14 de julho de 2015

→ . Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)

Poder-se-ia argumentar que a banda desenhada nasceu (“always already”, apetece acrescentar) num ambiente meta-textual. Quer creiamos na teoria da origem num só ponto/autor (Töpffer) ou em múltiplas origens (cf. Thierry Smolderen), encontraremos em muito dos exemplos da banda desenhada da modernidade (a partir do século XVIII) experiências que jogam com a própria forma que se foi cristalizando no que se conheceria por esse nome. Quer se pense nos comentários sobre o próprio desenho no interior da narrativa (de novo, Töpffer), ou na mostra de marcas pseudo-indexicais no próprio trabalho (Doré), ou ainda por revelar as próprias limitações do uso das imagens fragmentárias (Christophe, Frost, Caran D'Ache, Verbeck), sempre existiram artistas que exploram a própria materialidade do meio como um comentário auto-reflector. Contudo, é também discutível o facto de que, ao longo da sua história, a banda desenhada se foi tornando mais ou menos subsumida a formas e convenções “clássicas”, as quais contribuíram para a noção de que este seria um meio transparente, aberto de forma simples para um espaço de mundos imaginários. É graças a essa história (ou melhor, a essa percepção parcial da história), ou “normalidade”, que certos autores podem ser vistos como “experimentais”, “vanguardistas”, “diferentes”, “artísticos”, e por aí fora. (Mais) 

Independentemente das recomposições sociais e culturais que têm ocorrido ao longo do século XX e XXI, sobretudo as que dizem respeito à recepção crítica da banda desenhada como um todo (que nunca o é, é sempre fragmentária), esta é uma arte ainda vista como estipulando-se por denominadores normativos, contra os quais surgem estas “excepções”, em vez de serem vistas como pura e simplesmente práticas correntes. Ainda assim, uma das possíveis revitalizações da banda desenhada, enquanto prática artística, passa precisamente por um ou outro tipo de reformulações materiais, um repensar do próprio formato do livro ou da sua navigabilidade de leitura. Existirão vários graus dessa prática, mas estamos em crer que Ruppert e Mulot, Zak Sally (esperamos vir a falar de projectos destes artistas em breve), Pedro Franz, e uns quantos outros, conseguem ultrapassar as expectivas do... poderemos dizer?, além-livro.

Marc-Antoine Mathieu sempre construiu as suas melhores meta-bandas desenhadas perfeita e profundamente ancoradas na tradição dita franco-belga. Muitos dos seus livros, sobretudo a série protagonizada por Julius-Corentin Acquefacques, são álbuns típicos, do tipo 48CC. Mas mesmo noutros livros, sejam publicados pela L'Association ou pela Delcourt, ou noutras plataformas, os seus livros jogam com as expectativas criadas por esses formatos, colecções ou vida social particulares desses títulos. O mesmo acontece com este livro-livro, ainda que a sua capacidade de reformulação não seja tão distinta e forte quanto a dessas outras referências.

O impronunciável título expressa-se por uma grossa e infográfica seta, apontando para a direita. Na capa, a personagem parece não apenas olhar para o horizonte infinito que se estende atrás (à frente dele), mas a ligeira inclinação do pescoço faz-nos acreditar que a sua linha de visão repousará no título. Ele olha, portanto, a direcção pela qual deve partir. O livro inicia-se na mais completa escuridão, uma porta que se abre para um deserto iluminado, e a viagem da personagem.

Nunca lhe vemos o rosto. Mesmo quando está virada para nós, o seu chapéu tapa-lhe o olhar, ou uma sombra, a ou a posição. Ou, mesmo que um plano e aproxime dele, a sombra não abandona o rosto. Talvez seja mesmo parte constituinte do seu rosto, e não estejamos no plano da representação.

