16 de julho de 2015

The League of Regrettable Superheroes. Jon Morris (Quirk Books)

Corre a ideia feita de que o género dos super-heróis é o único género que nasceu em exclusividade no cadinho do meio da banda desenhada. Não nos compete a nós contestar nem defender essa ideia, que peca, a nosso ver, por, paradoxalmente, misturar forma e conteúdo mas não tomar em atenção especificidades formais e expressivas do meio, cristalizar um conceito apesar das suas constantes reformulações e todavia estender em demasia a atenção por campos diversos e até mesmo incomparáveis. Aceitemos, porém, essa ideia. Por mais que seja um conceito de que se goste, por estar embebido em toda a sua cultura (os super-heróis são uma “cultura holística”, e não propriamente um campo alargado no qual depois se possam escolher intensidades), eles são um modelo de uma fantasia algo estrambólica. E como sabem os seus leitores, mais até do que os não-leitores, há variadíssimas gradações de delírio. Este livro pretende encontrar personagens com um elevado grau desse delírio. (Mais) 

Este é um pequeno livro, mas poderá ser considerado como uma espécie de coffee table book, no sentido em que é menos um estudo textual corrido, do que uma pequena enciclopédia visual apresentando um florilégio de personagens de super-heróis, criadas desde o início dos comic books (no final da década de 1930) até aos anos 1990 [mas ainda permitindo que possa ser visto como um contributo "académico", "histórico"], que não medraram nem se mantiveram na memória dos leitores da melhor forma. Apesar do título empregue pelo leitor, que se associa à conhecida série de Alan Moore e Kevin O'Neill, a palavra “regrettable”, traduzível por “desditoso”, “desventurado”, “infeliz”, etc., surge mais como chamariz do que juízo de valor sobre todas estas personagens.

O que torna uma personagem mais ridícula do que a outra? A sua exposição e manutenção na memória. Estamos hoje tão habituados ao Homem-Aranha e a Thor, ao Batman e Super-Homem, à Mulher Maravilha e Hellboy, temos acesso a um tal número de textos “de qualidade” com essas personagens, que não apenas não as pautamos pelas piores prestações como olhamos para tudo o que não atinge o seu grau de fama e proficiência como “falhado”. Por isso, é relativamente fácil rirmo-nos ao considerar personagens tais como Dr. Hormone, The Face, Ghost Patrol, Skate Man, Adam-X, the X-Treme, etc. e não daquelas que preenchem hoje os ecrãs de cinema... apesar das suas premissas poderem ser tão ridículas como as demais.

Desenganem-se os leitores que poderiam apontar a razão destes (relativos) insucessos como sendo da responsabilidade dos seus criadores, pois encontraremos aqui personagens criadas e mantidas por nomes tais como os de Will Eisner, Jerry Siegel e Joe Shuster, Joe Simon e Jim Steranko, Dave Wood, Roy Thomas, Joe Buscema, C.C. Beck, Gil Kane, Steve Ditko, Jack Kirby, Neal Adams, etc. arvorados cada qual como grandes “mestres” do género. Tampouco as máquinas editoriais pujantes são a responsável, que aqui tentariam fórmulas que não medraram. As razões são variadas, mas Jon Morris, pela forma como escreve as entradas relativas a cada personagem, parece sublinhá-las sobretudo em relação às ideias espatafúrdias e ridículas que as presidem: um homem que se veste de palhaço para se infiltrar no crime organizado; um olho detective que flutua no ar, um canguru treinado em artes marciais; um veterano do Vietname que se veste de pirata com skates para combater o crime; um médico que transforma as pessoas através de hormonas para conseguir efeitos incríveis; um homem que, por ter sido exposto à radiação, desenvolve capacidades extraordinárias (em vez de cancro); e um jogador de futebol americano que ganha poderes por literalmente mergulhar numa sopa de químicos e fogo de uma pilha de souvenirs desportivos. A sério. Este último chama-se, sem grande inventabilidade, NFL Superpro. Pois.

