Em várias circunstâncias já o
havíamos afirmado mas deixamos aqui por escrito pela primeira vez
que Blacksad é uma das melhores séries de banda desenhada
que nos deixavam indiferentes. O que queremos dizer com isso é que
reconhecemos nela determinadas qualidades, sobretudo do ponto de
vista técnico e formal, que a tornam um excelente exemplo de uma
obra que preenche todos aqueles requisitos de uma banda desenhada do
ponto de vista das suas mais usuais especificidades. A indiferença
deve-se ao facto, mais subjectivo, empírico, emocional, de que o
cruzamento entre o noir e a antropomorfização, os
temas-cliché do cinema norte-americano dos anos 1930 e 1940, a
economia narrativa em torno da personagem detective não constituem
de forma alguma um interesse particular para nós. Em muitos
aspectos, Blacksad é uma obra sem grande “ruído”, e
talvez seja por isso que não nos estimula grande paixão. (Mais)
Aquela mestria técnica tem a ver com o
facto de Canales e Guarnido tirarem partido de todas as formas de
constituir informação através, não apenas do texto, mas das
imagens e da forma como elas são compostas e articuladas. Repare-se
como a primeiríssima página tira partido de não termos acesso às
relações entre as personagens, mas tampouco ao rosto daquela que
conheceremos como Abraham, como o establishing shot é feito
ao contrário, do particular para o geral, e a expectativa antes de
chegarmos à segunda página é a de tragédia e crime. E na terceira
página, depois de uma ágil apresentação e bailado de forças
entre Abraham e Chad, estamos inteirados sobre o (des)equilíbrio da
relação de ambos.
No fundo, estas técnicas correspondem
àquilo que teóricos do cinema clássico de Hollywood chamam de
“estilo invisível”, ou continuity editing, isto é, o
trabalho de montagem de todos os elementos disponibilizados nas
“imagens” (captadas na película, criadas no computador,
pós-produzidas, etc,) que os torna todos articulados numa ilusão de
transições suaves no que diz respeito aos gestos, espaços, tempos,
tons, expressões dos actores, som, etc., consequentemente
construindo a ideia de um mundo contínuo, coerente, lógico, enfim,
“real”.
Muito discutivelmente, pois o próprio
conceito de “continuity editing” é criticado a partir de várias
perspectivas teóricas – afinal de contas, essa expressão junta
duas das actividades que são intrínsecas à própria materialidade
e linguagem do cinema - , que complicam esta modelização simplista,
poderíamos dizer que um dos maiores expoentes desse cinema é
Hitchcock, tal como na banda desenhada seria Hergé. Claro está que
esta é não apenas uma comparação falha, como até mesmo patética
pela sua hiperbolização totalmente descontextualizada da história
ou até de uma argumentação analítica. Todavia, aquilo que
pretendemos com esta estratégia discursiva, temporária, não é
tanto atingir uma “verdade absoluta” (impossível), como apenas
uma jogada para chegar a uma ideia relativamente corrente de que
existirão textos de “estilos invisíveis”, em que tudo é criado
de uma maneira para nos fazer esquecer estarmos perante uma ilusão,
tal como ocorrem nos filmes de Hitchcok ou n’As aventuras de
Tintin. Repetimos, isto é uma ilusão apenas, se bem que
optimamente construída, contrastando com projectos tais como os de,
por exemplo, Chris Ware, Edmond Baudoin, Tiago Manuel, Lynda Barry, e
tantos outros, em que a superficialidade, a feitura do texto
não “desaparece” sob a narrativa (uma das “tensões”
específicas da banda desenhada teorizadas por Charles Hatfield).
Compreenderão que, a cada passo deste
tipo de pensamento, são cada vez mais os obstáculos a uma
progressão suave desses argumentos. Os escolhos são muitos. Mas
aceitemos a ideia de ilusão, apenas para avançar. É nesse sentido
que os livros de Blacksad são um excelente exemplo do domínio
de todos os instrumentos disponíveis pela banda desenhada: desde a
figuração à cor, passando pela focalização, à composição,
diálogos e estruturas narrativas, ângulos e uso de onomatopeias e
emanata, etc.
