Mas
a ideia de “mito” não é totalmente descabida, e deveria ser ela
a informar a dificuldade que há em querer reaproveitar uma obra
autoral desta natureza para lhe dar continuidade, ensejo puramente
comercial. A verdade é que na história da literatura houve casos de
continuidade ou variações de personagens pelas mãos que não dos
seus autores originais (pense-se em Telémaco, no Quixote, em
Robinson Crusoé). Não deixa de ser surpreendente, então, que uma
obra com tal cunho individual, ainda para mais vincado de forma tão
indelével na personagem (mais do que Tintin, Lucky Luke, Spirou, que
são muitas vezes cifras esvaziadas prontas a receber versões
diferenciadas), seja passível destas revisitações comercialmente
procuradas. Os Escorpiões do Deserto já haviam atravessado o
mesmo filtro, mas também não nos podemos esquecer que todos os anos
a editora procura novas fórmulas de repackaging da série de
Corto: formatos livrescos, novas colorizações, edições com
dossiers informativos, capas novas, etc., etc., etc.
Existe,
na verdade, toda uma controvérsia entre a sociedade que explora os
direitos conexos da personagem, a Cong S.A., a administradora da
mesma, Patrizia Zanotti, antiga colorista e última companheira de
Pratt (confirmando um cliché quef ocorreu com Hergé, Moebius,
Saramago e até J. L. Borges), os filhos de Pratt e a editora que tem
explorado a venda e distribuição dos livros (e merchandising
infindo), controvérsia que não podemos nem sustentar nem discutir
por falta de instrumentos próprios, mas que gostaríamos de
assinalar pois poderá explicitar parte da valência deste projecto.
Por parte desse assunto remetemos ao excelente artigo de Jessie Bi no du9 e o seu conceito de “profacção”, que apenas pode ser
sustentado pela existência da fome fanática (no sentido de fãs,
mas talvez não só) dos leitores medianos de banda desenhada. Há
uma espécie de “autoridade” ditada pelos leitores que “exigem”
a continuidade das aventuras das suas personagens predilectas, mais
do que procurarem novas formas de fruição ou diversidade de
leitura.
Na
parte que nos toca esse fascínio não existe, já que foi surgindo
numa dieta que não nos permitia aproximar desta obra “matura” de
uma forma equilibrada e, mais tarde, já se diluía num território
bem alargado de valências possíveis. De resto, as mais das vezes
Corto Maltese surgia-nos como exemplo de banda desenhada amada
por quem não acompanhava banda desenhada para se tornar um
contra-exemplo improdutivo.
Mas
surge-nos então um livro com a personagem de Pratt pelas mãos dos
autores espanhóis Juan Diáz Canales, autor famoso pela saga do
detective Blacksad, e Rubén Pellejero, artista de toda uma
série de projectos mais ou menos conseguidos, sobretudo em
colaboração com Jorge Zentner e um western nada
displiciendo, Loup de pluie, com Jean Dufaux, visualmente
talvez o seu livro mais conseguido. É igualmente conhecida a
história do projecto abortado de Joann Sfar e Christophe Blain em
recuperar Corto para novas aventuras, mas passando por um filtro
autoral novo e vincado, o que seria um serviço maior à filosofia
(mesmo assim, subsumindo-se à cultura “bedê”) original do que
esta recuperação de continuidade. Pois Canales e Pellejero o que
criam é o perfeito pastiche.
Na
cronologia biográfica da personagem, os autores colocam esta
aventura em 1915, ou seja, após a Balada do Mar Salgado, que
introduzira Corto Maltese, e depois das viagens posteriores Sob o
signo de Capricórnio, na América Latina. A progressão da
publicação das aventuras por Hugo Pratt e a cronologia diegética
nem sempre foram a par e passo, mas se descontarmos La jeunesse,
de 1982, em que o próprio autor da série sentiu a necessidade de
tirar partido dos mecanismos mais clássicos da cultura popular (e
até dos contornos comerciais, se quisermos), cada novo álbum
correspondia igualmente a um avanço cronológico na vida de Corto.
Jogando pelo seguro, este “regresso” não desarruma a vida
debuxada por Pratt, desde as suas origens até à sua apoteose
onírica-mítica em Mû, mas antes desdobra um pequeno vinco
no seu percurso.
Seguindo
algumas das formas de escrita de Pratt, e respeitando a economia das
amizades e alianças do protagonista, voltaremos aqui a encontrar
algumas personagens-chave da saga. Abrimos na companhia de Rasputine,
o fantasma de Jack London é quem conduz a aventura toda, cruzamo-nos
com outras personagens menores. Além do mais, o efeito de referência
é procurado ao introduzirem-se personagens históricas, que alargam
as implicações da narrativa, como é o caso da japonesa Waka
Yamada, percursora do primeiro feminismo quer no Japão quer nos
Estados Unidos. Além disso, tirando partido das formas clássicas da
banda desenhada infanto-juvenil franco-belga [o que levantaria algumas questões, é certo, tendo em conta que são autores espanhóis a trabalhar sobre a obra de um italiano, mas o pólo de produção é indubitavelmente esse], os dois autores
espanhóis criam uma estrutura de viagens imensas, levando Corto
Maltese a atravessar mundos. Começamos no Panamá, depois
desviamo-nos por São Francisco, finalmente partimos para o Alasca e
o Yukon, sobe-se até ao Ártico, na qual decorre o âmago da
“aventura”, para finalmente regressarmos ao centro urbano
norte-americano.
Uma
das formas de disfarce da falta de uma estrutura central forte em
Sous le soleil de minuit, ou até de uma alma da narrativa, de
um tema ou matéria interpelante, é lançar o máximo de linhas
secundárias para distrair e fazer mover o mecanismo accional,
multiplicar as personagens para parecer um épico, criar dinâmicas
de oposições, preconceitos e correcções hiperbolizadas (por
exemplo, um alemão considera todos os inuítes selvagens e depara-se
com um deles que lê a Scientific American e tem luzes
sobre fenómenos físico-metereológicos), etc. Há toda uma série
de interrupções com pequenos dramas (o inuíte que imita
Robespierre, inclusive a sua “origem” num estilo à la Eisner
algo descabido e nada importante na economia da narrativa, já que a
sua importância no cômputo geral será quase nula, as prostitutas
vingativas, a história de amor entre um boxeur e uma madame, etc.)
mas que pouco contribuem para adensar o livro ou complicar as redes
de relações humanas entre as personagens. Parece quase cumprir-se
ipsis verbis o que o crítico literário Pierre Alferi diz dos
“romances gordos” dos escaparates de bestsellers, os quais
seguem “velhos esqueletos” que, “multiplicando as intrigas
secundárias fazem esquecer um pouco a estereotipificação da sua
lógica narrativa” (Brefs).
Corto,
em si mesmo, é apenas uma personagem reduzida à sua cifra
representativa. Repete movimentos, gestos e afirmações que apenas
seguem a sombra do que foi deixado na lavra de Pratt, tenta-se mimar
uma ideia de decisões quando toda a acção é externa, e até nem
se procura uma exactidão na sua representação física ao longo dos
espaços. Também Jessie Bi aponta o facto de que ver um Corto nas
paisagens gélidas com o seu quepe de marinheiro e as calças brancas
é de um ridículo quase absoluto, o que demonstra em grande parte o
tratamento bidimensional (ou mais ainda) da personagem pela parte
destes autores, em detrimento dos efeitos de referência do autor
italiano.
No
fundo, o que Canales e Pellejero cumprem aqui é a plena descrição
do pastiche. O pastiche pertence a uma classe de categorias
literárias nas quais encontraremos igualmente a "homenagem",
a "imitação", a "paródia", etc., isto é, tudo
redes de criação de referências intertextuais. Mas se seguirmos a
lição de Leif Ludwig Albertsen, deveremos não confundir pastiche
com paródia ou travesti, uma vez que nestes últimos géneros, os
autores reescrevem um modelo para triunfarem sobre ele. No campo da
banda desenhada, poderíamos pensar nalguns dos trabalhos de Alan
Moore et al. (1963, Supreme, etc.) ou no livro de
Spirou por Émile Bravo (alvo de um estudo co-autorado por
nós, ainda inédito). No caso do pastiche, todavia, o autor anula-se
a si mesmo para renascer noutro nível. Bravo também fez isso com a
sua versão “nazi” de Blake & Mortimer, por exemplo, e
que acaba por iluminar aspectos que haviam estado semi-ocultos na
série original. Em Sous le soleil de minuit, que tipo de
renascimento ocorre? Quase nenhum, na verdade.
Há
apenas um retomar de efeitos de superfície. E não se pode falar de
homenagem, pois numa homenagem não se cria pura e simplesmente uma
caricatura redutora, mas antes uma reinterpretação, a qual não
ocorre de todo nestas páginas.
Repare-se
como nem o argumentista nem o desenhador estão interessados em
tornarem Corto Maltese na “sua personagem”. Recordemo-nos como,
de formas bem distintas, Mathieu Bonhomme reinventou Lucky Luke,
ou os autores norte-americanos que trabalham na indústria de
super-heróis procuram adaptar as cifras dos super-heróis a
propósitos sempre distintos, como as personagens Disney conseguem
revestir-se de fitos diferentes conforme as aventuras criada, como
Spirou altera a sua personalidade e escopo de acção conforme
a equipa responsável… A mal ou a bem, dentro ou fora de limitações
estereotipadas, essa variação é parte do prazer da leitura dessa
cultura.
O
próprio Pellejero abandona aqui as suas melhores práticas (sendo um
autor desigual ao longo da carreira, pautemo-nos pelo que nos suscita
maior segurança), de um trabalho à la vitral, de contornos sólidos
e negros, cenários pormenorizados, e uma colorização matizada,
optando antes por uma imitação da assinatura sumária de Pratt. Daí
que se use e abuse de rostos de perfil ou de frente em vinhetas de
resto desocupadas, composições dramáticas com ângulos picados e
contra-picados, arranjos de páginas sem lustro, e jogos de sombras
que mais parecem ser autónomas e forçando o melodramatismo, do que
acompanhando o ambiente geral dos episódios ou dos fenómenos
atmosféricos em curso. O desenho acaba por ser pífio e desigual, o
trabalho de cor medíocre (há uma versão a preto e branco, o que
sublinha esta ânsia comercial de “chegar a todas”), o ritmo
empobrecido.
É-nos
indiferente que se tente imitar Pratt ou não, assim como retomar a
personagem. Não nos parece um crime de lesa-majestade muito
diferente do que ocorreu com tantas outras personagens, de Watchmen
a Blake & Mortimer, cujo valor tem a ver com uma obra
fechada e autónoma plenamente inscrita no seu tempo histórico, e
cuja revisitação acaba sempre por ser uma falta de imaginação
própria e uma incompreensão do que poderá ser mais produtivo na
disciplina. É um gesto puramente comercial, mas não finjamos que
este território está desigado de estratégias dessa natureza. A
questão tem a ver até com o brio técnico com que se fz essa
visita, e tentar, de uma forma ou outra, um pequeno gesto de rasgo,
de sublinhar um aspecto inesperado, de trazer um novo vinco. No caso
de Soleil de minuit, esse rasgo não existe.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
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