31 de julho de 2015

Showa. A History of Japan (4 vols., 1926-1989). Shigeru Mizuki (Drawn & Quarterly)

Esta nova série de livros do autor faz já parte de um corpo de trabalho mais alargado. Trata-se de um projecto de longa duração que entrosa a autobiografia com interrogações de cariz político sobre a história da Japão, nomeadamente uma crítica acerba e musculada de um posicionamento insustentável de uma certa superioridade e excepcionalidade do povo japonês face às suas relações históricas com outros povos, desculpando o seu imperalismo e nacionalismo, violento, e cujas consequências ainda se fazem hoje sentir nas suas relações bilateriais com as antigas colónias ou países agredidos, como a Coreia, a China ou a Tailândia. A desresponsabilização do Japão em relação a esses crimes (até certo ponto, similar à desculpabilização que Portugal ou os portugueses fazem às suas antigas colónias), muitas vezes expressas pela sua classe política e alguns sectores da cultura popular, faz com que a missão de Mizuki seja urgente. (Mais) 

Shigeru Mizuki, nascido em 1922, é veterano da Guerra no Pacífico, logo este tipo de relato é fortalecido, em parte, pela sua inscrição como autobiografia, mesmo que o seu escopo seja de alcance internacional. Isto é, o autor não se atem somente a relatar o que ia sucedendo na sua vida pessoal, à escala das suas experiências, mas vai apresentando-o como parte integrante de todos os conflitos não apenas no Pacífico mas em todos os palcos do conflito global, inclusive as frentes da política doméstica e internacional. O livro utiliza episódios da vida familiar do autor, nas partes mais “leves”, digamos assim, emprega uma das suas personagens recorrentes – Nezumi-Otoko, ou “Homem Rato”, da série GeGeGe no Kitaro [v. última imagem] - para criar diálogos ficcionais mas enquadrando o contexto histórico, notas explicativas de estratégias militares, armamento, decisões políticas, situações sociais e ainda dramatizações de acontecimentos da história pública, criando uma complexa textura de linhas narrativas. A integração de mapas, esquemas de avanços e recuos militares, imagens que atravessam as duas páginas, como um spread, mas ainda assim enquadradas nas vinhetas (uma forma que remete na verdade à típica encadernação e emolduramento dos livros de imagem do século XIX no Japão), trazem níveis de interacção entre as partes mais propriamente narrativas e aquelas mais expositivas que reforçam a pertinência tanto de focar a história pela perspectiva individual do autor como informar essa mesma experiência pelo tecido colectivo.

Tendo perdido o seu braço esquerdo, sofrido de malária e outros problemas que se manteriam a vida inteira, Mizuki não pode fazer parte, de forma alguma, daquele grupo de japoneses (e weeaboos) que olha para o período da II Guerra Mundial como um momento de “perda” e “humilhação” face às forças internacionais (seja do imperalismo ocidental ou do comunismo internacional), mas explora as razões e responsabilidades dos próprios poderes do Japão. Nesse sentido, e como tão bem explica Frederik L. Schodt nas suas introduções a estas edições norte-americanas, Mizuki é um autor que ombreia Keiji Nakazawa e Osamu Tezuka no sentido de autores que tiveram a experiência da guerra e não se coíbem de a olhar e contextualizar com uma grande franqueza, mesmo que isso signifique criar um j'accuse em relação ao próprio Japão.

Tendo trabalhado como artista de kamishibai, o autor está mais do que habituado, e de forma directa, a compreender o que interessará de forma viva o seu público imediato, e não é de surpreender que ele seja conhecido por toda uma série de histórias que rondam o folclore fantástico japonês – aliás, recuperam mesmo, tendo sido em grande parte Mizuki, antes da animação, a trazer de volta os yokai , ou as figuras de um folclore fantástico local, para as suas histórias. Ele tem mesmo uma enciclopédia dessas criaturas, mas é provavelmente GeGeGe no Kitaro o título mais famoso, que foi sendo trabalhado ao longo da década de 1960 (veja-se igualmente NonNonBâ). Um dos aspectos curiosos é que a divisão entre comercial e alternativo, para Mizuki, pode fazer sentido em termos de topicalidade, mas não se abordagens estilísticas nem, claro está, da própria pessoa. Ao passo que aquela série juvenil daria origem a todas as adaptações expectáveis, Mizuki estaria envolvido igualmente com a “vanguarda” do seu círculo, ou pelo menos, numa atitude preocupada em criar bandas desenhadas com uma inclinação política mais engajada e contrária aos discursos hegemónicos do seu tempo, já que produziria alguns trabalhos para a Garo, onde, de acordo com Paul Gravett, Yoshiharu Tsuge chegaria a ser seu assistente.
Ora, na senda dessas transformações ou desdobramentos internos, na década de 1970, Mizuki começou a trabalhar em outras frentes que não o fantástico, e aproximando-se do seu interesse pela 2º Grande Guerra, a não-ficção e até mesmo a autobiografia. O seu primeiro projecto deste grupo de trabalhos seria aquele livro traduzido em inglês como Onwards Towards Our Noble Deaths, seguido da biografia de Hitler e finalmente chegando a esta longa História do Japão, originalmente produzida entre 1988 e 1989. Seguir-se-ia Life of Mizuki, também recentemente publicada em língua inglesa pela D&Q. 