A história em si é fraca na sua
estrutura. As referências são relativamente simples e claras,
estando em torno da beat generation e da forma como aliavam
certos comportamentos anti-sociais e uma descoberta de uma espécie
de genuína identidade interna, individual e americana. Chad tem
alguns laivos de Jack Kerouac, até ao pormenor do rolo do seu novo
romance; o abutre Billy Sorrows poderá ser um contraponto de William
Burroughs, da eufonia do nome à fisionomia ao episódio do tiro ao
alvo; Abraham Greenberg uma espécie de mistura entre Allan Ginsberg
e Ken Kesey, etc. No entanto, a exploração da camada literária,
apesar da brevíssima referência a Artaud, não se abrirá jamais de
uma forma produtiva. Apenas existem como referência, e tudo o resto
é superficial. Também a música e a fotografia, graças à máquina
deixada por Weekly, se tornam apenas laivos de decorativismo (ainda
que haja uma tentativa de as tornar significativas com as páginas de
guarda, sem adiantar nada à intriga), e jamais de interpelação da
diegese. Continuam os piscares de olho a outras bandas desenhadas,
como no caso da capa da Mad, traduzida com humor para o mundo
particular destes animais.
Todavia, o desequilíbrio principal
está na relação do protagonista – que neste livro quase deixa de
o ser – e as restantes personagens, e o modo como as várias linhas
de entrosam umas nas outras. Blacksad acabará por se cruzar apenas
por acaso com estas personagens, depois do crime cometido, e todas as
peças – que parecem demais, na verdade, envolvendo um circo
ambulante com dívidas, uma gangue de bikers, uma herdeira
milionária em fuga, dois investigadores com métodos pouco justos,
um advogado (hiena, para que a metáfora não seja demasiado
complexa) em busca de soluções fáceis, etc. – estarão no seu
caminho como pó, não existindo na verdade uma concatenação e
articulação entre elas “por necessidade”. As coisas sentem-se
algo como sendo ex machina.
Repare-se como há um número talvez
idêntico de planos em ângulos oblíquos e inclinados, dramáticos,
tais como ocorriam nalguns dos títulos anteriores, mas sem a mesma
elegância ou urgência associada aos eventos. Recordemos aqui uma leitura crítica em torno de um dos primeiros volumes da série, que
tornava isso claro. Não é que os momentos de gestão dos silêncios,
os desvios de atenção para que o leitor preste atenção a uma
coisa enquanto outra se passa, os saltos de momentos mais dramáticos
para chegarmos a um efeito mais irónico, chocante, ríspido, não
estejam lá, mas parecem ser colocados somente por formulação,
e não nascendo da integridade da história. Como se se tratasse de
um daqueles formulários de argumento à la screenwriting de
Hollywood preconizados por dezenas de manuais, e não um edifício
que desabroche de dentro.
Enfim, o que acontece é que a
personagem não tem agência. Todas as suas tentativas de acção são
até goradas, e mesmo que seja esse o objectivo dos autores para este
volume, isto é, desarmá-lo de alguma maneira, isso é algo
exagerado ao ponto de o esvaziar.
Seja como for, a beleza das aguarelas
de Guarnido continuam presentes, assim como o seu paciente burilar
das expressões das personagens, que tiram partido como poucos
artistas das potencialidades expressivas da banda desenhada
animaliére, encontrando-se uma união perfeita entre o que é
possível tirar das expressões humanas, das dos animais e, claro
está, daqueles contornos que se devem à indústria e linguagens
específicas da banda desenhada e da animação. Se há todo um
conjunto de referências a que ambos os autores são devedores, eles
tiram partido delas da melhor maneira possível. Pensamos que é
apenas a nível da narrativa, se nos for permitida essa violência
que disjunta matérias que não têm existência autónoma, que
Blacksad: Amarillo acaba por não funcionar da melhor maneira.
Contudo, independentemente desse juízo de valor, continuamos a ter
aqui qualidades conquistadas no campo do mainstream.
Uma última nota sobre um tema
específico. Se Artic Nation já tinha lidado de forma directa
– e narrativamente brilhante - com a questão do racismo nos EUA
nesta época, este livro não deixa de lhe fazer referência, numa
cena com um papagaio, mas há algo de superficial e mal gerido nessa
cena, sobretudo tendo em conta todos os outros acontecimentos em que
a questão nem surge. Pois se se quer seguir uma lógica que espelha
a da experiência humana e histórica, então deveria ter havido uma
palavra com a gangue dos motociclistas…
A presença desta série e o totalmente
meritório sucesso comercial que teve entre os fãs e a crítica é
justificação suficiente para que haja esta circulação na nossa
língua, como é evidente. Mesmo tendo em conta a qualidade atingida
por volumes anteriores, Amarillo não lhes segue os passos.
Todavia, ainda estamos perante uma das séries mais bem construídas
em termos de realização do seio do mainstream europeu.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
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