28 de agosto de 2016

Revisão, bandas desenhadas dos anos 70. AAVV (Chili Com Carne)

Permitam-nos começar com uma impressão totalmente superficial e que o mais certo é não ter grande sustentação real. Estamos em crer que a recepção deste livro poderá vir a ser dividida em quase dois pólos opostos e contrários. Por um lado, a esmagadora maioria das pessoas que medeiam a recepção e discussão da banda desenhada, de várias gerações, estará demasiado familiarizada com muitas das peças capturadas nesta antologia para serem por elas surpreendidas ou então julgarão de imediato estar em falta algo (uma outra peça, um outro autor, uma outra natureza de trabalhos, etc.). Se nos permitem, graças ao desenvolvimento de trabalhos como o documentário VerBd, a exposição Tinta nos Nervos e uma colaboração de uma mostra de trabalhos de Carlos Zíngaro, ganhámos um conhecimento de alguns destes autores mais profundo do que a mera leitura da própria revista Visão e outras publicações que aqui se juntam. Não tendo sido aquela revista, publicada entre 1975 e 1976, algo que lemos nessa mesma época (até pela idade, seria impossível), a circulação do seu nome era já mítica quando nos tornámos leitores mais intensos de banda desenhada, e era com facilidade que se encontravam exemplares em segunda mão. Ou seja, a Visão, em si mesma, era até certo ponto uma referência “viva” nas discussões sobre história da banda desenhada portuguesa, ao contrário de algumas outras revistas da mesma época, como a Jacaré ou a Audácia, etc. (Mais) 
Por outro lado, há toda uma geração (ou várias) que, por uma razão de falta de exposição, de curiosidade ou até mesmo de contínua distracção com as “novidades” que “apagam” produções sólidas anteriores – um jogo favorito parece ser o de se esquecer imediatamente qualquer autor que não publique há menos de dois, três anos – pura e simplesmente desconhecem na totalidade grande parte da produção de banda desenhada nacional, se ela não estiver no interior de determinados parâmetros que sigam (que são variados em si mesmos, mas mais do que bitolas se tornam canais exclusivos). Aqui também deixaríamos uma nota pessoal, uma vez que o nosso contacto com aspirantes a ilustradores e banda desenhistas um pouco por todo o lado, em contextos escolares, surpreende pela falta de contacto com a memória nacional (et c'est pas sa faute).

Dessa maneira, o surgimento deste volume, Revisão, vem possivelmente colmatar uma falha em relação ao segundo grupo, e em relação ao primeiro vem trazer uma assinatura de escolhas. Com efeito, apesar do sub-título explicativo, “bandas desenhadas dos anos 70”, Revisão não tem a veleidade de querer surgir como um compêndio de “tudo”, uma vez que há material à partida logo posto de parte – material infantil, aquele subsumido a géneros usuais e compartimentados, obras de cariz pedagógico, material demasiado atreito à imediata crítica política. Conforme a política editorial da Chili Com Carne, e respeitando perfeitamente aquele ponto que bastas vezes discutimos sob a ideia da “recuperação da memória”, de que as editoras recuperam/re-publicam aquele material da tradição na qual se querem inscrever (ou na verdade, criando a tradição na qual depois se inscrevem) – fenómeno observável com particular força nos anos 1990 em casas tais como L'Association, ego comme x, Amok/Fréon, etc. – este volume assenta sobre a ideia de uma banda desenhada de autor, individual, estilisticamente arrojada, politicamente responsável, com verve, pêlo na venta, livre, capaz de criar brechas nos métodos de fazer e pensar a banda desenhada, e despreocupadas sobre a ideia da “consequência”, se isso for entendido como deixar herdeiros bem-comportados e epígonos. Com efeito, a revista Visão foi uma experiência fulgurante e única, uma bateria que agregou de modo súbito e quase por acaso todo um grupo de autores num espaço, não se podendo afirmar que todos os autores continuariam a trabalhar na banda desenhada de modo sustentado (alguns autores, como Nuno Amorim e Zepe, singrariam antes pela animação, onde são reconhecidos profissionais auteurs). E nada mais se poderia comparar a essa experiência colectiva em quase vinte anos. Não será certamente a Flecha 2000 que contribuiu para a consolidação de uma prática nacional desta disciplina. O editor indica a Lx Comics, surgida em 1989, como a única experiência comparável. Mas isso já nos lança a um novo contexto histórico, económico e cultural do país.

Os textos de introdução e contextualização de Marcos Farrajota, mesmo que sucintos, são perfeitamente esclarecedores e completos em todos os aspectos, nas três dimensões importantes: a contextualização de produção, a descrição dos trabalhos, e as justificações do trabalho editorial. No que diz respeito ao primeiro ponto, esclarecem-se os ímpetos que levaram estes autores a convergirem num determinado momento para a criação de bandas desenhadas totalmente livres de preocupações de género, programas de leitura balizadas por interesses de moralização e educação, mas não de forma alguma de uma clara responsabilidade em tornar o mais visível esse próprio acto de liberdade. Se até aos anos 1970-1980 existia um “mercado” de banda desenhada, a Visão (mas também as outras publicações que serviram de fonte à antologia, tal qual a Evaristo e O Estripador) é um dos primeiros projectos que, sejamos honestos, não estariam muito preocupados com uma perspectiva comercial (quer dizer, talvez até pensassem que seria um sucesso comercial, mas não o foi por várias razões; não esqueçamos que a revista era um luxo na altura, pela qualidade do papel, da impressão, da cor, cujo formato e qualidade desta edição melhora mas ao mesmo tempo respeita). Bem vistas as coisas, afinal, não deixa de ser surpreendente a diversidade de naturezas dos trabalhos reunidos nestas páginas, que Farrajota bem identifica como pertencendo a dois grandes grupos principais. Por um lado, as bandas desenhadas de claro intuito de crítica social e política, em que se desmontam certos princípios do capitalismo, do colonialismo (passado e então presente), da guerra, mas também da forma tímida como a revolução de Abril avançava, em que tantas das promessas acabariam por se tornar em frases ocas e sem implementação real. Mesmo que haja trabalhos com personagens e/ou contextos específicos (Spínola, a CIA), muitas outras abordam antes instituições mais abstractas (o trabalho assalariado, o Natal, a família). E se há trabalhos aqui com humor derisório ou negro (Pedro Massano, J.L. Duarte, Carlos Soares e Carlos Barradas), há outras que pretendem conter alguma gravitas (Zepe, Nuno Amorim). É ainda nesse campo que encontramos uma história curta sobre a guerra colonial por Pedro Massano que se centra de uma forma tão brutal numa constatação de factos que dificilmente se pode compreender agora a sua ousadia e carácter inédito à época.

