27 de março de 2015

The Man Next Door. Masahiko Matsumoto (Breakdown Press)

Na continuidade do projecto da Breakdown Press em permitir a Ryan Holmberg a tradução, edição e publicação de pequenos volumes dedicados a momentos fundamentais nas transformações modernizantes e de maturidade da mangá, e depois do volume dedicado a Hayashi, encontramos este segundo volume dedicado a Matsumoto. (Mais) 

Este livro foi lançado para acompanhar uma exposição que teve lugar no final de 2014 no Cartoon Museum de Londres, Gekiga: Alternative Manga from Japan, e já Holmberg tinha trabalhado igualmente num projecto similar, com Garo Manga: The First Decade, 1964-1973 no Center for Book Arts. Holmberg é, então, um nome importante a seguir nos mecanismos que dão a conhecer aos leitores ocidentais – com a segurança de uma tradução sólida, e um trabalho de edição cuidado que contextualiza e devolve uma variedade maior do que a mais conhecida – uma das fases decisivas na transformação da banda desenhada japonesa nas décadas de 1950-1960. De uma primeira fase influenciada pelas tiras de jornais, observa-se a grande revolução permitida por Tezuka na (re)criação da mangá infanto-juvenil e é graças a autores como Masahiko Matsumoto e Yoshihiro Tatsumi que se começam a fomentar novos caminhos em termos de género, ritmos, abordagens sociais e abertura para emoções mais complexas.

Este pequeno livrinho contém quatro histórias curtas, todas elas publicadas na revista Kage (“Sombra”), entre Março e Novembro de 1956: “The Man Next Door”, “Thick Fog”, “Incident at Shiranui Village” e “The Cat and The Locomotive”. Um dos aspectos importantes da contextualização é perceber que estas eram peças criadas para o mercado de revistinhas baratas que não eram vendidos, mas antes emprestados através de um sistema de bibliotecas populares, as kashihon'ya. Quer o brevíssimo ensaio de Holmberg quer o excerto de uma entrevista com Matsumoto revelam o tecido sócio-cultural em que estas histórias nasceram, e que explicam, pelo menos em parte, as suas características.

Por estarem fora do mercado “burguês” de venda de livros (e a diferença de formatos é fundamental), as histórias eram direccionadas sobretudo a jovens adolescentes e adultos de parcos rendimentos e, possivelmente, com um interesse mais relaxado em relação ao principio horaciano de delectare, movere, docere que presidia a toda a literatura infanto-juvenil, quer na Europa quer no Japão. Daí que os temas bebam sobretudo do filme noir da época, entregando-se a assassinatos, crimes passionais, tensões sociais e até mesmo a um posicionamento moralista bem diverso daquele que se propagava por outros meios mais “correctos”. Por exemplo, a história “The Man Next Door” tem duas personagens que tecem comentários sobre a participação do Japão na 2ª Grande Guerra, e ao contrário do que era de esperar de certos discursos, o homem que participara nela como herói é aqui visto como um homem irascível e que menospreza os demais, ao passo que descobrimos que o vizinho taciturno é uma vítima da mesma guerra, na qual morreram a mulher e a filha, amargurando-o para sempre. Não estando totalmente seguros, mas estamos em crer que essa não seria uma posição muito usual, e preparava já, em semente, a tensão que explodiria nos anos 1960. Aliás, Holmberg sublinha como esse circuito de autores a trabalhar para as bibliotecas de empréstimo são o cadinho da futura Garo e da sua própria contribuição para as mudanças da mangá.

Essa mesma história tem também uma curiosa componente meta-textual, já que se inicia com um mangaka, eventualmente uma representação do próprio autor, que se vê obrigado pelo editor a criar uma história para estar pronta no próximo número da revista. O “crime” que veremos acaba por se tratar de uma perspectiva enviesada do artista, mas a tensão e a sua nivelação “caseira” já é garante de uma pequena mudança, que depois se explora nas histórias seguintes.

Na economia complicada sobre as palavras, e tal como já havíamos discutido quando da leitura de A Drifting Life, de Tatsumi, também Matsumoto se sentia desconfortável a empregar a palavra “mangá” para as suas histórias mais graves. Daí que tenha tentado um novo vocábulo, komaga que pode ser traduzido literalmente por “imagens [ga] de vinhetas [koma]”. O autor precisa, porém, que em vez de utilizar o kanji (o ideograma chinês, que para além do valor fonético possui um “conteúdo” conceptual) para koma que também significava “fotograma” (de película de filme, entenda-se), utilizara antes o de “peça de xadrez”, o que se abriria a análises conceptuais extremamente curiosas. Sobretudo tendo em conta como o próprio Matsumoto assume que para ele é menos importante a qualidade do desenho (o qual, de facto, é algo primário e até tosco) do que a história, a composição, e até mesmo a “direcção da acção” (como se falasse de realizar um filme). Nesse sentido, a leitura destas histórias ganha significativamente se prestarmos particular atenção a como o modo limitado do estilo gráfico de Matsumoto não o impede de criar efeitos extremamente agudos de ritmo, emoção e suspense. Repare-se como, na página que mostramos de “Incident at Shinarui Village”, o facto de que o homem que tocava um tambor taiko parou leva a que haja um momento de ulterior silêncio e inércia. Temos três vinhetas mostrando as reacções do público (tratar-se-ão de transições momento-a-momento ou aspecto-a-aspecto, de acordo com a terminologia de Scott McCloud?), e depois mais três em que gradualmente nos aproximamos da vítima. Apesar da onomatopeia na primeira vinheta, as letras nos balões-lanterna e a existência de alguns balões de fala “vazios” - ou precisamente por se utilizarem todas essas marcas gráficas – o “silêncio” é mais vincado.


É verdade que o pequeno formato do livro (cuja materialidade original é quiçá aproximada pela risografia em impressões de apenas uma cor, se bem que cada história tenha a sua), e os desenhos toscos, já para não falar dos protocolos de leitura japoneses (contrários aos ocidentais) tornam por alguns segundos confusa a navegação a que olho se deve entregar para recriar as cadeias sequenciais e narrativas. Não se trata de uma página à la, por hipótese, François Bourgeon ou Hal Foster em que todas e quaisquer marcas gráficas e pictóricas conduzem desde logo o olho. Basta olhar para os outros exemplos que aqui deixamos. É necessária alguma “distância racional”, por assim dizer, e uma certa redução das vinhetas a “fotogramas” para que recriemos os elos lógicos entre as passagens. Ainda assim, tendo em conta essa limitação material e talvez histórica, estas quatro histórias são suficientes para compreender o papel fulcral que Matsumoto teve na emergência do que se conheceria mais tarde por gekiga.

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