Um ex-lutador
de wrestling profissional,
simplesmente chamado Oaf, retira-se devido a um escândalo sexual com um
árbitro. Dessa maneira, ele regressa à sua vida simples e pacata, guiado pelo
seu pai adoptivo, a cuidar de um verdadeiro exército de gatos, cada qual com características
únicas, e a fazer pequenos bonecos de peluche, atufados com o seu próprio pêlo,
que cresce a velocidades estonteantes. Lenta mas seguramente, apaixona-se pelo frontman, Eiffel, de uma banda homocore chamada Ejaculoid. (Mais)
Como
sinopse, pensamos que a que providenciámos é bastante esclarecedora, mas como
poderão imaginar não é de forma alguma suficiente para descrever a gloriosa e
bem-humorada aventura que o autor tece com a sua personagem. A Fantagraphics
tem feito toda uma série de aproximações a um grupo significativo de autores de
banda desenhada que tem trabalhado em mini-comics
auto-editados, e que vão angariando atenção crítica pelos seus próprios meios,
mas que ainda assim ganham uma visibilidade e viabilidade económica bem maior
com um selo editorial deste calibre. Se a editora tem um papel preponderante na
banda desenhada nos Estados Unidos, as suas acções continuam a trilhar os
mesmos processos ainda que adaptados à realidade contemporânea. Ed Luce, o
autor de Wuvable Oaf, é então um dos
autores que se reúne nessa família alargada.
Existindo
sob a forma de todo um conjunto de pequenas publicações, cerca de uma vintena, este
volume junta muito do seu material, criando a ideia de um projecto de longo
fôlego. Porém, há muitas características da produção original que não se perdem
na transposição. Os episódios do romance entre Oaf e Eiffel é a linha
principal, por assim dizer, mas de forma alguma o “assunto” do livro nem a
única matéria explorada. Construído com uma estrutura complexa, alternando os
capítulos com páginas soltas, splash
pages, histórias curtas e desvios diegéticos, há uma espécie de mosaico narrativo
que apenas no balanço final nos dá a ver a origem da personagem, a sua vida
profissional como wrestler, a sua
vida actual e quotidiana, a sua relação com os inúmeros gatos, os cruzamentos
com os mundos das artes, da música, os pontos de encontro gay (sobretudo bear, não se vê nada twink ou femboy) e outros da cidade em
que vive (uma São Francisco algo distorcida), etc. Chegamos mesmo a viajar no
futuro muito longínquo, para descobrir o que acontecerá quando a Terra estará na
mão de tribos de gatos e cães super-evoluídos e lutando entre si, e que levam à
ressurreição de Oaf como o paladino dos felinos. Mais, e bebendo em grande
parte de muitos dos mecanismos-chavão dos super-heróis (Luce criou imagens com
a personagem que citam o Hulk e Crise nas Infinitas Terras), há uma
versão “à la high fantasy” de todas as personagens.
A cultura
musical tem aqui também um papel preponderante, e coloca territórios aparentemente
separados num mesmo plano de existência, convivência e prazer. Oaf, por
exemplo, é um fã incondicional de Morrisey. A banda Ejaculoid define-se como
sendo de “progressive disco grindcore”, mas membros da banda também propõem a
ideia de serem “aggro techno hardcore” ou “black spazz-metal queercore”, o que
abre espaço a discussões cada vez mais atomizadas sobre estilos musicais. Vemos
muitos concertos e actos como os das Muff’n’Pop Grrlz, Sphincterine, etc.
Trocadilhos e nomes de bandas improváveis (ou expectáveis, na verdade) pululam
pelas páginas. Em retrospectiva, tendo nós visto a primeira imagem de Luce
associada ao projecto Henry & Glenn
Forever & Ever, dos Igloo Tornado, em que os dois ícones macho do rock
agressivo são um casal comovente, esta linha temática não é surpreendente e é
responsável pela riqueza do livro.
E há um
episódio, a nosso ver magnífico na representação do prazer da música em banda
desenhada (o que é raro, apesar de tudo) em que a banda Ejaculoid procura o
melhor som e coordenação dos talentos de cada um, que é uma espécie de lição
enlatada da diversidade musical – Prince, Mötley Crüe, Pixies, Nina Hagen, e GG
Allin na mesma frase? - e de como a ideia de “orgia” pode ser produtiva para a
criação de novas direcções (se bem que a imagem de Wendy O. Williams, dos
Plasmatics, a sodomizar Oderus Urungus, dos Gwar, poderá deixar marcas
indeléveis).