Inexoravelmente, ele avança, e nós com ele, virando cada página. Sistemática e repetidamente, instruções surgem sob a forma de setas: ora em pólos de múltiplas escolhas, ora estruturas escondidas sob a areia, ora inscrições numa parede, bússolas e papéis impressos, um novelo de setas. O homem continua a caminhar, penetra edifícios, persegue sombras, obedece a instruções aleatórias ou de propósitos ocultos, tomba na inevitável armadilha, percorre labirintos, deixa-se levar por correntes, imagina, talvez, ser capaz de escapar a esse movimento. “Imagina” é talvez uma palavra deslocada, neste contexto, pois não há dimensões psicológicas a explorar em , apenas a espessura brevíssima e momentânea da página que folheamos. Todavia, o tempo é também linear de uma forma final, já que o homem envelhece, e possivelmente encontra a morte quando se confunde com a própria sombra, a qual partilha a forma da seta. Poderemos então ler , quem sabe, como o contrário da lenda de Peter Schlemihl: apesar do protagonista deste livro ter uma sombra sua, ele parte em busca de outra, e ao encontrá-la, chega ao fim do movimento.

Tal como noutros casos da obra de Mathieu, o autor deseja que a leitura do livro seja igualmente um exercício de pensamento sobre a própria leitura, e o objecto que percorremos. Em termos da primeira, a imitação absoluta do movimento e da linearidade do percurso com a unidireccionalidade do livro torna-se tão patente que se torna um reflexo quase cómico, irónico, mas também dramático. Não podemos escapar a ele sem que paguemos o preço de não ler. Quanto à materialidade, o livro é interrompido a três quartos, quando o protagonista se depara com uma mesa no meio do deserto cheia de objectos: uma moldura com um retrato, um embrulho, uma colecção de pesa-papéis de vários tamanhos, um molho de chaves, uma caixa de fósforos, um relógio despertador, caixas embutidas, um pião e um livro. Esta descrição é também pobre, pois é apenas por aproximação: todos esses objectos têm a forma das setas. O livro é aberto e lido pelo protagonista: tem as páginas totalmente em branco, com excepção dos cantos exteriores onde está impressa a seta, repetida. A meio desse livro, o protagonista depara-se com um desdobrável integrado. Nós também. A partir dessa página, não apenas a focalização do narrador visual está encaixada com a do leitor em escalas diferentes (algo que ocorre de Tintin a vários exemplos da literatura), como o nosso próprio movimento, desdobrar, leitura, se confunde ou imita a do protagonista. Se todo o livro poderá ser um convite à ilusão de que o protagonista e o leitor são a mesma pessoa, aqui a ilusão é total, ou se nos for permitido o paradoxo, diríamos que a imersão transborda.


O desdobrável revela uma mensagem, encriptada, tal como a contra-capa do livro lido pelo protagonista, levado por ele na continuação do percurso, mas desaparecendo no bolso do casaco (bolso que desaparece também). A mensagem é legível, ou decifrável, na medida em que essas “letras” são apresentadas também como o nome do autor e da editora no interior, o que ajuda a criar uma chave interpretativa. A mensagem não é particularmente obscura, mas tampouco recompensadora, do acto de a decifrar: é tão-somente uma camada adicional à estranheza procurada pelo autor, mas sem que se crie um total absurdo, como ocorreria noutros dos seus trabalhos. Por vezes sentimos que este movimento, deste livro, é apenas um breve truque, um efeito, e não propriamente uma pesquisa profunda sobre o acto de desfrutar e abandonarmo-nos à leitura de um livro.


Louis Lüthi, no seu pequeno ensaio de On the Self-Reflexive Page, (Roma Publication; 2010)aponta Tristam Shandy como “o inventor da página – a página não enquanto recto ou verso de uma das folhas de papel que são juntas para fazer um livro, mas como o espaço determinado num ponto específico da narrativa” (minha ênfase). Mathieu, com , transforma toda e qualquer página num espaço determinado do percurso do protagonista. A comercialização do livro tem obrigado à referência ao seu título “traduzido” em palavras como Sens, “Sentido” [que usamos para os ficheiros das imagens], em ambas as acepções, de direcção espacial e significado. Em ambos os casos, parece-nos haver aqui alguma contrição. Tememos mesmo que nos ficamos por um scherzo, interessante até ao ponto do seu desvendamento, que é rápido e curto, e cuja sobrevivência na multiplicação de sentidos não fica de forma alguma assegurada pela sua inflexível unidireccionalidade. Isto é, seria falso contemplá-la como uma obra metaléptica. Bem pelo contrário, a sua implacável decisão e afirmação acaba por esgotar a sua abertura, fechando a viagem antes de a encetar. 

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