A revista, cujo título em acróstico,
UDWFG, poderá recordar um murmúrio de afogamento e martírio
de um qualquer demónio, ou um humano nas suas mãos, é com efeito
um objecto de sortilégios macabros e nocturnos. Talvez mesmo uma
espécie de grimório narrativo cuja leitura, se exercida em
determinadas circunstâncias ritualísticas e numa ordem determinada,
destrave as cancelas de outras dimensões tenebrosas e possa fazer
deslizar sombras que nos alterem as percepções. Mas mesmo a sua
leitura comum e semi-distraída colocará os leitores seguramente num
ambiente algo incómodo, de uma maneira indefinida, que por isso
mesmo se torna mais incómoda, ao contrário de prestações mais
violentas ou directas, cujos elementos se tornam de imediato, se for
o caso, obscenos, repudiáveis, mas por isso mesmo mais permeáveis a
sensações estendidas. (Mais)
A UDWFG é uma antologia
aparentemente – ou melhor, de forma explícita por esse mesmo
título - dedicada à ficção negra ou à ficção weird, uma
convergência entre a literatura fantástica e géneros como o
horror, a fantasia e a ficção científica, e cujo maior cultor, ou
pelo menos maior demiurgo, foi H. P. Lovecraft. Com efeito, com os
seus planos não-euclidianos de outros universos, as suas luzes
irreais, os sons e ângulos inesperados, e criaturas como os Mi-Go,
os Anciãos, os Shoggoth, e claro o grande Chtulhu, Lovecraft
deixaria à posterioridade uma mitologia e um pasto a contínuas
revisitações e expansões macabras. É óbvio que bebera de nomes
anteriores, Poe e Machen, Dunsany e até Crowley, mas após ele
Peake, Mieville e Barker contribuiriam de forma significativa para as
possibilidades e até a popularidade dessas invenções. A banda
desenhada não lhe é alheia, claro está, mas se durante muito tempo
se manteve somente na prática de meras, superficiais e francamente
medíocres adaptações (com raras excepções, de onde se deve
salvar o nome de A. Breccia), somente em termos recentes a criação
de mundos complexos deste género conseguiram ganhar uma capacidade
não apenas de liberdade criativa, fora das fórmulas de susto e
espectacularidade expectáveis, como a nível gráfico se procurava
um brio sólido.
Esta revista, publicação italiana mas
em língua inglesa, procura que o seu aspecto material (as páginas
tintadas de negro em torno, o culto de alto contrastes que assinalam
o trabalho de linha, ou cinzentos expressivos, as capas estilizadas,
o logotipo-título mutável e imitando objectos clássicos dos
géneros) se coadune com o interior. Os três primeiros números, que
lemos, apresentam cinco histórias em capítulos por cinco autores, e
apenas uma dela parece ter terminado no terceiro número. De tamanhos
diferentes de revista para revista, com estilos bem distintos e
instrumentos diversos, todas elas se unem porém nos grandes traços
que são precisamente os elementos que as inscrevem naquele(s)
género(s) apontado acima. De certa forma, podemos dizer que todas as
histórias se abrem a complexos e variegados universos narrativos,
habitados por estranhas e fabulosas criaturas, uma mais necromântica
que a outra, esta mais próxima de formas de vida terrestres que
aquela, estoutra devedora de contornos mais de ficção científica,
e aqueloutra de high fantasy.
Os autores reunidos nestas páginas são
os seguintes. O norte-americano Mat Brinkman, de quem falámos sempre
que possível associando-o à plataforma que o lançara, a Paper
Rodeo ou o grupo de Fort Thunder. Nesta história, seguimos um
naco de carne, fragmento de um corpo maior já massacrado, e as
vicissitudes pelas quais atravessa, num mundo que parece saído de
uma versão abreviada de Dungeons & Dragons.
O espanhol
Miguel Ángel Martin, que de histórias com uma abordagem estilizada
e genérica, assume aqui uma fantasia onde todas as suas
características se unem e reforçam com contornos negros, onde
criaturas de cruzamentos impossíveis parece estarem na senda de uma
estrutura mágica, que tanto parece alcançável como sempre por
detrás de mais um difícil obstáculo.
O artista japonês vivendo
nos Estados Unidos Tetsunori Tawaraya, que parece ser uma fusão
entre o artista de outside/mainstream comics Fletcher Hanks e
a arte de filigrana biológica de um Haeckel, perde-se na exploração
de uma fauna e flora alienígenas, que apenas aos poucos parece estar
associada com efeito a uma história organizada, com protagonistas e
vilões.
O italiano Ratigher, cuja arte está próxima de uma
animação muito estilizada, mas colocando as suas personagens de
aparência juvenil ao serviço de uma protelada e estranha saga
negra, é aquele que nos apresenta a peça mais clássica, “Five
Mantles”. É possível que possa ser mesmo aquela que mais se
estenderá no tempo, com sólidas personagens e uma backstory
capaz de aguentar ramificações várias. Devedora de toda uma série
de referências, sem o esconder mas trabalhando nesse território, um
pouco à la Last Man, seguimos duas irmãs com capacidades e
objectos mágicos num subterrâneo labirinto cujos limites não se
conseguem sequer ainda vislumbrar.
Finalmente, o também italino
Paolo Massagli, que parece muito mais devedor de uma certa escola de
ilustração de metal e/ou tattoo art, mas que procura moldar
esses instrumentos para uma história que, ainda que vaga, vai
navegando num território relativamente clássico. Várias figuras
femininas, entre os looks das Suicide girls, da Tank Girl,
Yo-Landi VI$$er e mais uma batelada de fantasias adolescentes de
mulhres-demónio, digladiam-se entre si numa paisagem Infernal, com a
participação de outra criaturas. Se nem sempre é clara a
substituição das personagens e a razão dos conflitos, parece que o
prazer reside no avanço inexorável por essas mesmas paragens, como
numa espécie de Road Fury sem fim.
De facto, o grande prazer das histórias
apresentadas na UDWFG não parece ser de forma alguma a
construção psicológica das suas personagens, nem tampouco a sua
relevância social, numa hipotética reflexão do nosso mundo através
dos seus aspectos tenebrosos. É tão-somente uma desculpa para criar
mecanismos de avanços das acções, de correntezas por entre
espaços, de novos modos de dispor a causalidade dos eventos, e
esperar que eles, arrastando toda e qualquer das ideias dos
worldbuildings de cada autor, crie um cadinho suficientemente
poderoso. E essa parece ser, parece-nos, uma descrição tão apta
quanto outra qualquer dos sortilégios negros proporcionados nestas
páginas.
Nota final: agradecimentos a
Pepedelrey, por nos ter colocado na senda desta publicação, e pelo
desconto.
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