O
último número da excelente antologia de banda desenhada da Látvia
é composto exclusivamente por autores portugueses. Tratando-se de um
trabalho editorial aturado, feito pela equipa da kuš
a partir de uma percepção muito orientada para o tipo de banda
desenhada que procuram, e a que se poderia acrescentar o nome de
“artística”, “alternativa”, “experimental”,
“contemporânea”, etc., e contando com o apoio do editor da Chili
Com Carne, Marcos Farrajota, e alguns dos autores que já conheciam e
haviam publicado (Amada Baeza), o “retrato” que emerge deste
pequeno volume é uma faceta coerente, particularmente estimulante em
termos visuais e interpelante no que diz respeito às dimensões
poéticas desta disciplina. (Mais)
Diferentemente
do propósito de uma antologia-colectânea como Quadradinhos,
em que se intentava uma visão sobre uma produção mais lata da
banda desenhada moderna portuguesa pela perspectiva de um editor
estrangeiro, ou de Crumbs,
a partir de uma vontade de criar histórias narrativas claras e que
tomem o pulso de uma certa produção, Š!
pauta-se por um tema muito específico, que a um só tempo se alia a
uma especificidade cultural portuguesa e permite, ao mesmo tempo,
toda a possibilidade de abertura criativa.
Se
bem que não acreditemos de forma alguma no determinismo linguístico,
que leva a falar da “intraduzibilidade” de certas palavras ou
apelar a uma espécie de exclusividade de sentimentos, a verdade é
que a palavra “desassossego” é uma das mais belas palavras
portuguesas. Pela sua eufonia, as suas sibilantes seguidas, até a
sua calma negatividade, e, acima de tudo, pelo facto de estar
associada indelevelmente a uma das maiores obras - ou mesmo a maior -
da literatura portuguesa do século XX, O
livro do desassossego,
atribuível a um par de heterónimos de Fernando Pessoa, conforme o
investigador (quanto a nós, seguimos os argumentos convincentes
daqueles que apontam o semi-heterónimo Bernardo Soares). É esse
precisamente o ponto de partida no convite estendido aos autores que
aqui se encontram. A existência do livro, imaginamos, servirá de
porta de entrada para os editores, mas é apenas a palavra que foi
entregue aos autores como cerne daquilo a que deveriam responder.
Ainda
assim, alguns autores procuraram uma associação directa ou
indirecta à obra de Pessoa. Foi o caso de Rafael Gouveia, que
trabalhando sobre citações textuais do livro de Bernardo Soares,
coloca-nos à frente uma sequência de quadros não-narrativos, com
as suas costumeiras paisagens urbanas desabitadas e personagens de
perfil ou de frente. Também Francisco Sousa Lobo, sem que abdique do
seu longo projecto autobio-ficcio-gráfico, procura entrosá-lo numa
pequena ficção sobre um hipotético pseudo-heterónimo de Pessoa
que se tenha dedicado a uma banda desenhada (é mais complexo do que
isto, e apenas a leitura desvendará todos os níveis).
Com
a excepção de apenas
um caso de trabalho édito, o de Paulo Monteiro, todos os outros
autores optaram por lavrar algo de novo para esta antologia, de
acordo com a palavra-chave, que em inglês é “disquietness”.
Se
em alguns casos podemos falar da existência de algum princípio
narrativo – com um ou outro protagonista, uma corrente de
consciência mais ou menos centralizada, a possibilidade de
identificar uma unidade espácio-temporal, causalidade, etc. -, em
quase todos há uma dimensão ou outra que corta cerce essas
expectativas normalizadas para ofertarem um outro tipo de unidade de
banda desenhada, mesmo que fragmentária, dispersa. Correndo o perigo
de sermos redutores, podemos dizer que Amanda Baeza, Milena Baeza,
João Fazenda, Filipe Abranches, André Pereira, Paulo Monteiro,
Pedro Burgos e até Marta Monteiro nos apresentam “histórias”,
ao passo que André Lemos, Tiago Manuel, Daniel Lopes e Bruno Borges
providenciam-nos antes com ora uma série ora uma sequência
(espacial, temporal) de imagens que se coordenam entre si por
princípios formais, mas não-narrativos. Todavia, essa divisão
impedir-nos-ia, por um lado, de compreender em que medida é que as
“histórias narrativas” se negam a resoluções fáceis e até
exploram implicações emocionais não-resolúveis (pelo tédio, o
pasmo, a incompletude, uma certa ideia de ruína, outros sentimentos
“feios”) e, por outro, como os tais conjuntos de imagens fundam,
na verdade, pequenas linhas articuláveis de “desenvolvimento”,
se assim desejarem chamar, de uma ideia traduzível.