Se bem que por vezes nos deparemos com algumas leituras da obra de Mizuki como pertencendo ao campo do “entretenimento educativo” ou edutainment, estamos em crer que Mizuki atinge outro nível de complexidade, não apenas por esta urgência política a que os seus livros obrigam mas também pelas questões criadas pela forma do seu trabalho. Se podemos dizer que existem momentos mais “leves”, eles passam pelo facto de Mizuki se mostrar a si mesmo – será genuíno, verdade, exagero? - como um verdadeiro borra-botas simplório, incapaz de seguir algumas regras básicas de obediência militar, sendo o palhaço do grupo, estando sistematicamente a ser mal-tratado pelos oficiais (com menor ou maior razão, “militar”)... Mas ao mesmo tempo é isso que aumenta a simpatia da personagem, o foco humanizado da obra e, ao mesmo tempo, que reforça a ideia retórica de que depois qualquer das suas acções heróicas, como o acto de sobrevivência, a relação humana e calorosa com os pobres habitantes da ilha, etc., seja vista sob uma luz benfazeja e significativa.

O jovem investigador holandês Rik Spanjers tem feito vários trabalhos em torno da representação história pela banda desenhada, estudando o modo como a escolha de sistemas estilísticos, como o naturalismo ou realismo, ou abordagens mais estilizadas, desde logo informam certas atitudes ou valorizações políticas em relação aos tópicos. Numa apresentação recente em Amsterdão, Spanjers discutiu a mistura de estilos na superfície de um mesmo trabalho, ao abordar a obra de Shigeru Mizuki. Seguiremos aqui algumas das suas lições.

Como explica Spanjers, apesar de alguns desses livros poderem ser irmanados por temas recorrentes, ou melhor, por se tecerem em torno da experiência autobiográfica de guerra de Mizuki (ele foi colocado pelo exército japonês em 1941 em Rabaul, hoje Papua Nova Guiné, durante os períodos mais dramáticos dos conflitos entre os Estados Unidos e o Japão, numa intensa guerra envolvendo forças navais, aéreas e terrestres, envolvendo em grande parte a população local, apanhada a meio), eles podem ser vistos como pertencentes a géneros distintos. Onwards poderá ser considerado “um relatar ficcionalizado”, Life of Mizuki uma “autobiografia” mais concentrada e Showa uma “história do Japão”. Spanjers cita o realizador de documentários John Shearman, que em 1946 cunhou o termo de “casamento em tempo de guerra” [wartime wedding] para se referir a uma aliança entre dois estilos aparentemente contrários de fazer cinema na época, ou então bastante distintos para se pensar que não seria possível uma aproximação e muito menos uma junção: os documentaristas utilizando algumas das técnicas acessíveis apenas em estúdio, e os realizadores de ficção procurando na realidade elementos que pudessem trabalhar. Spanjers “traduz” esta ideia para a banda desenhada, e encontrando em Mizuki um exemplo paradigmático, para falar de uma permanente negociação entre o fotorealismo e o esquematismo. O que é surpreendente, porém, é que o autor japonês não procura destilar ambos os estilos, ou criar um casamento alquímico e transcendente; por isso é que falamos em negociação. Esses estilos podem ser distribuídos ao longo das páginas dos livros ou, por vezes, serem partilhados numa mesma imagem, seja spread, prancha ou apenas vinheta.
Existem passagens em que se separam vinhetas grandes, de cenas de batalhas, desenhadas com texturas obsessivas, detalhes quase barrocos, e outras onde surgem as personagens debuxadas com meia dúzia de linhas. Mas há muitos outros momentos onde, numa mesma imagem, se criam travessias entre esses estilos. E se as imagens mais realistas podem fazer recordar alguma daquela banda desenhada de guerra que seria cultuada ao longo dos anos 1940 a 1960, sobretudo no mundo ocidental, os personagens-diagrama são totalmente devedores das abordagens simplificadas da mangá moderna para cuja “gramática” o próprio Mizuki seria um contribuidor de peso.