Um dos problemas deste livro é que a contextualização histórica e social nem sempre é feita de uma forma equilibrada. Sendo a premissa a criação de uma espécie de rápida enciclopédia visual presidida por conceitos, ou atitudes, contemporâneas face aos super-heróis, mesmo admitindo alguma diversidade de estilos, posicionamentos e géneros com esse tropo, é natural que se olhem estas personagens “falhadas” como... bom, “falhadas”. Mas algumas delas tiveram algum sucesso comercial (crítico seria difícil de defender, pela sua ausência discursiva) durante a sua existência, como foi o caso de The Doll ou Peacemaker (que chegou a surgir em algumas edições portuguesas, como mostramos aqui). Há casos em que até se poderia argumentar terem algumas qualidades, como é o caso das estranhíssimas histórias cósmico-psicadélicas de Hank Fletcher, ou as óperas siderais alucinadas de Kirby, ou mesmo a melodramática vida de Rom.

Morris mistura personagens nascidas nas páginas de comic books de editoras com algum peso (Marvel, DC, Harvey, Dell, etc.) como de plataformas menos musculadas, passando por edições associadas a brinquedos, excrescências narrativas para acompanhar o lançamento de um produto qualquer de uma empresa de bonecos. Há até mesmo o caso de um super-herói que protagonizava história de uma página que eram anúncios de sapatilhas, cheias de previsíveis trocadilhos de sapateiro (“there's trouble afoot”, “He really laced into me!”, etc.), Aau Shuperstar. A sério (esta é uma frase que o leitor colocará em contínua reprise).

À partida, isso pareceria garantir que tudo pertenceria à mesma sopa, mas recordemo-nos de que, para mal ou para bem, algumas dessas personagens surgidas dessa forma teriam algum sucesso, como é o caso de M.A.S.K., Transformers ou He-Man (não incluídos no livro, precisamente), ou o Cavaleiro do Espaço ROM (esse sim, presente), o qual, desaparecido, deixou saudades em muitos dos seus leitores, entre os quais criadores de banda desenhada contemporânea, mesmo do território alternativo e experimental! Estas consequências também não são estudadas de forma sustentada. Algumas destas personagens, sendo trademarks prontas a reutilizar pelas editoras que as detinham, foram carne para canhão a partir dos anos 1990, na senda do trabalho de Alan Moore de recuperar-para-descontruir: Kid Eternity por Grant Morrison e Duncan Fegredo, Prez por Neil Gaiman e Ed Brubaker e colaboradores, Brother Power the Geek por Rachel Pollack, mais recentemente Dial H for Hero com China Miéville et al., etc. E há mesmo casos de recuperações contemporâneas pelas duas grandes casas, como Prez e The Invincible Squirrel Girl. , ou Captain Victory and the Galactic Rangers, pela Dynamite. Morris cita, brevemente, estas recuperações (mas sem bibliografias completas), mas não enceta nenhum diálogo entre as premissas originais e as suas reutilizações.

Fantomah e Stardust, de Hank Fletcher, por exemplo, foram quase totalmente recuperados pela Fantagraphics (“quase totalmente” pois perguntamo-nos em que medida é que foram suficientes para reescrever a visão canónica em vigor). Há portanto um trabalho paralelo de recuperação ou transformação, o que incluirá a integração “normalizada” de muitas destas personagens nos universos diegéticos da Marvel e da DC, que não é tido em conta aqui para o juízo de valor sobre as personagens. Fosse esta obrinha complementada por esses materiais, e poderíamos encontrar aqui outro tipo de questões e interpelações.

Dito isto, os pequenos textos introdutórios a cada capítulo, convenientemente seguindo a clássica divisão de “eras” da banda desenhada norte-americana de super-heróis, que o autor apenas disputa superficialmente, e as próprias entradas de cada personagem, vão tecendo comentários sobre os momentos históricos precisos, abrindo a ideias que têm a ver com a diversidade de personagens e de representação, as modas das épocas (heróis baseados em tecnologias, em modas musicais, em danças, em desportos, etc.), e as políticas editoriais e narrativas das casas respectivas. Questões de propaganda política, representação racial/étnica, realidades sociais e económicas, de construção de direcções editoriais, tornam-se suficientemente claras, e que ajudará a compor uma imagem bem mais matizada do que os usuais discursos normativos.

Todavia, são entradas simples, que permitem uma consulta rápida e suficiente. Nesse sentido, Regrettable Superheroes cumpre o seu papel na perfeição, e integra-se plenamente em toda uma série de outros instrumentos a que temos hoje acesso. Não sendo um discurso totalmente ancorado na discussão académica, e estando mais próximo de um breve arquivo, é também este um importante gesto na recuperação e alargamento da memória da banda desenhada, e que permite, pelo menos neste pequeno território, apercebermo-nos de que é bem mais largo do que os títulos de sucesso que perfazem os usuais cânones da atenção.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. 

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