Por outro, surgem aquelas páginas que merecem de um modo correctíssimo o apodo de “psicadélico”, quer pelas formas de linhas flutuantes e coloridas que assumiam quer pelas narrativas algo aquosas, vagas e oníricas, senão mesmo devedoras de um imaginário influenciado por toda uma cultural beatnik-hippie que se ia herdando desde o final dos anos 1960, mas lentamente. Recordemo-nos de que antes do 25 de Abril, a abertura de Portugal ao mundo era tímida (o Maio de 1968 chegou cá com seis anos de atraso), e apenas uma elite cultural tinha acesso a outras paragens do espírito, cultura e instrumentos de pensamento político, ora nas frentes comunistas ora numa nata cultural. Depois de 1974, as portas escancararam-se e a experimentação e até o “excesso” foi bem-vindo (mesmo que tenha sido sol de pouca dura). Seria interessante fazer as ligações e influências? Talvez, mas isso diria pouco de um trânsito e não permitiria que se olhasse a obra dos autores individuais como sendo fortíssimas. Poderíamos dizer que, mais um passo de abstracção no desenho do título (contemporâneo, por João Maio Pinto) e que estaríamos com uma capa dos Grateful Dead na mão? Talvez, mas isso apagaria a possibilidade de compreender a forma como Isabel Lobinho trabalha na mais aberta das liberdades em beber de várias fontes (inclusive as históricas, como as volutas floridas da Art Nouveau, as cores de Peter Max, e acima de tudo a doidice iconoclasta e textualmente proteica de um Mário Henrique-Leiria, que a artista tão bem “vestia”. E que dizer das peças de Pedro Poitier, de Paralta e Zé Baganha, de Tito, de Gracinda, algumas de Nuno Amorim e de Carlos Barradas, que amalgamam onirismo, psicadelismo, ficção científica, fantasia, em jogos visuais dramáticos e espectaculares? (e que nos leva a pensar que La planète sauvage, de Laloux e Topor, poderá ter sido decisivo). As comparações directas entre nomes portugueses e estrangeiros é marca de provincianismo, é certo, mas vistamos a carapuça ao pensar nesse nome maior da nossa literatura, Henrique-Leiria, digno de um Fénéon ou Quenau, votado à nota de rodapé nos nossos dias. Tal como muitos destes autores poderiam estar lado a lado àqueles nomes que estavam a surgir na Charlie Mensuel ou na Métal Hurlant.

As escolhas do editor procuraram então aqueles nomes que seriam mais desconhecidos aos “novos” leitores, pelo que se explica a ausência de um nome sonante da época, o demiurgo-mor, Vitor Mesquita. Mas de facto o trabalho de Mesquita tem sido alvo de revisitações e reedições, colocando-o numa atenção desligada dos demais, o que justifica esta estratégia. Mais urgente seria com efeito reunir a obra de Carlos Zíngaro, cuja obra viril, plástica, material e tematicamente perturbante, o torna um autor único, mas algo esquecido, ou a de Lobinho, artista maior e de uma inventabilidade gráfica magnífica mas afastada por um meio fechado e mais interessado em repetir as mesmas fórmulas, ou dar a conhecer Zé Paulo, cuja bílis seria seguida por poucos e cuja rocambolesca, cruel e jocosa “A família Slacqç”, tivesse existido em livro, teria criado raízes mais perenes na memória da banda desenhada portuguesa... E a junção da banda desenhada de rétournement que o compositor e teórico musical Jorge Lima Barreto operou sobre umas tiras de Tarzan para o seu livro sobre jazz, Grande música negra, de 1975, é justa. Quatro páginas em que, avant la lettre, Barreto faz um exercício oubapiano de substituição dos textos para criar uma diatribe contra o racismo e o colonialismo em África (e da própria banda desenhada, até certo ponto); se bem que não se possa dizer tratar-se dos exercícios mais geniais alguma vez construídos nesta disciplina, é algo que espelha muito bem o seu tempo, tal qual alguns contornos das restantes bandas desenhadas, que até nos podem parecer algo ingénuas, inconsequentes, incompletas, mas conquistam esses gestos no seu conjunto.


Revisão não pretende reinventar a história, nem reescrevê-la, mas pretende sim que se a repense, num contexto em que há sempre tão pouco pensar.  

1 comentário:

MMMNNNRRRG disse...

«Revisão não pretende reinventar a história, nem reescrevê-la, mas pretende sim que se a repense, num contexto em que há sempre tão pouco pensar.»... know what? melhor coisa que alguma vez escreveste!
:)
abraços
M