Como em quase toda a sua obra, como se
se tratasse do seu baixo contínuo, quando Baudoin explora a memória
nos seus livros não a faz com o intuito da sua exposição, mas sim
no de a transformar numa forma de inquirição não apenas do passado
mas da própria individuação de quem a possui. Em que medida é que
a memória não nos pertence somente, mas nos faz? Que
responsabilidades éticas temos nós de nos lembrarmos de uma certa
forma? Que permite a recordação para repensar a história, seja ela
pessoal ou familiar, histórica ou colectiva, cultural ou política?
Colocando a pergunta de uma forma mais simplista e associada ao
título do livro, modo pouco oblíquo de Baudoin sublinhar uma das
questões principais do livro mas que não surge como matéria
central: quem são os filhos de Sitting Bull? (Mais)
De uma forma superficial, poderemos
dizer que Les enfants de Sitting Bull é um livro dedicado ou
em torno da figura do avô paterno, Félix Baudoin. O livro parece
estar dividido em três momentos, não necessariamente nascendo de
uma estrutura predeterminada com vista à sua eficiência, mas
seguindo de modo claro as vontades e transmutações do autor. A
primeira parte é quase totalmente uma apresentação factual da
biografia do avô Félix, começando na sua infância na Nice
“italiana”, a sua primeira carreira nos baleeiros até naufragar
na costa estado-unidense, levando-o a uma nova aventura por terra,
que o levaria à São Francisco do último quartel do século XIX, as
selvagens fronteiras do Oeste, a Nova Iorque em construção
vertical, finalmente o regresso ao mar e à terra Natal, onde se
tornaria agulheiro de eléctrico. Mas muitos outros episódios,
brevíssimos, são mencionados, quase como se se desejasse assinalar
as paragens todas num mapa, que incluiriam acontecimentos históricos
(a construção do Canal do Panamá, a guerra civil chilena, a
emergência dos mitos do western), e intercalam-se na própria
revisitação dos processos em que Baudoin, ainda em criança, com o
irmão Piero, ouviam muitas destas histórias da boca do pai, mas
outros membros da família também. É, aliás, a possibilidade de
vermos os actos em que esses episódios chegavam aos ouvidos do autor
quando criança que começa a estruturar Les enfants de um
modo cheio de camadas, necessariamente porosas, entre os momentos.
Isso segue-se por um breve excurso (mas
“excursos”, em Baudoin, nunca são uma forma justa de descrever
estas linhas de fuga que, parecendo criar ideias paralelas, alimentam
sempre o caudal central) sobre a passagem do próprio Baudoin pelos
territórios dos nativos americanos, espalhados pelos territórios
norte-americanos e canadianos, algo que havia exposto em Les essuie-glaces. Mais, e aliás: esta é a oportunidade que Baudoin
tem para “corrigir” ou tornar mais claro que grande parte do que
o movera na sua estada no Canadá como professor de desenho e banda
desenhada, e como alguém que tentou pugnar por uma banda desenhada
autóctone criada por inuítes e outros povos empregando os seus
próprios instrumentos expressivos e temáticos com esta “nova”
disciplina (fazendo sonhar produtivas “zonas de contacto”),
tivera a sua base nos relatos de uma América mítica tecida pelas
aventuras do avô, ainda que esse mito tenha sido drasticamente
diferente daquele usualmente alimentado pela cultura popular do
cinema e banda desenhada. Edmond e Piero tomam sempre “o lado do
índio”, não gostam de cowboys nem soldados, tudo o que
lhes parece um elogio da militarização e da violência os aborrece,
preferem outro tipo de sonhos e fantasias (como é exposto em, por
exemplo, Piero). Dessa forma, abrem-se excursos nos excursos
quando uma sequência de ideias leva ao espectáculo itinerante de
Buffalo Bill, o Wild West, em que Félix poderá ter
participado e que lhe permitiria um contacto amistoso quando da
passagem de Will Cody por Nice, mais tarde, é isso o que abre a
considerações sobre o tratamento das populações autóctones pelos
colonialistas e o governo norte-americano, a vida e missão de
Sitting Bull, e então o desvendar da filosofia de abertura, amizade,
possibilidade de diálogo que este chefe lakota preconizou e que é
transformada pelo autor.
É assim que, por fim, na fase
finalíssima do livro, a terceira, Baudoin apresenta um pastiche de
um western invertido, brincando com todos os clichés e
ridículo hiperbolizado do género, em que o herói implacável é um
índio chamado “Rouge Gorge” (“Garganta vermelha”) e os
“Bárbaros” - o título da história – são os brancos que
pilham e matam e escalpam sem razão. Um exercício próximo ao
daquela desconstrução que havia tentado em Crazyman,
e da mesma forma servindo de comentário político e social sobre os
imaginários construídos por esta linguagem, que são de tal forma
poderosos que substituem muitas vezes o conhecimento verdadeiramente
histórico.
