Fomos convidados a escrever um texto que acompanhasse essa exposição, apanhado quase superficial de algumas reflexões debatidas e partilhadas com o autor, de quem somos colegas enquanto docentes e parceiros em projectos criativos, e que de certa forma teriam levado à selecção e baptismo desta mostra.
Apresentamo-lo aqui, com algumas alterações de pouca monta, apenas com o intuito de prendre date, uma vez que não terá o valor que poderia ter caso fosse reforçado com os instrumentos de maior precisão académica que estão ausentes. (Mais)
Sequência mínima.
Como pensar o mínimo indispensável na
banda desenhada?
Não pertencendo a nenhuma das escolas
essencialistas definicionais da banda desenhada, não acredito que
possamos apontar a um número fechado de elementos necessários e
suficientes para identificar um qualquer objecto enquanto pertencente
ou não ao alargado território da banda desenhada. Creio antes num
projecto de definição histórica que tem em conta contextos
alargados de produção, uma paisagem mediológica variada e
integrada, e uma proficiência das mais díspares tipologias de banda
desenhada, inclusive a experimental ou artística (adjtecivos
insuficientes e fracos, mas que terão de servir neste contexto).
A noção principal que ordena esta
mostra de trabalhos de Filipe Abranches entrosa-se com algumas
preocupações teóricas que partilho e que se pode expressar por
aquela pergunta anterior. Que mínimo existirá para falarmos de
banda desenhada? Bastará apontar a elementos como vinhetas,
precisando de duas que entram em alianças sequenciais uma com a
outra? Serão precisos balões de fala, para introduzir um tempo,
agência à personagem, diálogo com o leitor? Terá a ver com a
gestão do tempo de leitura ou terá a ver com um efeito estrutural?
Duas reduções consecutivas são
necessárias, a bem da presente discussão. Isto é, o que é dito aqui tem apenas valor heurístico. Em primeiro lugar está a redução da banda desenhada
a um meio necessariamente narrativo. Ora isso não é necessariamente
verdade. Não é apenas as formas como no interior de um programa
narrativo é possível apresentar estruturas descritivas, líricas,
estáticas, como é mesmo possível encontrarmos exemplos de bandas
desenhadas completas – usual mas não exclusivamente curtas, mas
forçosamente pertencendo a círculos experimentais – que seguem
essa natureza. A banda desenhada não é sempre narrativa, mas
é-o na sua esmagadora maioria. De forma limitadora, fiquemos nesse
entendimento.
A segunda redução está em procurar
entender qual seria o mínimo narrativo. No campo dos estudos
literários e da narratologia, existirão várias formas de entender
quais são os princípios basilares da narrativa, mas um possível
ponto de partida é o de considerá-la como a representação de
um evento (evento deve ser aqui compreendido como "alteração do estado de um objecto", tem de existir uma passagem temporal que implique uma transformação para que um evento ocorra: mas isso abre logo problemas, pois não explica se é necessária agência humana ou não; será "chove" um evento nesse sentido narratológico?) A formulação desta descrição, ou mesmo definição,
depreende desde logo uma distinção entre os dois termos
correlacionados, em que por um lado teríamos os eventos propriamente
ditos, isto é, a história, e por outro a maneira como essa
história nos é transmitida, ou o discurso narrativo. Um dos
primeiros problemas que emerge nesta maneira de colocar o problema é
que parece dar-se o caso de que esses tais eventos propriamente ditos
teriam uma existência fora, anterior ou ontologicamente separada da
própria acção narrativa. Mas é no acto da sua emergência
enquanto discurso que a história se constitui (e isto tem valência
quer no campo da ficção quer no da factualidade, quer em misturas
de ambos).
É um fenómeno inevitável (salvo
predisposições contrárias que assinalariam um problema cognitivo)
que o ser humano faça inferências a partir de elipses e fragmentos,
que crie padrões a partir de fiapos informativos, que force
significado humano onde ele não existe. Aos nos serem
apresentadas imagens no interior de uma moldura (física,
circunstancial, metafórica), elas tornam-se de imediato uma unidade
total a interpretar, e criaremos elos entre as diferentes imagens, em
busca de um significado, não das imagens em si apenas, mas da
relação criada entre elas. Porque é nessa narrativização que
procuramos um entendimento: remetendo-nos ao longo desenvolvimento
etimológico das palavras, encontraríamos uma aliança profunda
entre o contar e o saber na raiz do Sânscrito antigo
gna, que daria origem, já no latim, quer a gnarus
(“saber”) quer a narro (contar”).