Há
também experiências de embate de linguagens. Cátia Serrão
apresenta uma das suas bandas desenhadas criadas através da
cobertura com tinta de páginas originais (uma abordagem que já
havíamos visitado quando da Tinta
nos Nervos,
que a incluía), e possivelmente aproveitando igualmente frases
pré-existentes, criando um diálogo “ruidoso” mas não menos
significativo. Daniel Lima, para além da capa, que nos recorda uma
espécie de emblema setecentista semi-místico, apresenta uma pequena
adaptação de um texto de vanguarda dos anos 1960, sem que se espere
qualquer tipo de equilíbrio final no sentido. Tiago Casanova
participa com uma espécie de “ensaio fotográfico”, que muito
sinceramente nos parece algo deslocado, mas aumenta o diálogo
inter-artes absolutamente fulcral nestas circunstâncias. E Joana
Estrela faz um aproveitamento de uma fotonovela para discorrer sobre
as crises banais dos “jovens” da nossa sociedade.
Necessariamente
haverá peças que apelarão mais a uns leitores do que outros, e
algumas delas parecerão mais buriladas e integradas do que outras,
tal como cada uma delas dialogará de formas bem distintas com o
trabalho, novo ou não, dos artistas envolvidos. O “passeio” de
Daniel Lopes, por exemplo, por paisagens urbanas (brasileiras?)
recorda aqueles “momentos mortos” de um Daniel Clowes, por
exemplo, para nos colocar uma questão sobre ausências. O episódio
aparentemente banal-quotidiano de Filipe Abranches parece ser uma
pausa (autobiográfica?) nas suas pesquisas contínuas em torno da
história portuguesa. Joana Estrela continua a interrogar aspectos da
identidade (nacional, sexual, etária, mas não apenas) através de
estruturas tranquilas. João Fazenda parece revisitar a sua abordagem
à la Joaquim Rodrigo, que já havíamos mencionado em Cartografias da Memória e do Quotidiano,
para possivelmente partilhar algo da sua própria vida. André
Pereira dá continuidade às suas estranhas construções imagéticas
em torno de criaturas não-humanas para explorar as relações
amorosas mais diárias possíveis.
Um
dos artistas alertou-nos para o facto de que o tipo de papel quer da
capa quer do miolo se alterou substancialmente, e de facto, estas
novas folhas do interior são menos texturadas, ao passo que a capa é
menos brilhante. Talvez isso explique como o resultado das cores seja
mais baço, em termos genéricos, acreditando que o trabalho de
Daniel Lima, de Cátia Serrão, André Pereira e talvez outros tenha
um brilho bem mais vincado do que transparece nesta edição. É
possível que outras opções materiais também sublinhassem a
complexidade da grafite de Marta Monteiro, as pinceladas expressivas
de Filipe Abranches ou o contraste entre as linhas negras e as
manchas rosas de Tiago Manuel.
Se
há algo mais unindo estes trabalhos, e que advirá necessariamente
da maneira como responderam ao “tema”, é o modo como todas estas
“histórias” criam uma sensação na qual é menos importante a
sua resolução do que a sua presença. Se O
livro do desassossego
é uma “cobardia” para Bernado Soares, que se pasmava por “acabar
qualquer coisa”, também poderíamos ver estas pelas reunidas na
antologia como gestos que procuram assinalar esse esforço de
desassossego, não anulando-o, mas intensificando-o.
A
narratóloga Meir Sternberg discute esta natureza da seguinte
maneira: “o mundo narrado pode não ter fim quer no sentido de
telos, limite ou propósito. Mas o discurso narrativo é
sempre dirigido para um fim [end-directed]”. E esse fim pode
ser, não propriamente circular, mas ganhar força na sua própria
existência. Quer dizer, a recompensa não estará tanto numa função
ou resultado dos textos, mas sim na fruição deles mesmos existirem,
e a sua existência confirmar, acentuar, tornar mais intensa uma
certa qualidade de desassossego, que poderia ser neste contexto em
particular, uma excelente tradução da noção freudiana do
Unheimlich, ou uncanny, usualmente traduzida como
“estranho familiar.” Ainda no campo da crítica literária (e
para além dela), gostaríamos de citar ainda Frank Kermode, o qual
fala do “enredo do consolo” [consoling plot], o qual não
se trata do “final feliz” mais o seu conforto fácil, mas de uma
profunda realização desse mesmo apelo por um qualquer consolo e,
tornando esse apelo, esse grito, interpretável (graças à
existência de um objecto, de um texto), esse mesmo desconsolo
torna-se suportável. Mais sossegado, talvez.
Nota
final: agradecimentos a M.M., pela oferta do livro; imagens colhidas
da internet.
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