No fundo, e não é apenas nesse
segmento de uma banda desenhada – como a apelidar? Falsa?
Ficcional? Fictícia? Hipotética? Todos esses termos parecem
errados, já que ela está aqui presente, mas pretende assinalar um
espaço ou uma expressão que nunca teve lugar (é algo problemático
dizer que “nunca teve lugar”, uma vez que isso obrigar-nos-ia a
olhar para a, pouca, é certo, mas real tradição de produção de
banda desenhada criada por pessoas associadas às comunidades nativas
norte-americanas e canadianas), mas enfim... Não é essa pequena bd,
dizíamos, apenas a assinalar uma face distinta dos discursos
dominantes da banda desenhada popular de décadas, mas o próprio
discurso do livro, que aqui e ali se poderão aproximar de elementos
“clássicos”, começando pela ideia de aventura (mas também o
discurso de surdos entre os dois avôs, que lembrará os
mal-entendidos de um Girassol). Esses espaços, então, usando esses
elementos de modo diferente, colocam em causa essas antigas
identidades e procuram novas identidades.
Já bastas vezes e noutros locais mesmo
descrevemos como a tarefa da Baudoin tem sido a de construir uma
espécie de celebração contínua de toda a sua vida, estendendo-a
de modo dramático pelas pessoas que constituem a sua família. Falar
de “autobiografia” não é, de modo algum, suficiente em
Baudoin. Ora, o autor já havia criado um outro livrinho dedicado ao
avô paterno, Made in U.S., um dos pequenos patte de mouche da
L'Association. Muito dos “factos” apresentados aí da biografia
de Félix Baudoin são os mesmos deste volume, outros apresentam
pequenas disparidades, ou há pequenas diferenças de
inclusão/exclusão. Parte terá a ver, sem dúvida, com a economia
de ambas as narrativas, ou até mesmo os seus propósitos, mas não
podemos deixar de sentir que outra parte tem a ver com os próprios
processos da memória, que nunca é taxativa ou condensada em formas
fechadas e repetidas. Quem conta um conto acrescenta um ponto, e isso
não deixa de ser, ou até mais vincado, na memória própria dos
indivíduos.
Baudoin tira partido aqui de toda uma
vida de experimentação visual. Se existem livros mais coerentes em
termos estilísticos e de metodologia – numa primeira fase, por
imposição das regras de mercado às quais se adaptava – e uma
clara curva de aprendizagem nessas tentativas de integração (de
aguarelas, folhas de cadernos de desenho à vista no local, de
apontamentos e esboços, de correcções), Les enfants é uma
espécie de campo totalmente livre. Não é que não haja coerência
interna. Quase todos os episódios de rememoração individual do
próprio Baudoin, o que inclui revisitar desenhos de livros
anteriores, surgem em desenho a linhas soltas e rabiscadas a negro
contra fundo branco, mas a transformação da vida do avô em matéria
visual é muito mais dramática e espectacular. A vinheta da prancha
que mostramos neste parágrafo, por exemplo, parece ser um encontro
feliz entre Turner, Giacometti e Yves Klein. Narrativamente,
pretende-se demonstrar a fragilidade do veleiro entre as duas forças
naturais e sublimes do oceano e dos céus, ambos capazes de
atormentar esse pequeno punhado de madeira, quanto mais em esforço
concertado. Mas ao mesmo tempo, a claridade com que essas formas são
mostradas, esses azuis paradoxais evocando-se, opondo-se e
entrosando-se um no outro criam ao mesmo tempo o substrato concreto e
sólido que permitem a essa fantasma feito pelo homem de os
atravessarem e, assim, aumentar a sua capacidade de nos maravilhar na
sua travessia, senão a sua própria existência. Ainda outra
metáfora da memória?
No fundo, é através dessas massas
incongruentes entre si e toda a diversidade e recorrências – o
autor reemprega alguns dos seus leitmotivs, desde os homens
cujas cabeças são substituídas por objectos à criança isolada em
cenário, a integração de documentação fotográfica, textual ou
outra, a “interrupção” da faixa narrativa principal por
pequenos segmentos narrativos oníricos ou de memórias – que o
autor reforça a ideia de aventura, mas negando-lhe a perigosa
familiaridade que temos com essa noção. Lemos uma autobiografia, e
uma biografia de um aventureiro, e alguns pontos de histórias
colectivas encaixadas umas nas outras, mas ao mesmo tempo é-nos
colocada a pergunta de que responsabilidade queremos nós assumir,
enquanto leitores, perante essa mesma história. A resposta então a
quem são os filhos de Sitting Bull é um convite a nos incluirmos
nela.
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