Na continuidade do
projecto da Breakdown Press em permitir a Ryan Holmberg a tradução,
edição e publicação de pequenos volumes dedicados a momentos
fundamentais nas transformações modernizantes e de maturidade da
mangá, e depois do volume dedicado a Hayashi, encontramos este
segundo volume dedicado a Matsumoto. (Mais)
Este livro foi lançado
para acompanhar uma exposição que teve lugar no final de 2014 no
Cartoon Museum de Londres, Gekiga: Alternative Manga from Japan,
e já Holmberg tinha trabalhado igualmente num projecto similar, com
Garo Manga: The First Decade, 1964-1973 no Center for Book
Arts. Holmberg é, então, um nome importante a seguir nos mecanismos
que dão a conhecer aos leitores ocidentais – com a segurança de
uma tradução sólida, e um trabalho de edição cuidado que
contextualiza e devolve uma variedade maior do que a mais conhecida –
uma das fases decisivas na transformação da banda desenhada
japonesa nas décadas de 1950-1960. De uma primeira fase influenciada
pelas tiras de jornais, observa-se a grande revolução permitida por
Tezuka na (re)criação da mangá infanto-juvenil e é graças a
autores como Masahiko Matsumoto e Yoshihiro Tatsumi que se começam a
fomentar novos caminhos em termos de género, ritmos, abordagens
sociais e abertura para emoções mais complexas.
Este pequeno livrinho
contém quatro histórias curtas, todas elas publicadas na revista
Kage (“Sombra”), entre Março e Novembro de 1956: “The
Man Next Door”, “Thick Fog”, “Incident at Shiranui Village”
e “The Cat and The Locomotive”. Um dos aspectos importantes da
contextualização é perceber que estas eram peças criadas para o
mercado de revistinhas baratas que não eram vendidos, mas
antes emprestados através de um sistema de bibliotecas populares, as
kashihon'ya. Quer o brevíssimo ensaio de Holmberg quer o
excerto de uma entrevista com Matsumoto revelam o tecido
sócio-cultural em que estas histórias nasceram, e que explicam,
pelo menos em parte, as suas características.
Por estarem fora do
mercado “burguês” de venda de livros (e a diferença de formatos
é fundamental), as histórias eram direccionadas sobretudo a jovens
adolescentes e adultos de parcos rendimentos e, possivelmente, com um
interesse mais relaxado em relação ao principio horaciano de
delectare, movere, docere que presidia a toda a literatura
infanto-juvenil, quer na Europa quer no Japão. Daí que os temas
bebam sobretudo do filme noir da época, entregando-se a
assassinatos, crimes passionais, tensões sociais e até mesmo a um
posicionamento moralista bem diverso daquele que se propagava por
outros meios mais “correctos”. Por exemplo, a história “The
Man Next Door” tem duas personagens que tecem comentários sobre a
participação do Japão na 2ª Grande Guerra, e ao contrário do que
era de esperar de certos discursos, o homem que participara nela como
herói é aqui visto como um homem irascível e que menospreza os
demais, ao passo que descobrimos que o vizinho taciturno é uma
vítima da mesma guerra, na qual morreram a mulher e a filha,
amargurando-o para sempre. Não estando totalmente seguros, mas
estamos em crer que essa não seria uma posição muito usual, e
preparava já, em semente, a tensão que explodiria nos anos 1960.
Aliás, Holmberg sublinha como esse circuito de autores a trabalhar
para as bibliotecas de empréstimo são o cadinho da futura Garo e da
sua própria contribuição para as mudanças da mangá.
Essa mesma história tem
também uma curiosa componente meta-textual, já que se inicia com um
mangaka, eventualmente uma representação do próprio autor, que se
vê obrigado pelo editor a criar uma história para estar pronta no
próximo número da revista. O “crime” que veremos acaba por se
tratar de uma perspectiva enviesada do artista, mas a tensão e a sua
nivelação “caseira” já é garante de uma pequena mudança, que
depois se explora nas histórias seguintes.
Na economia complicada
sobre as palavras, e tal como já havíamos discutido quando da
leitura de A Drifting Life, de Tatsumi, também Matsumoto se
sentia desconfortável a empregar a palavra “mangá” para as suas
histórias mais graves. Daí que tenha tentado um novo vocábulo,
komaga que pode ser traduzido literalmente por “imagens [ga]
de vinhetas [koma]”. O autor precisa, porém, que em vez de
utilizar o kanji (o ideograma chinês, que para além do valor
fonético possui um “conteúdo” conceptual) para koma que
também significava “fotograma” (de película de filme,
entenda-se), utilizara antes o de “peça de xadrez”, o que se
abriria a análises conceptuais extremamente curiosas. Sobretudo
tendo em conta como o próprio Matsumoto assume que para ele é menos
importante a qualidade do desenho (o qual, de facto, é algo primário
e até tosco) do que a história, a composição, e até mesmo a
“direcção da acção” (como se falasse de realizar um filme).
Nesse sentido, a leitura destas histórias ganha significativamente
se prestarmos particular atenção a como o modo limitado do estilo
gráfico de Matsumoto não o impede de criar efeitos extremamente
agudos de ritmo, emoção e suspense. Repare-se como, na página que
mostramos de “Incident at Shinarui Village”, o facto de que o
homem que tocava um tambor taiko parou leva a que haja um momento de
ulterior silêncio e inércia. Temos três vinhetas mostrando as
reacções do público (tratar-se-ão de transições
momento-a-momento ou aspecto-a-aspecto, de acordo com a terminologia
de Scott McCloud?), e depois mais três em que gradualmente nos
aproximamos da vítima. Apesar da onomatopeia na primeira vinheta, as
letras nos balões-lanterna e a existência de alguns balões de fala
“vazios” - ou precisamente por se utilizarem todas essas marcas
gráficas – o “silêncio” é mais vincado.
É verdade que o pequeno
formato do livro (cuja materialidade original é quiçá aproximada
pela risografia em impressões de apenas uma cor, se bem que cada
história tenha a sua), e os desenhos toscos, já para não falar dos
protocolos de leitura japoneses (contrários aos ocidentais) tornam
por alguns segundos confusa a navegação a que olho se deve entregar
para recriar as cadeias sequenciais e narrativas. Não se trata de
uma página à la, por hipótese, François Bourgeon ou Hal Foster em
que todas e quaisquer marcas gráficas e pictóricas conduzem desde
logo o olho. Basta olhar para os outros exemplos que aqui deixamos. É
necessária alguma “distância racional”, por assim dizer, e uma
certa redução das vinhetas a “fotogramas” para que recriemos os
elos lógicos entre as passagens. Ainda assim, tendo em conta essa
limitação material e talvez histórica, estas quatro histórias são
suficientes para compreender o papel fulcral que Matsumoto teve na
emergência do que se conheceria mais tarde por gekiga.
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