O uso de personagens desenhadas de modo quase diagramático levam a que se tornem em cifras de absoluta legibilidade, assim como de um dinamismo, identidade veloz, e funcionabilidade inegáveis. Nada disto tem a ver com a suposta “teoria da identificação”, proposta por Scott McCloud e outros dos seus seguidores, na ideia de que uma personagem desenhada de forma simplificada funcionaria melhor para atrair a identificação do leitor. A nosso ver, essa teoria não é mais do que uma espécie de desculpa facilitista em abordar a potencial análise artística de um trabalho, e por mais “mágica” que essa noção se pareça, ela não tem qualquer poder explicativo. Mais, essa noção falha mesmo na compreensão do sucesso de muitos exemplos de banda desenhada que não respeitam esse princípio gráfico, assim como o insucesso ou parcial felicidade de outros que aparentemente o fazem. Poder-se-ia pensar que esse uso seguiria uma distribuição clara entre personagens representando os japoneses, por um lado, e, por outro, os “outros”, sejam os soldados inimigos, principalmente norte-americanos, e os habitantes das ilhas ocupadas. Mas isso não corresponderia à verdade. Ainda que não possamos passar por cima de uma certa representação das personagens negras como obedecendo a toda uma série de esquemas pré-determinados, estereótipos problemáticos, que complica uma (impossível) leitura neutra, no interior da economia de Mizuki tenta-se uma humanização de todas as personagens através da atribuição de voz a todas elas, à criação de situações em que os seus desejos e e medos são expostos, ou à oportunidade em as colocar em diálogo directo entre si, matizando essas mesmas relações e representações. A desumanização completa do outro, em vigor no Japão belicista, é estudada ao longo da obra: criada por sistemas extremamente efectivos de propaganda, dispensados pelos meios de comunicação social, a escola, e mesmo a cultura popular ou o discurso diário, quotidiano, na rua, que faz com que a pressão dos cidadãos convertidos por essas ideias os leve a olhar, de imediato, aqueles que estavam menos convencidos como cobardes ou, na pior das hipóteses, traidores.

A criação dos fundos realistas, detalhados, quase texturados em termos de representação naturalista, todavia, não surgem aqui para criar um qualquer efeito de referencialidade. Não estamos aqui a falar das estratégias sobejamente conhecidas dos cultores da “linha clara” tão fomentada na banda desenhada franco-belga clássica. Bem pelo contrário, pela economia de representação e gestão narrativa da própria obra, essas representações acabam por servir como disruptoras, como desestabilizadoras, desmitisficadoras dessa mesma realidade. Em vez de se aproximarem da suposta “objectividade” ou “transparência” do meio fotográfico, uma forma de representação mecânica e automática, ela serve um processo de distanciamento e des-naturalização, até mesmo de criação de momentos icónicos arrancados à urgência do tempo – isto é, da sua duração, que é como quem diz, da experiência à escala humana.

Afinal, se o projecto de Mizuki é precisamente desmistificar a guerra, não querendo apresentá-la de forma alguma como uma oportunidade para glórias, sejam elas individuais ou colectivas, mas sim demonstrar a desumanização perpetrada pela “máquina da guerra”, começando pela sede de poder das cúpulas militares e terminando na desresponsabilização da soldadesca, esse programa encontra uma forma sublinhada neste seu paradoxal emprego de estilos contraditórios. Na verdade, e ainda influenciados pela brilhante leitura de Onwards Towards Our Noble Deaths por Rik Spanjers, o realismo pseudo-fotográfico em Mizuki está mesmo do lado da morte, na natureza morta, da destruição. Como escreve o investigador, “a impossibilidade da representação [é] fornecida através de uma representação falhada [failing].”

Não podemos fazer aqui uma análise cuidada e detalhada de todas as estratégias de representação, e a sua distribuição pelos episódios narrativos e relação com a faixa textual. Spanjers faz desde logo esse trabalho, e de modo pormenorizado demonstra como essa mesma distribuição é significativa e tem um papel decisivo em termos éticos, no projecto do autor.

Não tendo lido o último volume, que se estende até ao (então) presente do autor, desconhecemos que tipo de investigação se fará sobre as consequências a longo prazo desta interrogação sobre a História. O título, em quatro monumentais volumes (datando de 1926 a 1989, com mais de 500 páginas cada um), com introduções curtas mas iluminadoras, pejados de notas explicativas das personagens históricas e pormenores da cultura da época, é uma história pessoal de um país e de uma cultura, um exercício pleno de cidadania que procura perscrutar o lado negro de uma “alma nacional”, os crimes a que ela levou, mas, ao mesmo tempo, à possibilidade de que, através da interrogação no presente e à responsabilização do próprio, se possa avançar para, não tanto o saneamento da história, mas pelo menos à formulação das condições necessárias a um diálogo são e pacífico.

Nota final: agradecimentos a Filipe Abranches, pela troca e empréstimo dos volumes, e a Rik Spanjers, pela troca de ideias e disponibilização do seu paper

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