Tal qual como ocorre em qualquer outro
território artístico e criativo, ou até mesmo da actividade
humana, existe uma diversidade de gestos, intentos, alcances e
intensidades que deve ser compreendida por ela mesma, não se
pautando uma forma de cumprir um papel pelos princípios de outra.
Mesmo assim, não deixa de ser uma fonte de felicidade quando nos
deparamos com gestos que abandonam as preocupações usuais e
clássicas da banda desenhada, como a de “contar histórias” ou
até “mostrar relevância”, para lavrarem explorações da
própria matéria que constitui a banda desenhada, ou com ela atingem
contornos bem diversos dos usuais. De uma forma nem sempre clara,
decisiva, passível de continuidade, ou totalmente subsumível a
categorizações, e muitas vezes votadas ao desinteresse geral, até
sobretudo por aqueles que mais dedicação parecem demonstrar à
banda desenhada (nas suas prestações mais arregimentadas), são
aqueles trabalhos que merecem o apodo, torto, historicamente erróneo
e complicado, insuficiente, de “experimental”. (Mais)
Por uma coincidência feliz, dois
livros surgem de Aidan Koch, que a vêem consolidar como uma espécie
de “poetisa” da banda desenhada, como já havíamos aventado a
propósito de The Whale. Nesse outro texto, assim como outros,
apresentavam-se algumas ideias sobre a possibilidade de falar de
poesia em banda desenhada, e estes outros textos da autora
norte-americana servem de exemplos quer para confirmar, reforçar ou
inflectir essas mesmas ideias. Nessa mesma ocasião, citara-se a
ideia da “menoridade”, tal qual entendida na literatura/filosofia
por Deleuze e Guattari, um ponto que temos desenvolvido noutro
contexto e que exporemos aqui da forma mais breve possível. Uma das
possibilidades de falar de “micro-narrativas” está precisamente
em associar esse prefixo adjectival a objectos textuais não tanto
como uma questão de tamanho (isto é, uma história rápida,
concentrada ou diminuta, mas onde todos os elementos clássicos
estariam presentes; ou como escreve Pierre Alferi em Brefs,
“Être bref, cela ne s'est jamais résumé à faire court”), mas
antes como algo que coloca em crise a própria ideia da
narratividade, em termos de teleologia, causalidade, organização
psicológica das intenções e acções das putativas personagens,
organização espácio-temporal, procurando antes efeitos bem
distintos. Lá está, passíveis de ser chamados de “poéticos”,
por mais aberta que fique esse questão...
Ambos os volumes são fruto de uma
contextualização maior, uma de integração, a outra de
recuperação, mas ambas remetendo desde logo a um corpo maior com os
quais os textos individuais poderiam entrar em imediato diálogo,
mostrando à partida como toda e qualquer leitura crítica tem
necessariamente de fazer uma operação de recorte e destacamento.
Isto é, uma pequena operação de violência e mortificação que
queima a sua associação a todos aqueles elos que o crítico não
deseja salientar, dialogar, aceder ou até mesmo mostrar. Daí que se
preveja desde sempre uma perspectiva cautelar perante qualquer
leitura, por mais crítica que seja, pelo seu carácter fragmentário,
específico, conduzido, seja ele programático ou circunstancial. Não
nos abstemos dessa natureza. Mas se no caso da banda desenhada mais
normativa essa separação não é assim tão notória – um álbum
apresentará uma história individualizada –, num campo mais
experimental como o de Koch já esse gesto acarreta maiores
responsabilidades. Todavia, leiamos de imediato os livros.
After Nothing Comes é uma
antologia que recupera 6 mini-comics ou zines publicados pela
autora entre 2008 e 2014, nenhum dos quais fora antes lido por nós
neste espaço. Tem ainda uma entrevista com Bill Kartalopoulos, que
editou o volume. Nesta sequência de trabalhos é-nos possível
distinguir a maneira como a autora ia procurando libertar-se daquelas
que parecem ser as regras clássicas da banda desenhada para, jamais
abandonando uma espécie de rede estrutural e referencial a essa
mesma disciplina, poder explorar outros modos de relacionamento
desses mesmos elementos para chegar a outras intensidades. Por
exemplo, é costume dizer-se que a banda desenhada é o encontro da
literatura com o desenho, procurando encontrar no cruzamento num
mesmo espaço de apresentação informativo uma faixa ou camada
verbal e outra visual, que se podem complementar ou antagonizar em
vários graus. Koch, porém, apresenta distribuições distintas:
vinhetas para os desenhos e vinhetas para os textos (quando os usa, e
quase sempre parcimoniosamente), como se desejasse que uns não
contaminassem os outros, mas ao fazer isso contamina todo o conjunto
(isto é, a noção “clássica” da banda desenhada) com naturezas
precisamente vindo das artes plásticas – o livro de artista – e
a literatura – a edição de poesia. As experiências de
desvinculação, por assim dizer, vão tornando-se cada vez mais
vincadas, e se num primeiro momento se poderá ler (“Warmer”, por
exemplo) o trabalho de Koch como uma espécie de pequeno diário
íntimo ou carta ambivalente a um interlocutor por identificar,
rapidamente se encontrarão formas mais profundas e inquietas de
colocar questões sobre a maneira como essas supostas faixas
distintas se definem entre si (acima de tudo “The Dancer at
Midnight” e “After Nothing Comes”).
