrimónio - impõe-se sobre quem não pretende ser assim determinado. Exemplo menor disto será, entre outros menos/mais fáceis de defender, a tentativa de colagem da obra do Burns ao Tintin por esta ser assexuada e aquela aparentemente a provocar explicitamente nesse sentido?
Édipo e Carlos da Maia nunca chegarão a descobrir o grau de parentesco entre si, mas nós sabemos que o segundo é filho do primeiro. Ou o Eça (ou o Flaubert) estava com a cabeça virada para outro lado, uma cabeça que ainda assim - é ridículo dizê-lo? - funciona exactamente da mesma maneira?
Obrigado, Abraço.
José
Não sei muito bem como responder ao desafio, mas digo isto.
Uma frase de Francis Picabia: "as nossas cabeças são redondas para que possamos mudar de pensamento."
Se assim é, ainda no Picabia, concedo que a minha cabeça nalguns pontos da sua circunferência tem arestas :-)
Abraço,
José
Enviar um comentário