Poderíamos apontar algumas das peças
de Abranches como micro-narrativas. Duas vinhetas, lado a lado, com
ou sem texto, retiradas de um contacto maior ou criadas tal qual,
perdendo informação circunstancial ou tendo mesmo sido “fatiadas”
de um nítido programa narrativo. Mas aqui surgem-nos como sequências
mínimas, e obrigam-nos a pensar de forma intensa os mecanismos que
nos são hoje invisíveis, de tanta familiaridade, na sua leitura
“normalizada” (o álbum, a revista, o livro).
Para um teórico como Seymour Chatman,
aquilo que distingue a narrativa de outros tipos de textos é a sua
lógica temporal dupla, que descreve como “crono-lógica”.
Significa esta divisão que existe na narrativa um movimento através
do tempo que se exerce externamente– isto é, a duração da
apresentação do meio, seja romance ou filme, peça teatral ou banda
desenhada – e internamente – a duração da sequência de
eventos que constituem a intriga.
Uma das maneiras de tentar compreender
estas micro-narrativas seria vê-las enquanto estruturas em que
alguns dos elementos narrativos usuais estão de facto presentes –
como personagens, acções, um espaço – mas o tempo se encontra,
na frase de Shakespeare, “fora dos gonzos”. Não que lhe falte a
“sequência de tempo interno”, na frase de Chatman, mas é como
se lhe apontassem para a sua existência mas não providenciassem o
leitor com dados cartográficos suficientes ou claros e coordenados
que lhe permitisse a reconstrução e ordenação. Não há sequer
gonzos, por assim dizer, a não ser aqueles estruturais, mecânicos,
visuais que nos levam a identificar a existência de mais do que um
plano visual (as vinhetas).
Duas vinhetas parecem unir-se e
mostrar-nos em grande plano o rosto de um piloto de caças. No rosto,
tomado holisticamente, apenas veríamos um momento. E lermos os
balões, veremos que na vinheta da esquerda, a primeira, é ele quem
fala, chamando pelo rádio a torre de controle. Na segunda, a
resposta que obtém é apenas a de ruído, sem qualquer pequeno
elemento que lhe permitisse reconstruir a hipotética réplica. Entre
uma e outra, estabelece-se um diálogo, uma passagem de tempo,
justificando a ideia de sequência, causalidade, narrativa, mas
também, o mais importante de tudo, uma divisão drástica e
ontológica entre um momento e o outro. A opção da linha
intersticial não serviu somente para assinalar um intervalo
temporal, e a opção pela composição completa não tem um papel de
unificação: bem pelo contrário, tudo serve precisamente para
assinalar o salto de fé a que a leitura é obrigada fazer,
procurando nessa quase total impossibilidade de diálogo e
complemento a tessitura possível.
Um desenho grande mostra dois sinais de
táxi nos tejadilhos dos veículos, possivelmente acesos, contra o
céu negro e vazio. Pertencerão a duas cidades distintas, cada qual
com a sua língua específica, justificando a diferença da grafia.
Num caso, não há informação visual para além do facto da luz
largar pequenos reflexos no tejadilho. No outro, neva. A transição,
se houver entre uma vinheta e outra, não é entre tempos. Quer
dizer, não podemos estabelecer um “antes” e um “depois”
absolutamente nítido. É a ideia de espaço, de coincidência
temática e variação circunstancial que é assinalada nesta
sequência mínima. Haverá narrativa? Causalidade, não seguramente
entre elas, mas antes e por sobre elas (o elo temático). Todavia,
não se fará ainda o salto de fé que obriga a nossa capacidade de
reconhecer (ou impor) padrões para criar uma dinâmica de
significado que nenhuma das vinhetas isoladas seria capaz de
sustentar?
O desenho da banda desenhada, já o
exploráramos noutra ocasião, está sempre em desequilíbrio,
vertendo a sua ontologia no próximo, no anterior, no associado. Não
está nunca sozinho, mas numa cadeia que não é a do ciclo ou da
série, mas da sequência, isto é, obrigando a um movimento, a que
damos o nome de leitura. Identificar o gesto mínimo que a coloca em
movimento não é nunca uma tarefa clara e final, mas estas cadeias
são um início.
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