Se for possível identificar traços
comuns entre as personagens – estas histórias parecem ser contadas
numa hipotética “primeira pessoa”, aquelas outras parecem dar
acesso a mais completas “ficções”, mas todos estes descritivos
são complextos – será a de personagens muito jovens sempre
mergulhadas em interrogações emotivas, passeios melancólicos,
devaneios oníricos ou então jogos, brincadeiras e canções que mal
ocultam esses outros sentimentos mais negros. O ennui
adolescente parece desprender-se não apenas dos fantasmas de
intrigas que seria possível empregar como descritores de cada
“história”, mas também das figuras desenhadas. Se a autora
emprega em muitos momentos elementos abstractos, ou paisagens vagas,
surgem também concretos objectos desenhados da natureza, corpos
humanos desenhados parcialmente, e organizados ora de um modo análogo
ao do caderno de esboços ora numa qualquer forma aparentemente
sistemática e científica. A dérive na natureza é acompanhada por momentos de observação de objectos isolados, o mergulho na natureza é posto em perigo pelo sublime, a vida diáfana das personagens é ameaçada por grandes manchas cuja existência está apenas no papel (e não numa ideia de "representação naturalista"). São como que registos contraditórios de
linguagem: formas de lavrar a visualidade que deveriam ser contrários
ou pertencentes a propósitos diferentes, mas que aqui convivem para
criar algo mais que a sua soma.
Little Angels é, poder-se-ia
dizer, uma espécie de mescla entre catálogo e livro-companheiro da
participação da autora numa das séries de exposições intituladas
“Greater New York” na instituição MoMA PS1, que usual ou
originalmente se dedicava à mostra de jovens artistas das mais
diversas disciplinas das artes plásticas. O livrinho, com menos de
uma trintena de páginas, actua tal qual uma pequena das publicações
de Koch, tais quais as de que já falámos, como The Whale e
The Blond Woman (Q é uma excepção, enquanto
broadsheet). O seu interior parece estar dividido em duas
partes, a primeira intitulada “the event” e a segunda “the
apartment”, mas sendo totalmnete impossível compreender de modo
claro e unívoco qual a relação entre uma e outra. “the event”
mostra a sucessão de seis páginas com uma grelha de 2 x 3 vinhetas,
que vão sendo ocupadas por manchas e marcas abstractas de várias
cores, entre pinceladas de aguadas sombrias, blocos monocromáticos
de um azul cobalto ou um cinzento-creme, e uma conjunto cerrado de
três a quatro linhas de cera azul clara. Em parte, recordam experiências tais quais Hic Sunt Leones, de Frédéric Coché. Logo depois, um rosto menos
do que em perfil num canto de uma página de resto vazia, e outra
grande vinheta, com efeitos de pinceladas que poderiam eventualmente
ser lidos como uma paisagem à la Turner por via do minimalismo. “The
apartment”, por seu lado, cria as condições para assistirmos ao
diálogo entre duas jovens mulheres, num quarto ou sala, sobre uma
outra situação qualquer, anterior, da qual saíram. Uma delas
parece ter acabado de chegar, e terá subido eventualmente pelas
escadas do alpendre do prédio, apesar de vermos quatro versões
compossíveis da balaustrada de ferro trabalhado (apenas a
balaustrada, na verdade, num espaço vazio). A outra desenha e
escreve distraidamente numa folha, e nós temos acesso a esses mesmos
rabiscos, que se vão formando sob o nosso olhar, de maneira complexa
integrada na própria folha em que a vemos a cumprir essa acção. O
diálogo entre ambas aponta para uma qualquer possibilidade de se
pensarem a si mesmas como não-humanas, “inhumanas”, “monstros”.
Qual a relação entre um e outro? Nada
poderá criar ligações unívocas, como dissemos. Não haverá
jamais certezas. O mesmo ocorre entre cada título, entre cada obra
de Koch, ou até mesmo, no “interior” de cada peça, entre cada
momento, secção, trecho, fragmento. Há uma larga dose de provável
improvisação na criação destas peças, ou de força centrípeta
em cada momento, mas desenganem-se os leitores que perderem o fio à
meada tecida pela autora. Todo e qualquer título agrega esses
díspares elementos em objectos absolutamente coesos. Como um livro
de poesia, exigem que sejam lidos com mais atenção, pois não
nos apresentam cartografias familiares e pré-arranjadas e que, mais
do que nos “ajudarem” a interpretar, retiram-nas essa
responsabilidade e até capacidade. Koch (mas há toda uma
constelação de artistas de banda desenhada, como saberão os
leitores de trabalhos desta natureza, e até quem acompanhe este
espaço) cria fendas no edifício normativo do significado, da
familiaridade, da ideia de “narrativa”. O naturalismo, a
organização causal, a concentração de um protagonista, ou pior de
tudo, a finalidade teleológica, moralista, não são jamais virtudes
em si mesmas, nem o seu contrário vícios ou defeitos das obras. São
convites a que assumamos o nosso próprio papel, activo, pleno,
responsável, exigente, na assunção da poeisis, a feitura da
obra, tessitura incompleta antes da leitura.
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