Se há pouco mencionámos, de passagem,
a discussão desencadeada pela ausência de mais nomes femininos da
antologia de banda desenhada contemporânea brasileira, eis uma
publicação, já deste ano, que demonstra a capacidade organizativa
de um colectivo feminino. É verdade que se se tratasse de uma
publicação em que todos os autores fossem homens, à partida
tratar-se-ia desse título tão-somente como tal, e não pautado por
quaisquer características que se soltassem do seu sexo (a menos que
mergulhassem de forma directa e sublinhada dessa mesma
circunstância). O mesmo não ocorre de forma gratuita ou forçada
com publicações “de mulheres”, mas a verdade é que aqueles
títulos caracterizados por essa circunstância as mais das vezes
demonstram elementos que se revelam claros nas suas intenções de
identidade sexual, política e de diferenciação contra uma certa
visão hegemónica e normativa. Se nos recordarmos de algumas
experiências portuguesas, desde Weavers of Speech a Rata,
encontraremos experiências análogas em que a oportunidade de
publicar em ensemble leva a que se sublinhem essas tais
características, mas sem jamais as arvorar de forma reificadora ou
absoluta. Haverá outros momentos de junção de autoras de banda
desenhada, mas onde essas características não ganham essa
proeminência, como é o caso de Allgirlz ou QDCA, o
que bem ao contrário de um problema é uma conquista. (Mais)
Uma vez que já debatemos em ocasiões
anteriores o que é que se deve entender por “feminino” nestes
contextos, que nada tem a ver com uma identificação primária e
epidérmica, mas política, assinalemos somente que Topografias
se inscreve nesse tipo de publicações em que se assume uma posição
combativa e integrada, mas sem quaisquer tipos de programatividade,
manifesto ou sequer um discurso explícito. Dito isto, a
possibilidade de compreender o seu contexto de produção, desde o
selo da Piqui ao Encontro do Lady's Comic de Belo Horizonte, etc.,
seria possível destacar esses princípios de modo mais concreto e
palpável.
O que queremos dizer é que é através
das próprias obras que se espera que a obra de abertura temática
seja cumprida. As seis histórias, todas com menos de 10 páginas,
aqui reunidas, são bem distintas entre si em termos visuais,
estruturais e de conteúdo narrativo. O próprio título e a capa
aponta para a possibilidade plural de encontrar vários tipos de
terreno, que mesmo sendo adjacentes, podem apresentar traços bem
diversos e até contraditórios entre si. Todas as histórias têm em
comum o facto de apresentarem protagonistas femininas. Em muitas
delas, as confusas emoções do amor, da sexualidade, o ciúme e a
melancolia que advém da dolorosa construção da identidade está
mais do que patente. Em alguns casos, embrulhadas na fase da
adolescência das personagens, noutros casos transfigurada numa ideia
mítica de desenvolvimento dos povos, noutras ainda transmutada num
contexto de fantasia, em que essas características ganham um outro
tipo de ímpeto.
A primeira história é “Chuva de
Verão”, de Julia Balthazar, uma história que, não fosse apenas
uma cena de transição fantástica, poderia ser vista como um conto
da trivialidade de uma conversa de duas amigas sobre a vida em geral
e nada em particular. Segue-se “Frumello”, de Bárbara Malagoli,
uma espécie de poema-épico-de-ficção-científica em que uma
conquistadora sideral parece querer demonstrar o seu poder, mas o
texto apresenta-nos antes uma frase longa, introspectiva, numa
espécie de melancólica bonomia. “Teneusca”, de Taís Koshino,
recorda, de alguma forma, o conto All Summer in a Day, de
Bradbury, uma vez que a personagem-criança deste conto numa
hipotética sociedade futura(ista) e alienígena perscruta através
de um Museu da Memória do Futuro os preços difíceis que se têm de
pagar para se poder assumir (se se conseguir aceder a eles) os papéis
que se desejam para a nossa identidade. “Flagelo”, da autora
Paula Almeida, que assina como Puiupo, arrasa com a noção de
reprodução e maternidade através de um convoluto mas curto conto
de ficção científica. Mariana Paraízo apresenta 5 páginas de um
turbilhão feito de colagens de recortes de revistas e jornais,
“Sátira latina”, apenas numa primeira abordagem parece não ser
uma narrativa linear ou até coesa. Não deixando de não o ser, na
verdade, há uma clara possibilidade de criarmos uma complexa rede de
referências e associações que contribuem para uma ideia e intriga,
um pouco à la Humument: no centro um naufrágio, no âmago,
um trauma. Finalmente, a autora lovelove6, particularmente activa e
militante no Brasil nesta frente, apresenta, com “Árvores”, uma
espécie de pequeno mito sobre as declarações de amor e ciúme.
Toda a publicação é impressa a duas
cores, azuis (ou ciano; aqui pálido, ali eléctrico, agora sólido)
e rosa (ou magenta; também em várias densidades), levando a efeitos
de cruzamento bem diversos, mas em que nenhuma uma delas assume um
papel menos importante. Algumas autoras têm um desenho sólido e
estilizado, mas marcado pela abordagem manuscrita e gestual – os
casos de Malagoli, lovelove6 e Puiupo) –, enquanto Koshino
apresenta um desenho de linhas nervosas e naïfs, com uma composição
densa e Balthazar inscreve-se naquela prestação moderna de
manipulação de formas geométricas streamlined mas para
criar aparentes estruturas orgânicas (aparentado a Deforge ou
Baeza).
De uma forma simples, mas sólida e
directa, estas autoras demonstram como é possível fazer valer
certos princípios de integração temática e política, sem a
necessidade de escolher discursos explícitos. E é com estas
ficções, ora mais narrativas ora mais líricas ora mais elípticas,
que conseguem lançar uma semente de possibilidades expressivas de
maturar esses mesmos temas.
Nota final: agradecimentos ao
colectivo, pela oferta da publicação, e M.F., pelo pombo-correio.
As imagens foram todas colhidas da internet.
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