7 de julho de 2015

Segredos na floresta. Jimmy Liao (Kalandraka)

E se a noite não fosse habitada por monstros nem inquietações ou ansiedade, e fosse simplesmente o momento de nos abandonarmos a uma fuga por entre paisagens, onde decorrem festas e encontros? Esta é uma pergunta que é colocada pelo homem desde que a consciência humana emergiu, provavelmente, e são os autores da literatura e do cinema infantil que mais têm respondido. O livro de Liao é uma outra dessas respostas. (Mais)

Liao é um ilustrador que gosta de explorar todo o espaço de composição a que tem acesso, e particularmente parece apreciar preenchê-lo através das mais apertadas texturas e superfícies que transmitem sensações tácteis, em cores vivas e alegres que se contrastam ou complementam, mas sempre se celebram. O seu trabalho a preto-e-branco (ou de cizentos, ou cores mais contidas) faz com que a qualidade háptica da sua obra se saliente, e, de certa forma, se crie um mecanismo de concentração temática e conceptual.

Se existem afinidades com outros autores nesse aspecto, elas poderão ser mais formais do que narrativas, temáticas ou contextuais. Por exemplo, a forma algo tranquila como as paisagens e os objectos são criados, mas com uma presença carregada de texturas contrastantes (o pêlo do coelho gigante, os troncos das árvores, a erva alta, os corsários da protagonista, e mesmo os leves borrões das nuvens), poderiam recordar a composição de Edward Gorey. Mas onde este último é obsessivo, e cujo propósito é um ambiente inquietante, as largas áreas em branco de Liao, e a aliança a um passeio nocturno sossegado, torna essa fluidez mais sentida.

Em relação ao livro anterior publicado pela Kalandraka, Segredos na floresta parece estar dirigido a um público mais jovem (o que não impede, como é óbvio, a transversalidade dos públicos). Há uma maior concentração de espaços, de tempo e de personagens, mas precisamente para depois poder deixar soltar as amarras à narrativa. Afinal de contas, é algo que possui uma estrutura clássica: o passeio onírico. A noite inicia-se e convida os protagonistas a atravessar as paisagens às quais o sonho se abre, e depois desse voo o regresso ao mundo da vigília ou é garante de uma lição, ou de uma profunda sensação de felicidade, ou até de alívio, ou então, como é o caso subtil de Segredos, à possibilidade da confusão desses territórios usualmente separados.

Bastará pensar na “trilogia” de Sendak, também publicada pela Kalandraka, para encontrar exemplos máximos dessa viagem e voo (por isso, falámos de “alívio” no regresso, pois Sendak explora com mais intensidade a angústia), mas também em filmes como The Snowman de Briggs-Murakami, literatura como a Alice, etc.

Na sua esmagadora maioria, as páginas apresenta-se em spreads, e mesmo quando a imagem se isola numa das páginas, cria-se sempre a ilusão de uma paisagem panorâmica e mais alargada, seja ela interior ou exterior. A matéria verbal é sempre deixada numa margem ou espaço isolado, não porque pudesse conspurcar a parte visual, mas porque se deseja concentrar na sua estrutura mínima, e logo, na sua precisão semântica. Muitas vezes as frases estabelecem questões respondidas ou intuídas pelas imagens, outras poderá repetir ou tornar clara a sensação interna da protagonista face aos comportamentos que testemunhamos, outras tantas abre-se antes a uma interrogação mais profunda e interrompida em termos do significado final. E são esses mesmos momentos, talvez, aqueles que criam a lição de ferro do livrinho. Porque não imaginar que os objectos quotidianos, como a passadeira numa rua, possam ser os pontos de passagem de uma floresta onírica? Que o negrume da noite é o pêlo de um animal imenso mas delicado? Porque não imaginar que o assobio do vento à janela é um convite a um passeio?

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

Sem comentários: