26 de agosto de 2016

After Nothing Comes/Little Angels. Aidan Koch (Koyama/MoMA PS1)


Tal qual como ocorre em qualquer outro território artístico e criativo, ou até mesmo da actividade humana, existe uma diversidade de gestos, intentos, alcances e intensidades que deve ser compreendida por ela mesma, não se pautando uma forma de cumprir um papel pelos princípios de outra. Mesmo assim, não deixa de ser uma fonte de felicidade quando nos deparamos com gestos que abandonam as preocupações usuais e clássicas da banda desenhada, como a de “contar histórias” ou até “mostrar relevância”, para lavrarem explorações da própria matéria que constitui a banda desenhada, ou com ela atingem contornos bem diversos dos usuais. De uma forma nem sempre clara, decisiva, passível de continuidade, ou totalmente subsumível a categorizações, e muitas vezes votadas ao desinteresse geral, até sobretudo por aqueles que mais dedicação parecem demonstrar à banda desenhada (nas suas prestações mais arregimentadas), são aqueles trabalhos que merecem o apodo, torto, historicamente erróneo e complicado, insuficiente, de “experimental”. (Mais) 

Por uma coincidência feliz, dois livros surgem de Aidan Koch, que a vêem consolidar como uma espécie de “poetisa” da banda desenhada, como já havíamos aventado a propósito de The Whale. Nesse outro texto, assim como outros, apresentavam-se algumas ideias sobre a possibilidade de falar de poesia em banda desenhada, e estes outros textos da autora norte-americana servem de exemplos quer para confirmar, reforçar ou inflectir essas mesmas ideias. Nessa mesma ocasião, citara-se a ideia da “menoridade”, tal qual entendida na literatura/filosofia por Deleuze e Guattari, um ponto que temos desenvolvido noutro contexto e que exporemos aqui da forma mais breve possível. Uma das possibilidades de falar de “micro-narrativas” está precisamente em associar esse prefixo adjectival a objectos textuais não tanto como uma questão de tamanho (isto é, uma história rápida, concentrada ou diminuta, mas onde todos os elementos clássicos estariam presentes; ou como escreve Pierre Alferi em Brefs, “Être bref, cela ne s'est jamais résumé à faire court”), mas antes como algo que coloca em crise a própria ideia da narratividade, em termos de teleologia, causalidade, organização psicológica das intenções e acções das putativas personagens, organização espácio-temporal, procurando antes efeitos bem distintos. Lá está, passíveis de ser chamados de “poéticos”, por mais aberta que fique esse questão...

Ambos os volumes são fruto de uma contextualização maior, uma de integração, a outra de recuperação, mas ambas remetendo desde logo a um corpo maior com os quais os textos individuais poderiam entrar em imediato diálogo, mostrando à partida como toda e qualquer leitura crítica tem necessariamente de fazer uma operação de recorte e destacamento. Isto é, uma pequena operação de violência e mortificação que queima a sua associação a todos aqueles elos que o crítico não deseja salientar, dialogar, aceder ou até mesmo mostrar. Daí que se preveja desde sempre uma perspectiva cautelar perante qualquer leitura, por mais crítica que seja, pelo seu carácter fragmentário, específico, conduzido, seja ele programático ou circunstancial. Não nos abstemos dessa natureza. Mas se no caso da banda desenhada mais normativa essa separação não é assim tão notória – um álbum apresentará uma história individualizada –, num campo mais experimental como o de Koch já esse gesto acarreta maiores responsabilidades. Todavia, leiamos de imediato os livros.

After Nothing Comes é uma antologia que recupera 6 mini-comics ou zines publicados pela autora entre 2008 e 2014, nenhum dos quais fora antes lido por nós neste espaço. Tem ainda uma entrevista com Bill Kartalopoulos, que editou o volume. Nesta sequência de trabalhos é-nos possível distinguir a maneira como a autora ia procurando libertar-se daquelas que parecem ser as regras clássicas da banda desenhada para, jamais abandonando uma espécie de rede estrutural e referencial a essa mesma disciplina, poder explorar outros modos de relacionamento desses mesmos elementos para chegar a outras intensidades. Por exemplo, é costume dizer-se que a banda desenhada é o encontro da literatura com o desenho, procurando encontrar no cruzamento num mesmo espaço de apresentação informativo uma faixa ou camada verbal e outra visual, que se podem complementar ou antagonizar em vários graus. Koch, porém, apresenta distribuições distintas: vinhetas para os desenhos e vinhetas para os textos (quando os usa, e quase sempre parcimoniosamente), como se desejasse que uns não contaminassem os outros, mas ao fazer isso contamina todo o conjunto (isto é, a noção “clássica” da banda desenhada) com naturezas precisamente vindo das artes plásticas – o livro de artista – e a literatura – a edição de poesia. As experiências de desvinculação, por assim dizer, vão tornando-se cada vez mais vincadas, e se num primeiro momento se poderá ler (“Warmer”, por exemplo) o trabalho de Koch como uma espécie de pequeno diário íntimo ou carta ambivalente a um interlocutor por identificar, rapidamente se encontrarão formas mais profundas e inquietas de colocar questões sobre a maneira como essas supostas faixas distintas se definem entre si (acima de tudo “The Dancer at Midnight” e “After Nothing Comes”).

Se for possível identificar traços comuns entre as personagens – estas histórias parecem ser contadas numa hipotética “primeira pessoa”, aquelas outras parecem dar acesso a mais completas “ficções”, mas todos estes descritivos são complextos – será a de personagens muito jovens sempre mergulhadas em interrogações emotivas, passeios melancólicos, devaneios oníricos ou então jogos, brincadeiras e canções que mal ocultam esses outros sentimentos mais negros. O ennui adolescente parece desprender-se não apenas dos fantasmas de intrigas que seria possível empregar como descritores de cada “história”, mas também das figuras desenhadas. Se a autora emprega em muitos momentos elementos abstractos, ou paisagens vagas, surgem também concretos objectos desenhados da natureza, corpos humanos desenhados parcialmente, e organizados ora de um modo análogo ao do caderno de esboços ora numa qualquer forma aparentemente sistemática e científica. A dérive na natureza é acompanhada por momentos de observação de objectos isolados, o mergulho na natureza é posto em perigo pelo sublime, a vida diáfana das personagens é ameaçada por grandes manchas cuja existência está apenas no papel (e não numa ideia de "representação naturalista"). São como que registos contraditórios de linguagem: formas de lavrar a visualidade que deveriam ser contrários ou pertencentes a propósitos diferentes, mas que aqui convivem para criar algo mais que a sua soma.

Little Angels é, poder-se-ia dizer, uma espécie de mescla entre catálogo e livro-companheiro da participação da autora numa das séries de exposições intituladas “Greater New York” na instituição MoMA PS1, que usual ou originalmente se dedicava à mostra de jovens artistas das mais diversas disciplinas das artes plásticas. O livrinho, com menos de uma trintena de páginas, actua tal qual uma pequena das publicações de Koch, tais quais as de que já falámos, como The Whale e The Blond Woman (Q é uma excepção, enquanto broadsheet). O seu interior parece estar dividido em duas partes, a primeira intitulada “the event” e a segunda “the apartment”, mas sendo totalmnete impossível compreender de modo claro e unívoco qual a relação entre uma e outra. “the event” mostra a sucessão de seis páginas com uma grelha de 2 x 3 vinhetas, que vão sendo ocupadas por manchas e marcas abstractas de várias cores, entre pinceladas de aguadas sombrias, blocos monocromáticos de um azul cobalto ou um cinzento-creme, e uma conjunto cerrado de três a quatro linhas de cera azul clara. Em parte, recordam experiências tais quais Hic Sunt Leones, de Frédéric Coché. Logo depois, um rosto menos do que em perfil num canto de uma página de resto vazia, e outra grande vinheta, com efeitos de pinceladas que poderiam eventualmente ser lidos como uma paisagem à la Turner por via do minimalismo. “The apartment”, por seu lado, cria as condições para assistirmos ao diálogo entre duas jovens mulheres, num quarto ou sala, sobre uma outra situação qualquer, anterior, da qual saíram. Uma delas parece ter acabado de chegar, e terá subido eventualmente pelas escadas do alpendre do prédio, apesar de vermos quatro versões compossíveis da balaustrada de ferro trabalhado (apenas a balaustrada, na verdade, num espaço vazio). A outra desenha e escreve distraidamente numa folha, e nós temos acesso a esses mesmos rabiscos, que se vão formando sob o nosso olhar, de maneira complexa integrada na própria folha em que a vemos a cumprir essa acção. O diálogo entre ambas aponta para uma qualquer possibilidade de se pensarem a si mesmas como não-humanas, “inhumanas”, “monstros”.

Qual a relação entre um e outro? Nada poderá criar ligações unívocas, como dissemos. Não haverá jamais certezas. O mesmo ocorre entre cada título, entre cada obra de Koch, ou até mesmo, no “interior” de cada peça, entre cada momento, secção, trecho, fragmento. Há uma larga dose de provável improvisação na criação destas peças, ou de força centrípeta em cada momento, mas desenganem-se os leitores que perderem o fio à meada tecida pela autora. Todo e qualquer título agrega esses díspares elementos em objectos absolutamente coesos. Como um livro de poesia, exigem que sejam lidos com mais atenção, pois não nos apresentam cartografias familiares e pré-arranjadas e que, mais do que nos “ajudarem” a interpretar, retiram-nas essa responsabilidade e até capacidade. Koch (mas há toda uma constelação de artistas de banda desenhada, como saberão os leitores de trabalhos desta natureza, e até quem acompanhe este espaço) cria fendas no edifício normativo do significado, da familiaridade, da ideia de “narrativa”. O naturalismo, a organização causal, a concentração de um protagonista, ou pior de tudo, a finalidade teleológica, moralista, não são jamais virtudes em si mesmas, nem o seu contrário vícios ou defeitos das obras. São convites a que assumamos o nosso próprio papel, activo, pleno, responsável, exigente, na assunção da poeisis, a feitura da obra, tessitura incompleta antes da leitura.  

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