6 de julho de 2015

The King in Yellow. Robert Chambers e INJ Culbard (Self Made Hero)

Como havíamos indicado já na leitura da adaptação de The Dream-Quest of Unknown Kadath, de Lovecraft por Culbard, este artista britânico estava a trabalhar uma outra adaptação da literatura do horror fantástico, ou mais especificamente, da literatura weird. Aliás, estava mesmo a dedicar-se a um dos autores que é apontado como um dos seus progenitores: Robert W. Chambers. Apesar da alargada produção literária deste escritor norte-americano da passagem do século XIX, sobretudo numa veia romântica, é The Yellow Sign, de 1825, um volume de contos, a sua obra mais famosa. Por duas razões, estamos em crer. Em primeiro lugar, por ser uma enorme influência sobre H. P. Lovecraft, Derleth, e outros escritores que dariam continuidade à “mitologia” de Cthulhu, de Carcosa (o reino referido em Chambers), e as mesclas destes universos, iniciadas pelo próprio Lovecraft; em segundo, e mais recentemente, por ser uma das referências recorrentes, mas oblíquas, da primeira série de True Detective, de Nic Pizzolatto. Ei-la. (Mais) 

O livro de Culbard exerce uma escolha editorial sobre o volume de contos de Chambers. Ao passo que a obra original contém dez relatos, Culbard utiliza apenas os quatro primeiros, que são precisamente aqueles que estão ligados intertextualmente pelas referências à peça teatral proibida The Yellow King, a essa mesma personagem misteriosa e o sigilo que o simboliza. Além disso, Culbard inverte a ordem dos contos e constrói ligações entre as personagens onde elas não existiam, criando portanto um tecido de maior coerência diegética transversal em relação ao trabalho de Chambers. Mais, tendo em conta ainda que o propósito, estilo e até mesmo a força literária de Chambers, e aquilo que se constituiria como a sua maior influência, se encontra na natureza ambivalente, estranha, Unheimlich e inquietante dos ambientes, mais do que a construção sólida e psicologizante das suas personagens, ou mesmo até o burilar preciso de uma intriga unívoca, torna-se evidente que o esforço de Culbard se encontra menos na tradução dessa mesma ambivalência – algo que, por exemplo, e ainda como máxima conquista, Breccia havia feito em relação a Lovecraft, com o seu Los mitos de Cthulhu -, do que na re-mediação e re-formulação dos mesmos elementos numa história mais coesa.

Isto significa que, tal como ocorrera nas outras adaptações de Lovecraft – e julgamos não ser um erro tremendo nem deletério considerar que a abordagem ao livro de Chambers se faz sob o signo daquele escritor, mais tardio, de weird fiction -, Culbard impõe um grau de maior clareza, legibilidade e direcção. O que é corroborado mesmo pelo seu estilo de desenho, composição, cor, e até mesmo da gestão dos textos em si, da forma como coloca as citações da peça maldita, os diálogos, e a total ausência de uma voz de um narrador externo. Quando existem legendas, são apenas diálogos deslocados do espaço de enunciação, criando continuidades temporais e espaciais, logo reforçando a sua unidade diegética.

Cada um dos contos de Chambers foca uma personagem que, de uma maneira ou outra, se depara com um misterioso e proibido livro intitulado The Yellow King. Trata-se, aparentemente, de uma peça teatral, curta, de dois actos, que se refere a um estranho reinado num outro planeta, da Dinastia de em Carcosa, oculto algures no universo, mas que exerce uma estranhe a satânica influência na Terra. E a figura central desse estranho poder é o “Rei de Amarelo”. Os quatro contos unidos nessa referência mostram fragmentos de alguns dos diálogos, ou pormenores da sua história, mas nunca é apresentada na sua completude. O que se sabe é que a leitura do segundo acto, que revela os abissais segredos do mais profundo desassossego e terror existencial, leva os seus leitores a uma loucura, em vários graus de força. Algumas das personagens dos contos ficam loucas ao lê-lo, outras parece terem já escapado, mas vivem sob a sua terrífica influência.

Artistas, artesãos, casais apaixonados ou mergulhados em triângulos fatídicos, estranhas personagens que atravessam os medos e noites dos protagonistas (muitas vezes assumindo características físicas de “estrangeiros” mais ou menos genéricos que apontam a uma constante algo xenófoba presente em Chambers e Lovecraft) pululam nestes escritos, mas Culbard tece uma linha que os torna uma pequena família. O protagonista de “The Yellow Sign”, o mais onírico e maravilhoso dos contos, torna-se o mesmo que encontra o seu fim, uma morte transcendente nas mãos do Rei de Amarelo, em “In the Court of the Dragon”, tornando portanto este conto na continuação e corolário do anterior. Além disso, essa personagem é amiga pessoal dos protagonistas de “The Repairer of Reputations”, uma espécie de ficção política-conspirativa com laivos de fantasia, e dos de “The Mask”, que parece ser o único (se isto é possível dizer) “conto feliz” do volume, ainda que se revista de contornos trágicos, horrendos, e de uma abominável ciência artística. Portanto, Culbard, ao instituir este simples mecanismo de união entre as personagens, traz um nível acrescido de agregação dos contos numa espécie de universo diegético unido, algo que poderá ter aprendido, naturalmente, no próprio meio da banda desenhada.

Em relação aos livros anteriores, as adaptações de Lovecraft, não há grandes alterações em termos de metodologia. Temos um livro cuidado, competente, numa variação actual e convencional da linha clara. A legibilidade está acima de tudo. Parece que o autor opta particularmente por representar aqui as personagens com olhos muito grandes, e apenas compostos pelas íris coloridas, sem pupilas, o que lhes incute um ar alucinado, maravilhado, assustador e tétrico, à vez, conforme os contextos e ou os outros traços de expressividade.
Uma adição à pequena “biblioteca” de adaptações da literatura estranha, que poderá mesmo ser visto como um projecto coeso em si mesmo, mas que merece igualmente ser pensado em contraste com outros projectos comparáveis, como já havíamos indicado.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Imagens colhidas da internet. 

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