O autor
consegue então, ao longo destas páginas, e através das suas histórias curtas
com ligações paralelas e fugas, tecer um mundo em que a sub-cultura (este termo
não tem um juízo de valor, é empregue no sentido de Dick Hebdige, no sentido de
ser um posicionamento oblíquo em relação à hegemonia através do “estilo”, e
isso englobará a expressão da sexualidade) bear
gay, a paixão pela música, o conhecimento das cliques de várias círculos e
dos cantinhos da cidade, um interesse vivo pelos clichés de toda uma série de
géneros de banda desenhada e cinema popular, etc., se encontram numa coesão
forte, divertida e até comovente. A timidez de Oaf é sempre motivo de surpresa
e o modo como negoceia a aproximação a Eiffel demonstra a atenção particular do
autor em construir uma história
romântica.
A inscrição
concêntrica possível não seria apenas na banda desenhada que contem personagens
homossexuais – o que pode incluir até mesmo alguns dos aproveitamentos
superficiais da política do momento pelo mainstream
de super-heróis -, ou naquela que é criada no seio dessa cultura, agregando ou
não géneros normalizados como a ficção científica (o caso de Artifice). Luce, até pela pertença à
sub-cultura homossexual dos bears, encontraria em Tom of Finland o seu primeiro
cultor. Este artista, aproveitando ou seguindo as linhas culturais de um George
Quaintance, Dom Orejudos e Art-Bob (todos cruzando-se na mítica Physique Pictorial), traria porém uma
dimensão dramática maior, graças às suas bandas desenhadas, mais tarde com
projectos específicos como Kake, Pekkas, Jack in the Jungle, etc. E uma das dimensões mais dramáticas de Tom
of Finland é a da violência, com inúmeras cenas de violações e abusos (mesmo
que terminem em encontros de satisfação mútua e feliz, partem de uma realidade
que merece alguma crítica, como aquela feita por Adam Thorburn). No entanto, se
essa violência iria ganhando cada vez mais proeminência nalguma produção de
banda desenhada (veja-se o trabalho do autor japonês Gongoroh Tagame), Ed Luce apaga-a,
trazendo a lume as suas personagens num mundo mais emotivo que de gratificação
superficial. Há cenas de sexo, mas não são pornográficas, explícitas. Além
disso, isso é feito numa abordagem, ou estilo, mais adocicado, arredondado, cute, cómico, a preto-e-branco (salvo
uma meia-dúvida de páginas, em que uma série de segundas cores planas têm um
significado curioso e totalmente narrativo, tornando-a num experimento simples
mas efectivo). Como se a escola de Luce fosse sobretudo informada por uma banda
desenhada de expressão infanto-juvenil
à la John Stanley para chegar a este conteúdo bearcore.
Uma
última observação sobre Tagame et al. A esmagadora maioria do público
generalista conhecerá a “utilização” de histórias entre dois homens no género
de manga conhecido por yaoi, de que Heart of Thomas é um exemplo histórico. No
entanto, enquanto género sobretudo de mulheres para mulheres (não
exclusivamente, como é óbvio), a homossexualidade aí surge antes como um factor
de possibilidade de aumento de romantismo não-sexualizado, na verdade. Mas
existe banda desenhada feita por homossexuais de temática homossexual, como é o
caso das mangás de G. Tagame. Se esse material esteve até recente data apenas
disponível através das scanlations em
sites especializados, existem dois projectos relativamente recentes, e com o
dedo de Chip Kidd, que colocaram esse material, sob a forma de volumes
consideráveis, acessíveis a um público alargado. Falamos de Passion, publicado pela PictureBox, e Massive, da Fantagraphics. O primeiro é
exclusivamente dedicado a Tagame, com as suas histórias de extrema violência
entre bears, e Massive é uma espécie de antologia introdutória a uma alargada
constelação de autores japoneses, de variados graus de qualidade, géneros e
humores, e que faz um excelente trabalho sobre o estado da arte deste
sub-género e da problemática “abertura” dele na cultura japonesa (quem tiver
oportunidade de o ler, repare como a maior parte das fotografias dos autores
disfarçam ou ocultam totalmente os rostos), através de ensaios e entrevistas.
Nota
final: agradecimentos à editora, por disponibilizar o livro em forma de pdf.
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