Este
é um projecto colectivo curioso, que demonstra uma solução narrativa e
estrutural relativamente simples que atinge rapidamente um resultado variado e
com uma aparência épica. Ao se atomizar a responsabilidade de várias partes a
um bom número de autores, e mesmo tendo em conta os possíveis ritmos distintos
de trabalho, a verdade é que se conseguirá um projecto bem mais alargado num período
mais curto do que se se colaborasse com um único artista (ou uma equipa
singular). (Mais)
“Contos
índios” é uma antologia que conta com mais de trinta colaboradores, muitos
deles italianos, mas que conta igualmente com alguns nomes internacionais,
entre os quais o português Ricardo Venâncio. A “direcção artística” é de
Christian Marra, que presumimos terá criado a ideia da estrutura geral, baseado
directamente no volume Indian Tales,
de Jaime de Angulo. Como forma narrativa principal temos uma linha central que
trata da viagem de uma família de nativos americanos, que atravessa as paisagens
do continente americano, e que, graças aos encontros com outros povos, xamãs,
caçadores, etc., episódios passados na viagem, ou momentos de pausa no périplo,
se permitem contar mitos das suas culturas. Estes dez mitos têm então a forma
de histórias a nível hipodiegético, isto é, “histórias dentro da história”.
Cada um destes mitos é escrito e desenhado por uma nova equipa de escritores e
artistas (os primeiros sempre italianos), e ainda é acompanhando por um “frontispício”
desenhado por outro artista ainda. A história em si tem mais de 220 páginas.
Um
outro pormenor, de importância, está no facto de que todas as personagens são
teriomórficas. Por exemplo, a família central é composta pelo pai Urso, a
mulher Antílope, o filho Raposa e a recém-nascida Andorinha, logo, cada uma
destas personagens é desenhada de acordo com esses animais. Desconhecendo com
precisão os mecanismos antropológicos destas culturas – e sabendo que não se deverão
confundir os Sioux com os Lakota, os Iroquois dos Apaches num genérico “índios”
-, alimentaremos apenas algumas pequenas dúvidas sobre se todas elas assumem
nomes totémicos de animais, e em que fase, e até se esta ideia não é uma
generalização fantasiosa da parte dos forasteiros, como nós. E mesmo
acreditando que exista algum grau de pesquisa intenso para a construção destas
paisagens, dos modos de comportamento, vestuário, acampamento, caça, etc., e
sobretudo da correcção dos mitos particulares que são apresentados, é possível
que exista algum grau de generalização dessa natureza.
Seja
como for, o mecanismo de termos cada personagem representada como um animal individualizado
leva a dinâmicas curiosas, sobretudo quando mergulhamos ora em mitos que de
facto falam de animais antropomorfizados (a lenda da tartaruga e da lebre – adaptada
de Esopo para servir a estruturas similares? -, as histórias com a Raposa,
etc.) ora quando se mostram relações com animais (búfalos, ursos, serpentes,
etc.). E cada autor, com os seus instrumentos expressivos particulares,
conseguem transmitir vários modos de emoção, intensidade, e complexidade
psicológica nestas histórias.
Não poderemos dar conta aqui de todos e cada um dos artistas. Alguns
deles apresentam abordagens extremamente estilizadas (como Zaex Starzax) ou com
grafites suaves (o próprio Marra), histórias sem palavras (a dupla Luca
Blengino-Lai Tat Tat Wing) ou construídas como sequências de cenas distintas (a
de Alessandro Di Virgilio-Hernân Chavar). Essa diversidade como que espelha
aquela dos próprios povos e funções de cada mito, que pode ser contado para
ensinar a não desperdiçar comida, mesmo a mais pequena migalha, até a respeitar
as armadilhas deixadas por outros, a compreender a necessidade de se ser bom
anfitrião ou perceber a origem de uma estrela.
Mas a própria viagem serve para revelar toda uma série de
relações. Aquela forte e amorosa entre os membros da família, um modo de
compreensão dos ciclos da terra e o modo como se gerem os recursos, as atitudes
perante o medo, a morte, o outro. Não deixa de haver aqui um certo grau de
idealismo ante-europeu, como não pode deixar de ser, já que a chegada da “civilização
ocidental” significou a literal destruição de um ecossistema e de um sistema
complexo de culturas distintas. Além disso, a própria escolha de personagens
teriomórficas tem um resultado ulterior. A transformação pós-Ocidental das
Américas trouxe uma diferença absoluta entre a esfera humana e tudo o resto,
inclusive a Natureza, que passou a ser vista como algo exterior a nós, ou de
que nos excluímos (“ultrapassamos”, “transcendemos,”, etc.), consequência da
praticabilidade e funcionalidade do mundo para com os fitos humanos. Mas este
livro, mostrando uma simples mas bela viagem pela Terra, a pé e alerta, como
reza o posfácio, abre-se para um tempo em que havia apenas “uma diferença
subtil entre homens e animais”.
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